Ensaio Sobre o Cancelamento
Em ensaio nada acadêmico, o publicitário e Secretário de Cultura de Salvador Pedro Tourinho faz um panorama histórico da prática polêmica e divisiva
Embora o dito cujo já esteja entre nós há algum tempo, nunca deixou de ser alvo de críticas e polêmicas. E é sobre ele, o cancelamento, que o empresário, publicitário e comunicólogo Pedro Tourinho, especialista em cultura e entretenimento, se debruça em seu novo livro. Mas “Ensaio Sobre o Cancelamento” (Planeta, 2024) não se apresenta como uma tese ou estudo acadêmico a respeito do assunto. Em vez disso, o autor e atual Secretário de Cultura e Turismo de Salvador se propõe a montar o quebra-cabeça social que define o termo como o conhecemos hoje.
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Sabia que a palavra cancelamento tem origem num filme de Wesley Snipes e num reality show sobre hip hop? A obra mata essas e outras curiosidades sobre o assunto, traçando um panorama histórico da prática muito antes de ela sequer ter sido nomeada. Tourinho, também autor de “Eu, Eu Mesmo e a Minha Selfie” (Portfolio Penguin, 2019), entrelaça a narrativa a acontecimentos internacionais cruciais para que a expressão fosse tomando forma, a exemplo de movimentos como o #MeToo e #BlackLivesMatter.
O livro também entra na discussão de como o cancelamento se tornou central nas chamadas “guerras culturais” — a grande disputa social entre conservadores e progressistas, que ganhou contornos mais radicais ao longo da última década. “A dinâmica do cancelamento se insere nesse contexto de forma arrebatadora, pois, nessa guerra, o cancelamento é uma das grandes armas de mobilização em massa”, escreve Tourinho no capítulo focado no assunto. A visão sobre a prática, portanto, varia muito dependendo do lado das trincheiras em que se está.
O autor desenrola com clareza e interesse todo esse panorama histórico e social, desembocando finalmente nas figuras dos canceladores e cancelados, e suas inúmeras complexidades. Além disso, pelos fenômenos das disputas culturais, explora uma série de temas profundamente relevantes para o debate atual, como a intolerância religiosa e a centralidade do aborto, intensamente debatido no país após a aprovação na Câmara dos Deputados de PL que equipara a pena para o aborto à de homicídio. O trecho a seguir, selecionado por Gama, trata do assunto.
Há um equilíbrio de forças e a potência dominante teme e respeita a potência emergente: até se choca e passa reprimendas quando alguém “chuta a santa”, mas ignora o famigerado “chuta que é macumba”. Isso fica claro quando surgem questões de costumes que decorrem da religião ascendente e são instrumentalizadas pelos setores políticos mais conservadores: casamento homoafetivo, educação sexual, descriminalização das drogas e, sobretudo, o direito ao aborto.
Esse último se tornou a questão central da polarização política em torno dos costumes. Partidos políticos e instituições da elite tradicional se dividem entre quem é a favor e contra critérios que permitam a interrupção da gravidez de forma mais ampla. No entanto, mesmo aqueles que são programaticamente favoráveis ao aborto e reconhecem o direito da mulher sobre seu corpo se veem constrangidos a esconder sua posição em comícios e campanhas políticas, para evitar a rejeição do eleitorado conservador, cada vez mais aglutinado em torno de uma religiosidade populista e moralista.
O tema é delicado e poderia (ou deveria) ser discutido em termos de bioética, examinando a legitimidade e o direito de se interromper uma vida em seus primeiros estágios. Nesse caso, o aborto teria de ser discutido à luz de evidências científicas sobre os estágios de desenvolvimento do feto (a partir de que momento o feto se torna um ser senciente?) e do ponto de vista de conceitos jurídicos, filosóficos, sanitários e morais laicos (o feto já é um indivíduo com os direitos universais do ser humano?). Nada disso, porém, passa pela histeria fundamentalista que toma o debate na esfera pública.
Na contramão de países profundamente católicos, como Portugal e Itália, que têm regras mais flexiveis e delegam à mulher a decisão, não importando os riscos da gravidez, o Brasil e os Estados Unidos fizeram do aborto um item da agenda conservadora e um dos pontos mais sensíveis das guerras culturais. Defensores do aborto são imediatamente assimilados a progressistas, por sua vez identificados como esquerdistas que, fechando o círculo, são vistos como ameaças aos valores da família tradicional em todos os campos.
Há uma tautologia: ser a favor do aborto é ser progressista/esquerdista e ser progressista/esquerdista é ser a favor do aborto. A discussão não se coloca em termos éticos (abstratos, laicos e universais), mas morais (prescritivos e com fundamentos na tradição religiosa) e ideológicos, dentro de uma busca por supremacia política.
Mesmo aqueles que são favoráveis ao aborto e reconhecem o direito da mulher sobre seu corpo se veem constrangidos a esconder sua posição em comícios e campanhas políticas
No caso mais rumoroso e emblemático, acontecido em 2020, uma menina capixaba de apenas 10 anos engravidou depois de ser estuprada sucessivas vezes por um tio abusador. Como a gravidez já estava no sexto mês, o hospital do Espírito Santo em que foi atendida se recusou a realizar o aborto, alegando que o seu estado avançado contrariava os protocolos médicos e legais. Com autorização da justiça, ela foi levada a Recife para o procedimento, o que gerou uma mobilização de grupos religiosos e antiaborto, que cercaram a clínica em que foi atendida.
Contando com parlamentares da chamada bancada evangélica, membros do Movimento Pró-Vida e do grupo católico pernambucano Porta Fidei, os manifestantes fizeram orações, acusaram em coro os médicos de serem assassinos e tentaram impedir a interrupção da gravidez. Além disso, ativistas de extrema direita divulgaram nas redes sociais o endereço da clínica (para engrossar os protestos) e o nome da mãe da menina — ferindo assim o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege a identidade de menores. Posteriormente, com o aborto já realizado, foi noticiado que, à época, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a evangélica Damares Alves, atuou para impedir que a criança passasse pelo procedimento.
Essa mobilização de ativistas e autoridades parlamentares e do poder executivo deixa claro que a questão transcende o âmbito religioso, das convicções morais ou íntimas — da mesma maneira que alguns casos de agressões transfóbicas se fazem de motivações religiosas a serviço de interesses políticos. É o caso do adolescente que, em junho de 2022, teve a casa apedrejada na cidade de Poções, no sudoeste da Bahia, ao reivindicar o direito de ser chamado pelo nome social na escola em que estudava. Segundo o Ministério Público do estado, os atos de ódio teriam sido incentivados por um pastor da região, que conclamou os fiéis a protestar contra o projeto de lei de uma vereadora local, propondo que pessoas trans pudessem ser chamadas pelos nomes sociais nas instituições de ensino.
Essa mobilização de ativistas e autoridades parlamentares e do poder executivo deixa claro que a questão transcende o âmbito religioso, das convicções morais ou íntimas
Ações dessa natureza se disseminam em todos os campos, industrializando a questão religiosa a serviço de um refluxo conservador que pretende reverter conquistas de minorias históricas e beneficiar grupos de exploração econômica ligados ao então governo de extrema direita. O relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), traz dados de 2020 que mostram como o avanço de pastores evangélicos e neopentecostais sobre áreas indígenas está associado a interesses de garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores ilegais.
O documento revela que missionários evangélicos têm tentado fazer sucessivos contatos com tribos isoladas voluntariamente, colocando em risco sua sobrevivência, mas o motivo não é evangelizador, e sim político-econômico. A Instrução Normativa nº 09/2020, publicada pelo governo federal para permitir a certificação de imóveis privados dentro de territórios indígenas ainda não homologados, “insuflou as invasões dos territórios e a violência contra os indígenas, em plena pandemia”. Ainda segundo o Cimi, “a Funai mudou por completo a política de proteção destes povos, assumindo a política do contato e da invasão para liberar os territórios, através de igrejas neopentecostais às quais entregou o setor de proteção”.
No Amazonas, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) — onde há a maior concentração de indígenas isolados do mundo — alerta para o incremento do garimpo nas terras indígenas. É a mesma região na qual foram assassinados, em junho de 2022, o indigenista Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, no caso que explicitou internacionalmente a associação entre a política antiambiental do governo Bolsonaro e a criminalidade de indivíduos e grupos à margem da lei. E a mesma região em que Lideranças dos povos Marubo e Mayoruna denunciaram tentativas de invasões de terras (com uso de hidroavião, drones e armas de fogo) por evangélicos fundamentalistas ligados à Missão Novas Tribos, cuja página na internet informa que sua missão é “expandir o Reino” para “impactar e alcançar povos ainda não alcançados com o evangelho de Cristo”.
Não há objetivos “catequéticos” nas missões evangélicas, mas intenções materiais — e até genocidas.
O documento diz que, em março de 2020, “a Univaja denunciou a invasão de sua sede e ameaças e intimidações, por parte de missionários, para que autorizasse uma expedição ao interior da TI Vale do Javari, na região do igarapé Lambança, habitada por indígenas isolados” e que “o contato forçado e o desrespeito à escolha do ‘isolamento’ e do direito à autodeterminação levaram numerosos povos indígenas isolados ao extermínio ou à drástica redução populacional. Esta prática ainda é mais abominável quando se associa à defesa de determinados interesses econômicos e/ou religiosos”.
O uso instrumental da religião não poderia ser mais explícito. Ou seja, não há objetivos “catequéticos” nas missões evangélicas, mas intenções materiais — e até genocidas. Durante a pandemia do novo coronavírus, continua o documento do Cimi, um grupo de dez membros da igreja evangélica Jocum acampou na aldeia Cachoeira do povo Krahô, no Tocantins, promovendo aglomerações que visavam desrespeitar as medidas de prevenção da doença. E, no Pará, pastores neopentecostais realizaram pregações contra a vacina entre os Munduruku, dentro de uma ação mais geral e coordenada, nas aldeias da região amazônica, de desinformação sobre a pandemia e a vacinação por meio de emissoras de rádio que difundiam notícias “acerca da ineficácia da vacina e dos problemas que esta geraria na vida futura ou na morte prematura”.
- Ensaio Sobre o Cancelamento
- Pedro Tourinho
- Planeta
- 144 páginas
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