Onde fica o Brasil na questão do aborto? — Gama Revista
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Isabela Durão

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Reportagem

Onde fica o Brasil na questão do aborto?

Com avanços tímidos em relação a muitos vizinhos, o país avançou pouco em termos legislativos, mas tem evitado retrocessos

Leonardo Neiva 16 de Julho de 2023
Isabela Durão

Onde fica o Brasil na questão do aborto?

Com avanços tímidos em relação a muitos vizinhos, o país avançou pouco em termos legislativos, mas tem evitado retrocessos

Leonardo Neiva 16 de Julho de 2023

Uma pesquisa recente do instituto Datafolha apontou o aborto como um dos temas mais divisivos no Brasil hoje. De um total de mais de 2 mil entrevistados, cerca de 52% discordam total ou parcialmente que a decisão sobre interromper a gravidez deve ser um direito da mulher.

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Foi em 1940, há mais de 80 anos, que o Código Penal estabeleceu o aborto como crime — com a exceção explícita de casos de estupro ou em que o procedimento é a única maneira de salvar a vida da mulher. De lá para cá, o tema se tornou uma das principais reivindicações do movimento feminista no país e vem sendo discutido cada vez mais abertamente. Ainda assim, na prática e na legislação, pouca coisa mudou.

Pesquisas como a do Datafolha dão uma dica de por que é tão difícil avançar nessa discussão. A primeira e única alteração na lei penal sobre o aborto aconteceu há pouquíssimo tempo, em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a interrupção da gestação em casos de anencefalia — má formação do feto que faz com que o bebê sobreviva no máximo poucos dias após o nascimento.

Levando em conta as condições das mães nesses casos, o tribunal considerou que a decisão pelo aborto protegia seu direito à vida, dignidade e saúde, impedindo que muitas mulheres passassem por um processo de gestação torturante. Em 2016, ao julgar um caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estendeu o direito a todas as malformações incompatíveis com a vida.

Recentemente, uma nota técnica do Ministério da Saúde chegou a derrubar um documento de 2022, do governo Bolsonaro (PL), que recomendava um período de até 21 semanas de gestação para realizar o procedimento. Apesar de não alterar o Código Penal, onde não existe limitação de tempo, o governo revogou a nota após críticas, sob a justificativa de que ela “não passou por todas as esferas necessárias do Ministério”. Em 2023, o governo Lula (PT) já havia revogado uma portaria criada em 2020 por Bolsonaro, que orientava o médico a avisar a polícia em caso de aborto por estupro.

De acordo com a doutora em direito e pesquisadora da ONG Anis, Gabriela Rondon, é preciso olhar para além da legislação nua e crua. “A mudança da lei não é a única forma de esse debate avançar e as políticas públicas de saúde se aprimorarem. Dependendo do olhar, a gente consegue enxergar sim um desenvolvimento”, afirma.

Um ponto relevante tem a ver com a política de garantia do aborto pelo Ministério da Saúde, aponta a especialista. Entre o final dos anos 1990 e o início de 2000, a instituição estabeleceu com mais clareza o acesso a esse direito, definindo como profissionais de saúde devem oferecê-lo. “Foi fruto de muita mobilização de grupos organizados de mulheres e feministas”, diz Rondon.

O complexo agora

Desde 2017, também aguarda julgamento no Supremo uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, sob argumento de que a proibição viola direitos das mulheres à dignidade e cidadania. “É a maior possibilidade de avanço que a gente tem sendo discutida de fato”, considera Rondon. A corte prevê dar uma decisão final sobre o tema ainda em 2023.

Mas se isso resume a trajetória de avanços e garantia do direito no país, é preciso citar também a batalha política no sentido contrário. Segundo levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), de janeiro de 2021 a junho de 2022 foram apresentados 13 novos projetos de lei sobre o tema na Câmara dos Deputados — apenas um favorável à ampliação do direito, contra 12 que propõem ações opostas ou mais restritivas à legislação.

O Estatuto do Nascituro, que vem sendo analisado na Câmara há mais de 15 anos, impediria o aborto até em casos previstos em lei. O projeto, porém, teve sua votação obstruída na Comissão da Mulher em dezembro de 2022. Caso aprovado, se tornaria crime no país o aborto em casos de estupro, para salvar a vida da mãe e até manifestações favoráveis ao procedimento.

A onda e a marolinha

No contexto latino-americano, os avanços tímidos do Brasil no assunto contrastam com importantes conquistas recentes de países vizinhos. Na Argentina, o aborto foi legalizado em dezembro de 2020. Com decisões de cortes superiores de Justiça, os anos de 2021 e 2022 também trouxeram a respectiva descriminalização no México e Colômbia. Com um total de seis países da América Latina e Caribe onde a prática não é mais crime em boa parte dos casos, as conquistas do movimento feminista na região ganharam até nome: a onda verde.

Para Rondon, o Brasil se insere na discussão regional sobre o aborto, ainda que outros países vivam “um momento de maior efervescência e possibilidade de avanço”. Muitas das premissas da luta pela liberação são semelhantes, como a proteção integral à saúde da mulher e a visão do tema como uma dívida que os Estados e a democracia têm com elas. “Argumentos muito característicos da América Latina e que encontram ressonância aqui também”, define a pesquisadora.

No contexto latino-americano, os avanços tímidos do Brasil no assunto contrastam com importantes conquistas recentes de países vizinhos

Segundo um relatório elaborado pelo Clacai, o Consórcio Latino-Americano Contra o Aborto Inseguro , o Brasil se encontra num grupo de países que têm regulação mista sobre o tema — o aborto só não chega a ser penalizado em alguns casos específicos. Na região, apenas três restringem totalmente a prática: Honduras, República Dominicana e El Salvador.

No caso do Uruguai, uma lei sancionada pelo ex-presidente José Mujica autoriza a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana da gestação. Mas, durante o atual governo conservador, a prática por lá enfrenta dificuldades de acesso semelhantes às daqui: a pressão de grupos religiosos, a falta de instituições aptas a fazer o procedimento e a recusa constante por parte dos médicos.

E um dos casos recentes mais flagrantes de retrocesso aconteceu nos EUA, onde em 2022 a Suprema Corte anulou a decisão que há 50 anos protegia o direito ao aborto legal no país. Segundo a pesquisadora Gabriela Rondon, por se tratar da principal potência mundial, a mudança inevitavelmente afeta a discussão no Brasil — mas não deveria. “Temos um outro desenvolvimento de argumentos aqui, então não deve ter influência imediata porque são tradições jurídicas e constitucionais diferentes.”

Na União Europeia, por exemplo, a resposta do parlamento à decisão estadunidense foi em tom de crítica, com a instituição votando em seguida pela inclusão do aborto na Carta de Direitos Fundamentais do bloco econômico.

Na prática

Nos casos de aborto previstos em lei, em tese a mulher deveria ser acolhida e atendida sem problemas pelo serviço de saúde pública. Mas, segundo o médico Morris Pimenta, gestor do Hospital da Mulher, em São Paulo, a prática narra outra história. “A maioria dos serviços de saúde não está preparada para esse processo e acaba tendo menos segurança para executá-lo”, aponta. Boa parte deles encaminha a paciente para unidades maiores e especializadas no serviço, como o próprio Hospital da Mulher.

Dentro do hospital, a mulher é acolhida por uma equipe multiprofissional, passa por exames que definem as condições e idade gestacional, uma avaliação de risco e também suporte por meio de assistentes sociais e psicólogos. Caso a gravidez esteja em estágio avançado — a lei brasileira não requer autorização judicial nem estabelece um tempo máximo para realizar o procedimento, mas o Ministério da Saúde recomenda um limite de 21 semanas de gestação —, o processo, que costuma demorar no máximo duas semanas, é acelerado.

As premissas da luta pela descriminalização do aborto incluem proteção integral à saúde da mulher e a visão do tema como uma dívida que os Estados e a democracia têm com elas

A psicóloga Daniela Pedroso, que atende dentro do hospital no Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei, conta que mulheres vítimas de estupro — boa parte delas menores de idade — costumam enxergar a gestação como uma segunda violência. E, em praticamente todos os casos, elas passaram por situações de julgamento e descrença até mesmo dentro de casa.

“Muitas mulheres adultas passaram por uma violência sexual na infância ou adolescência e não foram acolhidas pelas próprias famílias”, revela Pedroso. O medo, a vergonha e a culpa, diz a profissional, fazem com que apenas 10% das vítimas busquem um serviço de emergência.

Direito para quem?

Para as poucas que chegam ao atendimento médico, o objetivo do ponto de vista psicológico é ressignificar o que aconteceu. “Essas mulheres fazem uma pausa em suas vidas nesse período. Queremos que elas voltem a viver normalmente, na medida do possível”, diz Pedroso.

Num país bastante desigual, questões sociais e raciais também afetam o acesso à prática. E as barreiras para o aborto de mulheres negras e periféricas são muitas, aponta a pesquisadora Emanuelle Góes, da Fiocruz. Elas começam pela dificuldade de acesso para quem mora nas periferias ao serviço de aborto legal, geralmente disponível em capitais e centros urbanos concentrados nas regiões Sul e Sudeste.

Mesmo as que passam por aborto espontâneo também enfrentam estigma

Outro problema é a discriminação na aplicação da lei. Segundo levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, mulheres negras e pobres são as que acabam respondendo criminalmente pela prática. “Mesmo as que passam por aborto espontâneo também enfrentam esse estigma”, diz Góes. “O discurso delas é colocado em dúvida. Como mulheres negras são vistas como hipersexualizadas, pensam que elas provocaram aquela violência sexual e não deviam ter acesso a esse direito.”

Por conta dos problemas e restrições de acesso, boa parte demora para buscar a prática junto ao atendimento público, gerando mais riscos, continua a pesquisadora. Outras acabam recaindo em clínicas clandestinas, onde realizam procedimentos inseguros. “Muitas morrem por causa disso”, afirma Góes. Uma frase corroborada por dados do IBGE e do Ministério da Saúde, que mostram que o aborto vitima mais mulheres negras que brancas no Brasil.

A enfermeira obstétrica e sanitarista Mariane Marçal conta que já recebeu um pedido de ajuda de uma mãe negra que precisava fazer um aborto após ter sido violentada. “Ela foi ao serviço de atendimento à mulher, mas lá foi encaminhada para a Defensoria Pública por uma assistente social para registrar um boletim de ocorrência”, conta. Só que o aborto legal no Brasil não só não requer a comprovação do estupro como deveria garantir o sigilo da vítima e paciente. “Criaram todo esse obstáculo, direcionando ela para a Justiça sendo que ela precisava de um serviço de saúde.”

“Corpos negros foram historicamente feitos para ser violados e servir. E, se estão aí para servir e parir, a impressão é de que o aborto não cabe”, afirma Marçal, que atua como assistente de coordenação de projetos e incidência política na ONG Criola, de proteção aos direitos das mulheres negras. “Enquanto mulher negra, é um debate essencial para a manutenção da nossa existência. É muito difícil pensar que a gente não tem direito a viver com plenitude e dignidade. A gente sobrevive.”

Muito caminho pela frente

Na visão da socióloga Maria José Rosado, cofundadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir no país, um Congresso majoritariamente conservador não dá esperanças de uma liberação do aborto por vias legislativas. “Nós feministas pensamos que o caminho é pelo STF, as instâncias judiciais, porque o Poder Legislativo é extremamente submisso às demandas do conservadorismo religioso.” O caminho seria semelhante ao tomado por países como Colômbia e México nos últimos anos.

Embora tradicionalmente rejeitado pela fé católica, movimentos de mulheres religiosas a favor da prática, como o Católicas pelo Direito de Decidir, foram surgindo no mundo ao longo da segunda metade do século 20. Ex-freira, Rosado argumenta que a autonomia do indivíduo deve vir acima do que prega a religião.

“Você pode manter sua fé e realizar um aborto quando considera que é aquilo que deve fazer. Um princípio antigo e fundamental do cristianismo é o do recurso à própria consciência”, declara. O foco do pensamento é também reduzir a culpa sentida por quem opta pelo processo, mostrando que há respaldo na própria doutrina católica.

Viver com dignidade é poder controlar seu próprio corpo e ter uma definição do que queremos para nossa vida

Para a socióloga, o problema deve ser enfrentado como questão de saúde pública, com a perspectiva de garantir a vida de milhares de mulheres que morrem todos os anos em clínicas de aborto clandestinas. “Viver com dignidade é poder controlar seu próprio corpo e ter uma definição do que queremos para nossa vida. No caso da maternidade, se a queremos, quando, com quem e de que forma realizá-la.”

A questão central não é ampliar ou investir na infraestrutura hospitalar, segundo Morris Pimenta, do Hospital da Mulher. “O Brasil é muito bem equipado com centros médicos que dão assistência ginecológica e obstétrica de forma disseminada”, afirma. A principal barreira, diz, ainda é a mentalidade. “É uma questão de vencer os tabus, trazer uma cultura do acesso ao aborto, direito garantido em lei há muito tempo. Hoje, outras agendas atravessam essa discussão e colocam dúvidas na cabeça da mulher”, conta o médico.

Se o assunto não avançou como deveria, certamente passou a ser discutido mais abertamente ao longo das últimas décadas, de acordo com a psicóloga Daniela Pedroso. Apesar de casos lamentáveis como o da menina de 11 anos vítima de estupro que teve seu aborto negado pela Justiça, eventos como esse hoje geram indignação e um debate mais amplo sobre o tema na sociedade, diz a especialista.

Além disso, para ela, há uma consciência maior hoje sobre o que configura violência sexual e a questão do consentimento. “Mas temos muito caminho pela frente ainda não só para conscientizar, mas também informar a sociedade sobre o aborto.”