O que está acontecendo nos EUA?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

A fragilidade da democracia norte-americana

Sob Donald Trump, freios e contrapesos se enfraquecem, a Suprema Corte com maioria conservadora hesita e os EUA testam os limites do chamado autoritarismo competitivo

Ana Elisa Faria 05 de Outubro de 2025

A fragilidade da democracia norte-americana

Ana Elisa Faria 05 de Outubro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Sob Donald Trump, freios e contrapesos se enfraquecem, a Suprema Corte com maioria conservadora hesita e os EUA testam os limites do chamado autoritarismo competitivo

“Democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos — presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. É assim que os cientistas políticos e professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt descrevem como regimes democráticos contemporâneos aparentemente sólidos se esvaem, ao mesmo tempo que figuras autocráticas ascendem.

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A advertência, feita pela dupla no livro-hit de 2018 “Como as Democracias Morrem” (Zahar), soa hoje, sete anos após a publicação, como um diagnóstico preciso dos Estados Unidos sob Donald Trump.

No segundo mandato do republicano, o país mais poderoso do mundo, que por décadas se apresentou como modelo de governo estável e dedicado aos interesses do povo, enfrenta um processo de erosão institucional que não ocorre de forma abrupta, mas em etapas. Decisões tomadas ao sabor do humor presidencial, fake news repetidas sem constrangimento, demissões — e tentativas — arbitrárias, ataques ao Judiciário e à imprensa, o uso político do aparato de Estado: ações que sinalizam um desgaste e preocupam.

A lógica dos freios e contrapesos, orgulho da Constituição americana, mostra-se incapaz de barrar os avanços autoritários de Trump — os famosos checks and balances, no inglês, são um mecanismo em que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário se controlam mutuamente para garantir que nenhum poder se torne absoluto. A Suprema Corte, com maioria conservadora, não tem sido um empecilho, o Congresso é paralisado pela partidarização extrema — situação que pode mudar em 2026 com as eleições de meio de mandado — e até normas informais que garantiam moderação na política parecem ter se rompido.

Enquanto isso, cresce um contraste incômodo. O Brasil, tantas vezes visto como uma democracia jovem e instável, tornou-se exemplo positivo de reação dos órgãos competentes depois do 8 de janeiro de 2023.

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Em 12 de setembro, o jornal New York Times publicou um artigo em que Levitsky e o professor de economia da Universidade Johns Hopkins e colunista do Nexo Filipe Campante afirmam que o Supremo Tribunal Federal brasileiro “fez o que o Senado dos Estados Unidos e os tribunais tragicamente não conseguiram fazer”, ou seja, levar à Justiça um ex-presidente que atacou as instituições democráticas — referência à condenação de Jair Bolsonaro e ao que não foi feito por lá, sobretudo depois do 6 de janeiro de 2021.

Autoritarismo competitivo

Para o economista Filipe Campante, em entrevista a Gama, o cenário norte-americano atual pode ser analisado assim: hoje, os Estados Unidos já vivem sob um regime autoritário em formação. Segundo ele, o Congresso, controlado pelos republicanos, funciona cada vez mais como uma instituição fechada em si mesma e incapaz de conter o presidente. Lá atrás, o próprio partido, afirma, se submeteu a Trump de maneira autoritária. “As cortes inferiores ainda oferecem resistência, mas a Suprema Corte, até o momento, não.”

Esse quadro se aproxima do conceito de autoritarismo competitivo, no qual eleições seguem ocorrendo, mas as regras do jogo não são devidamente cumpridas, ou são até manipuladas em favor do governante. Campante lembra que isso aparece em práticas como o gerrymandering — redesenho dos distritos eleitorais para concentrar ou dispersar eleitores de um partido — agressivo em estados como o Texas e no uso do aparato de segurança para intimidar adversários políticos.

Estamos em um estado de superposição quântica de autoritarismo e democracia

Ele acredita que os EUA passam por tempos difíceis, mas que essa onda pode mudar. “É um momento muito grave que pode perfeitamente ser revertido. Estamos em um estado de superposição quântica de autoritarismo e democracia”, diz.

O cientista político Leonardo Avritzer, aposentado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor visitante do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de obras como “O Pêndulo da Democracia” (Todavia, 2019), reforça a leitura do panorama do que está acontecendo nos Estados Unidos.

Trump, de acordo com o especialista, corrói o sistema democrático por dentro desde 2016, quando ganhou as eleições. “Ele desvaloriza a ideia de oposição leal, partidariza a própria democracia e reduz a autonomia de agências centrais ao funcionamento do regime”, afirma.

Avritzer concorda que essa corrosão pode ser revertida, no entanto, fala que o problema é quanto tempo o processo de desgaste vai durar. “Essa temporalidade vai determinar a facilidade e a dificuldade de reversão.” O docente recorre à Alemanha do período anterior ao Terceiro Reich. “O país tinha instituições democráticas fortes, mas não sobrou muita coisa depois dos quase 12 anos de Adolf Hitler no governo. Tudo depende do tempo e do tamanho das ações de erosão democrática.”

Trump partidariza a própria democracia e reduz a autonomia de agências centrais ao funcionamento do regime

Na análise de Avritzer, se Donald Trump for derrotado nas eleições chamadas de midterms, no ano que vem, provavelmente os Estados Unidos voltarão a um sistema mais equilibrado. “O Congresso vai estabelecer um conjunto de limites ao poder dele, ainda que isso também seja conflituoso”, frisa.

A hesitação da Suprema Corte

A Suprema Corte dos EUA tem sido um dos principais pontos de debate. Conforme Leonardo Avritzer, a composição atual, moldada com três juízes indicados por Trump no primeiro mandato (2017–2021), evita a imposição de limites substantivos ao presidente. “Nenhuma das principais políticas dele foi afetada até o momento por decisões judiciais da corte”, pontua.

Diante da inação do tribunal, uma medida contrariou o mandatário nos últimos dias, pelo menos por enquanto, com o anúncio da manutenção da diretora do Federal Reserve (Fed), Lisa Cook, no cargo até que a Justiça julgue o caso em 2026 — o governante tenta demovê-la da chefia da instituição desde agosto ao alegar fraude hipotecária, o que gerou uma ação contra Trump. Cook é a primeira mulher negra a integrar o conselho do banco central, e a sua demissão é uma ação sem precedentes, já que, pela lei do Fed, o presidente só pode remover um dirigente “por justa causa”.

Os comportamentos da corte com Trump, de habitual passividade, refletem uma das teses centrais de “Como as Democracias Morrem”, que mostra que líderes com inclinação autocrática exploram crises e brechas institucionais para desmontar freios e contrapesos incômodos.

Campante e Levitsky, no artigo do New York Times, corroboram a crítica. Para os dois, a Suprema Corte agiu sem senso de urgência em processos ligados ao ataque de 6 de janeiro e, em julho de 2024, ampliou a imunidade presidencial. Na prática, inviabilizou o caso federal contra Trump e abriu espaço para a normalização do abuso de poder.

Do “modelo para o mundo” ao efeito dominó

A professora Thaís Florencio de Aguiar, do departamento de ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS–UFRJ) e coordenadora do grupo de pesquisa Democracia e Teoria, vê na atual conjuntura uma mudança de era.

“As balizas de uma democracia chamada de liberal vêm sendo desafiadas”, menciona. Autora do livro “Demofobia e Demofilia: Dilemas da Democratização” (Editora Unifesp, 2021), Aguiar explica que o caso americano expõe os limites de se confiar apenas no aparato institucional, sem o apoio de um conteúdo social que sustente a confiança pública. A tarefa, defende, é reinventar a democracia em meio à ascensão global da extrema-direita.

A polarização sectária, descrita por Levitsky e Ziblatt como corrosiva para as normas democráticas, se aprofundou nos Estados Unidos e dificulta a tolerância e o compromisso, ingredientes básicos da negociação política.

No plano externo, Leonardo Avritzer observa a evolução de um “superpresidencialismo sem nenhuma forma de controle”, marcado por tarifas unilaterais e sanções usadas como instrumento de pressão. É uma ruptura em relação à antiga “hegemonia benévola” norte-americana, consolidada desde o pós-guerra, que sustentava alianças e organismos internacionais.

O contraste brasileiro

Filipe Campante e Steven Levitsky escrevem, no artigo do New York Times, que o Brasil, ciente de seu passado autoritário, reagiu com mais vigor a ataques à ordem constitucional. Citaram como exemplo a inelegibilidade e a condenação de Jair Bolsonaro, além das medidas que blindaram o processo eleitoral em 2022.

Nos Estados Unidos, o quadro foi bem diferente. A Casa Branca de Donald Trump puniu o Brasil. Impôs uma tarifa de 50% sobre exportações brasileiras e sancionou autoridades, incluindo o ministro do STF Alexandre de Moraes, sob a Lei Magnitsky — algo sem precedentes contra um magistrado de uma democracia.

“Com menos de nove meses após o início do segundo mandato, os Estados Unidos provavelmente já cruzaram a linha para o autoritarismo competitivo”, pontuaram no texto os autores. Eles descrevem o uso do Estado para intimidar imprensa, universidades, setor privado e sociedade civil.

Ações controversas

Donald Trump repete um padrão, não só dele, mas de outros líderes da extrema-direita: adota medidas que esticam os limites legais e testam a complacência das instituições. No primeiro governo, por exemplo, o presidente ameaçou classificar o movimento Antifa — abreviação de antifascista — como uma organização terrorista e recebeu críticas de organizações de direitos civis.

Agora, ele conseguiu. Em 22 de setembro, Trump assinou uma medida designando o Antifa como uma “organização terrorista doméstica”, expandindo a lógica da “securitização” por meio de decretos e listas administrativas que rotulam adversários como extremistas, sem que haja reação efetiva do Congresso ou da Suprema Corte.

O governo americano costumava ser a entidade mais confiável do mundo. Hoje, é quase a menos confiável

O que está em jogo, segundo Levitsky e Ziblatt, são as “regras invisíveis” que civilizam a competição política: o respeito à oposição leal, a moderação no discurso e a recusa em usar o aparato estatal para perseguir rivais. Quando essas normas se perdem, a Constituição se transforma em mero papel.

O professor Filipe Campante resume o dano reputacional: “O governo americano costumava ser a entidade mais confiável do mundo. Hoje, é quase a menos confiável. Não existe mais o equilíbrio anterior.” Para ele, a perda de confiabilidade tende a persistir mesmo com a alternância de poder.

Há saída?

Apesar do quadro sombrio, os três entrevistados apontam caminhos. Filipe Campante vê nas eleições legislativas de 2026 um primeiro teste para reabrir o sistema de freios, com a possibilidade de retomada da Câmara pelos democratas e a restauração de algum controle sobre o Executivo. Mas alerta: se a oposição não conseguir vitórias nessa arena, será sinal de viés estrutural típico de regimes autoritários competitivos.

Leonardo Avritzer avalia que a reversão dependerá do tempo de duração e da escala das agressões institucionais. Quanto mais longo for o ciclo de exceção, mais difícil será a reconstrução. Ainda assim, ele não descarta uma volta a um sistema de maior equilíbrio caso o campo anti-Trump se reorganize e imponha limites pelo Congresso.

A luta pela democracia é uma luta constante e renovada

Já Thaís Aguiar defende que a reestruturação vá além da engenharia institucional. É preciso reforçar laços de solidariedade e concórdia e reduzir desigualdades que alimentam a radicalização. “A luta pela democracia é uma luta constante e renovada”, afirma. Sem recompor a sociedade, grifa ela, o aparato liberal continuará exposto a capturas por ultraliberais e reacionários que disputam os sentidos da democracia.

Levitsky e Ziblatt oferecem um lembrete útil para tempos turbulentos: “Perder a democracia é pior do que perder uma eleição”. A democracia, insistem, exige negociações, compromissos e concessões — virtudes cada vez mais raras em ambientes sectários.

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