Onda verde do aborto na América Latina — Gama Revista
Dá pra comemorar, mulher?
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Getty Images/Marcelo Endelli

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Sociedade

Onda verde do aborto na América Latina

A antropóloga Debora Diniz reflete sobre a onda a favor do aborto que atravessa os países latino-americanos. No Brasil, movimentos acanhados do poder público atrasam avanços

Debora Diniz 06 de Março de 2022

Onda verde do aborto na América Latina

Debora Diniz 06 de Março de 2022
Getty Images/Marcelo Endelli

A antropóloga Debora Diniz reflete sobre a onda a favor do aborto que atravessa os países latino-americanos. No Brasil, movimentos acanhados do poder público atrasam avanços

Jamais esquecerei as multidões pelas ruas de Buenos Aires em 2018. Eram pessoas de todas as idades e origens em vigília pela votação do projeto para revisar a lei de aborto de 1921. Milhares de meninas e adolescentes ocupavam as ruas com o lenço verde no corpo. O lenço é um símbolo de ancestralidade na história política das mulheres na Argentina: nos anos 1970 foi usado pelas mães e avós da Praça de Maio, mulheres que desafiavam a ditadura militar em busca de seus filhos desaparecidos ou mortos. O lenço foi feito verde, transmudado na esperança de uma geração pelo direito ao aborto como uma dívida democrática de cidadania às mulheres, meninas e pessoas gestantes.

O aborto foi legalizado na Argentina em dezembro de 2020. A imagem das multidões nas ruas com a alegria da celebração percorreu o mundo confinado à casa pela pandemia de covid-19. O que celebravam as argentinas? A moral patriarcal se inquietava com a cena de alegria frente ao que os códigos penais descrevem como “crimes contra a vida” ou “crimes contra a pessoa”. É certo que a multidão celebrava a aprovação da lei de aborto, pois a clandestinidade do aborto mata, põe a vida de mulheres e meninas em risco, em particular daquelas mais pobres, migrantes, negras ou indígenas. Mas a celebração era para além da legalização aborto — era sobre como uma democracia laica protege o direito de cidadania das mulheres, meninas e outras pessoas com capacidade de gestar.

É palavra comum na política que a questão do aborto seria um tema difícil, até mesmo entre grupos progressistas. Mas o que haveria de tão singular, ou “sensível” na linguagem jurídica, que fez com que os ministros do Supremo Tribunal Federal no Brasil convocassem audiências públicas para a ação de anencefalia, em 2008, e, posteriormente, para a ação de aborto, em 2018? Foram oito anos de espera para que a corte julgasse pelo direito ao aborto quando o feto for incompatível com a vida extrauterina por anencefalia. Quando acompanho a onda verde que atravessa os países latino-americanos, com as recentes decisões da Corte Constitucional de Justiça na Colômbia (2022) ou da Corte Suprema do México (2021), que descriminalizaram o aborto, a decisão do STF parece acanhada. E, se não exagero nas palavras, parece até mesmo uma postura covarde diante do compromisso de promoção de equidade de gênero de nosso marco constitucional.

A clandestinidade do aborto mata, põe a vida de mulheres e meninas em risco, em particular daquelas mais pobres, migrantes, negras ou indígenas

“Nem presa, nem morta” é o nome da campanha pela descriminalização do aborto no Brasil. São organizações e ativistas que reclamam o que deveria ser óbvio em uma democracia laica: o acesso ao aborto legal e seguro é cuidado em saúde, e não questão a ser regulada por políticas criminais. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto na vida. Isso representa cerca de meio milhão de mulheres por ano. Pela aplicação da letra perversa do Código Penal, essas mulheres e meninas poderiam estar presas. Todos nós conhecemos cinco mulheres de 40 anos. É um exercício de imaginação ética — lembrar do rosto de cada uma delas e aplicar a abstração da lei penal. É imaginá-la em delegacias, enfrentando processos judiciais ou, tristemente, na prisão. O aborto no Brasil é crime por uma lei penal de 1940. Há excludentes de punição, ou seja, situações dramáticas em que o aborto não é punido, como em caso de estupro, risco de vida, e diagnóstico de anencefalia no feto.

Os excludentes de punição são conhecidos como modelo de causais nas reformas das leis de aborto. O movimento Causa Justa na Colômbia contestou na Corte Constitucional de Justiça exatamente os efeitos injustos das causais — negociar a perversidade da lei penal por excludentes de punição mantém um estado de coisas perverso contra as mulheres. O aborto não pode ser um crime, pois é apenas uma necessidade de saúde, assim já haviam entendido o Canadá, a Coréia do Sul e o México. O uso de leis ou políticas criminais nessa questão conduz a fanatismos persecutórios amplos, pois mantem a saúde e os direitos reprodutivos em permanente estado de fricção moral por táticas de estigma à educação sexual, como acontece no Brasil com programas de promoção à abstinência sexual entre adolescentes, ou de intimidação médica com a denúncia de mulheres em emergências obstétricas.

As histórias de mulheres denunciadas por equipes de saúde ou acorrentadas às macas de hospitais atravessam os países latino-americanos. El Salvador é um caso dramático deste perverso quadro moral. Em 2008, Manuela, uma jovem mulher de 30 anos, foi denunciada à polícia enquanto buscava socorro médico, pois sofria uma crise de pré-eclâmpsia pós-parto. O feto não sobreviveu ao parto que ela viveu sozinha, num banheiro perto de casa, porém Manuela foi denunciada pela equipe médica como tendo induzido um aborto, condenada por homicídio e presa. Depois de dois anos na prisão, sem cuidados para um câncer linfático que tinha desde antes da gravidez, morreu em abandono. O caso foi levado às cortes em El Salvador e à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2021 analisou o caso Manuela e concluiu ter sido ela inocente—uma decisão de cunho ético para os familiares que sobrevivem ao estigma do aborto—e descreveu os maus-tratos sofridos por ela como “tortura”.

O aborto não pode ser um crime, pois é apenas uma necessidade de saúde

É isso que faz a criminalização do aborto: tortura os corpos. Nos equivocamos no debate público e político sobre como enfrentarmos essa questão —um fanatismo patriarcal, com profundas raízes religiosas coloniais, nos confunde nas perguntas. Cortes e parlamentos passam a discutir questões metafísicas como o início da vida, e ignoram questões concretas: mulheres que não podem levar adiante uma gestação devem ser presas ou morrer por causa de um aborto inseguro? Passamos a nos perguntar quem é contra ou a favor, como se necessidades de saúde fossem matéria de plebiscito por maioria. Não ignoro que crenças religiosas devam ser cuidadas em uma democracia laica, porém não são elas a definir os fundamentos para as políticas da vida, como é o direito ao aborto. Nesse sentido, a guinada constitucional realizada pela Argentina, Colômbia ou México, ou em países como o Chile, com a recente proposta de norma constitucional para legalização apresentada a Assembleia Constituinte, ou pelo Equador com a progressiva reforma da lei de aborto por decisões da Corte Suprema, indicam um movimento feminista que atravessa fronteiras na América Latina.

A história dessas transformações nas leis de aborto pode ser contada pelos nomes dos presidentes, dos legisladores, ou juízes das cortes que tomaram as decisões. Uso o masculino intencionalmente. Não ignoro o quanto os representantes do poder são figuras fundamentais para as reformas das leis criminais dessa prática, mas a história não pode ser contada apenas desde suas perspectivas. Foram anos de mobilização social e política da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina com idas e vindas de projetos de lei ao Congresso Nacional; igualmente na Colômbia com o Movimento Causa Justa ou Mesa pela Vida das Mulheres, com revisões das decisões pela Corte Constitucional de Justiça; no México, movimentos feministas já haviam conseguido legalizar o aborto em quatro estados do país antes decisão da Corte Suprema ser tomada. Ao seguir os processos de transformação política nesses países, uma lição se torna evidente: a transformação não ocorre sem a permanente mobilização e resiliência dos movimentos feministas e quanto mais diversos eles forem, em alianças aos movimentos de pessoas trans e conscientes das interseccionalidades às questões raciais ou de classe, mais criativas são as demandas por mudança.

 Arquivo pessoal

Eu tenho esperanças sobre o que pode ser feito no Brasil em 2023. Não confundo esperança com um otimismo ingênuo — os dois afetos são diferentes na política. O Brasil possui um dos movimentos feministas, de mulheres e de pessoas trans dos mais diversos da América Latina e Caribe. Sabemos pelo vivido e pela ciência que a criminalização do aborto tem impacto nas pessoas mais pobres, nos corpos negros e indígenas, entre as mais jovens. Não é qualquer corpo a ser afetado e intimidado pela criminalização. O crime do aborto se faz sentença de precarização da vida para muitas de nós, mas não é igualmente vivido como um risco de vida. É assim que a agenda pela descriminalização, concretamente feita uma ação constitucional à espera de julgamento no STF, é condição de possibilidade para a defesa intransigente de valores democráticos, como a dignidade, a cidadania ou a vida em um marco de justiça de gênero.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB). Atualmente é pesquisadora visitante em Brown University. Acaba de lançar “Esperança Feminista” (Rosa dos Tempos, 280 págs., R$ 58,93), em coautoria com Ivone Gebara.