Como proteger crianças e adolescentes na internet — Gama Revista
Sociedade

Como proteger crianças e adolescentes na internet

Cyberbullying, captura de dados, assédio, fake news… Com o uso da internet ainda mais amplificado na pandemia, especialistas falam sobre os riscos para jovens online e como evitá-los

Leonardo Neiva 21 de Outubro de 2021
Getty Images

Se toda criança ama um brinquedo, que tal presenteá-la com um Share Bear, o ursinho de pelúcia que “quer saber a sua cor favorita, o seu melhor amigo, os seus padrões de sono”, assim como “todos os outros pontos de dados que podem ser explorados para fins lucrativos”?

Ou então a Luz Noturna Wakey Wakey, que requer sua atenção 24h por dia, um dispositivo “totalmente viciante e algoritmicamente projetado para te atualizar sobre tudo o que você não precisa saber”?

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Esses brinquedos nada convidativos, é claro, não são reais, mas fazem parte de uma campanha da organização britânica 5Rights Foundation. Ela alerta para práticas na internet que podem afetar a vida de crianças e adolescentes, como o uso indevido de dados pessoais, o cyberbullying e a indução ao vício em telas.

Com a pandemia e a transferência de ainda mais atividades para ambientes online, como as aulas diárias e o contato com colegas e professores, esses problemas vêm se tornando mais claros e urgentes.

Por outro lado, a internet e as redes sociais representam uma gama cada vez maior de possibilidades e oportunidades. Hoje, elas oferecem acesso à informação e à educação, permitindo formas de interação importantes que antes não existiam e dando voz a grupos que não tinham muitos meios de se expressar. Portanto, a palavra-chave para lidar com os problemas, como alertam especialistas no ramo, não é proibir, mas sim educar.

Mas qual a melhor forma de pais, responsáveis e educadores lidarem com esses desafios tão presentes no cotidiano dos jovens? O que se pode fazer para educá-los para agir de forma mais segura na internet? E como responsabilizar empresas e aplicativos que vêm coletando esses dados, em muitos casos de forma ilegal?

Traduzida no Brasil pelo Instituto Alana, a Twisted Toys, da 5Rights Foundation é uma das campanhas que buscam alertar pais e responsáveis para o problema e reivindicar um ambiente online mais seguro para os jovens. Para entender a situação atual, Gama conversou com psicólogos, pesquisadores e especialistas em educação, que apontam quais são os maiores riscos hoje para crianças e adolescentes na internet e alguns dos melhores caminhos para chegar a um uso seguro da rede.

As influências online e o vício

Uma das consequências desse avanço das redes sociais e do uso da internet, especialmente num contexto de pandemia, é que o tempo online aumentou e o que se costuma passar com a família vem caindo, de acordo com a psicanalista Yael Gotlieb, que trabalha com crianças há mais de 30 anos. Segundo ela, isso faz com que algumas crianças e adolescentes passem a se espelhar mais em influenciadores do que nos próprios pais. O que pode ser um risco enorme, pois na internet essas pessoas são personagens, diz a especialista.

“Acabei de receber uma moça viciada em videogame. Ela me disse: lá sou personagem, consigo o que quiser. É muito mais legal ser poderosa do que viver no mundo real.” O que não significa que os jovens não sabem diferenciar o que é real do que não é. “Eles sabem que é mentira, mas vivem como se não fosse.”

Conversar com os filhos sobre o que fazem e veem na internet é o primeiro passo para uma vida digital mais saudável

E, se antes havia uma preocupação com o tempo excessivo que as crianças gastavam na internet, com a pandemia se tornou quase impossível contornar o problema, já que até ir à escola se tornou sinônimo de ligar a tela do computador. “Hoje é muito difícil voltar ao que era antes, reduzir o online na vida deles”, admite a psicóloga Ceres Alves de Araújo, especialista em crianças e adolescentes. “Para muitos jovens, criar personagens nas redes sociais se tornou um verdadeiro ritual de entrada na adolescência, para o bem e para o mal.”

Então ajudá-las a evitar o vício e a lidar com o nível de exposição nas redes é uma tarefa fundamental para pais e responsáveis, evitando episódios como os do cada vez mais recorrentes cyberbullying.

O que dizem as pesquisas

Responsável por monitorar a adoção de tecnologias de informação e comunicação no Brasil, o Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) realiza a pesquisa TIC Kids Online, que registra esses indicadores relacionados a crianças e adolescentes.

Embora tenha sido feita em março de 2020, pouco antes do início da pandemia, a última pesquisa apresenta informações importantes, algumas delas apenas intensificadas pela necessidade de isolamento e o aumento das relações à distância.

Restringir o acesso tem efeitos negativos, pois deixa a criança despreparada para lidar com os desafios do ambiente online

Ao sofrer algum tipo de violência na internet, a maioria dos jovens — as meninas ainda são as principais vítimas — não reporta o problema para professores ou pais, mas sim para colegas da mesma idade. “Essas crianças e adolescentes acabam se ajudando tanto no desenvolvimento de habilidades online quanto de interações sociais”, afirma a coordenadora da pesquisa, Luísa Adib Dino.

Além disso, as pesquisas identificam que conhecer o ambiente online é essencial para que pais e responsáveis consigam orientar os jovens a navegar de forma mais segura — um aspecto que acaba remetendo às desigualdades sociais e às condições financeiras das famílias, já que muitas não tiveram nenhum tipo de educação digital.

A educação nas telas

O professor de artes do ensino básico Luís Tonelotto, 33, viralizou nas redes sociais em julho de 2020 ao questionar as adaptações feitas pela educação brasileira durante a pandemia. Em especial, as dificuldades de acesso e compreensão do conteúdo por boa parte dos alunos do sistema público.

Apesar dos mais de 1,2 milhão de seguidores que angariou no TikTok, o professor conta que nunca foi grande fã de redes sociais. Hoje, no entanto, ele reconhece a importância dessa que considera uma porta gigantesca de comunicação, mas sem deixar de lado os problemas que ela apresenta.

“Ainda acontecem atividades sem a devida explicação e há uma grande dificuldade de contato entre aluno e professor”, afirma Luís. “Toda a estrutura de educação necessária não aconteceu, o que afetou o estudante. E a pressão pelo desempenho fez com que muitos alunos se sentissem culpados e incapazes, sendo que não é culpa deles.”

Além disso, segundo o educador, a internet seria um ambiente muito mais propenso a propagação de fake news, que podem tanto promover desconhecimento para os mais jovens quanto alterar sua percepção de realidade de forma crucial.

Bombardeado diariamente com relatos de estudantes que denunciam desde cyberbullying até casos de assédio, o professor também usa suas redes como plataforma para discutir e potencializar esses temas, que fazem cada vez mais parte do cotidiano dos jovens.

“Para além da questão tecnológica, deve haver um olhar mais humanizado no retorno à sala de aula, preocupado com a questão sócio emocional e que fale sobre problemas como violência de gênero, homofobia e racismo, que já eram reproduzidos de forma sistemática na escola e agora vieram ainda mais à tona na internet.”

Bullying digital

De acordo com a psicóloga e diretora da SaferNet Brasil, Juliana Cunha, o maior medo dos pais quanto à segurança dos jovens na internet ainda está ligado a questões como aliciamento sexual e pedofilia. Por outro lado, a maior parte dos relatos que a instituição recebe é de cyberbullying, geralmente praticado por outros jovens. “Qualquer ação que envolve assédio sexual de menores é muito grave, mas verificamos que boa parte dos jovens já sabe lidar melhor com a situação e entende os riscos de conversar com estranhos”, explica a diretora da associação, que tem como foco a promoção dos direitos humanos na internet.

O cyberbullying costuma trazer preocupação para o cotidiano deles, principalmente porque existe uma dificuldade de saber como agir nesses casos. “Eles têm medo de quebrar o silêncio e o agressor piorar a violência, ou de serem excluídos de determinados grupos”, conta a especialista.

Em casos de violência na escola, a pessoa deixa de ser alvo ao sair do local. Na internet, ela está exposta em qualquer lugar

“Em casos de violência no ambiente escolar, quando sai dali, a pessoa deixa de ser alvo. Na internet, ela está exposta em qualquer lugar, então muitas vezes precisa mudar de escola, de endereço e até de aparência para fugir daquilo. Por isso é importante não subestimar o problema na internet, que tem maiores chances de se potencializar.”

Quem usa os dados

É preciso lembrar que a missão é proteger as crianças na internet, e não da internet, diz Pedro Hartung, diretor de políticas e direitos da infância do Instituto Alana. Afinal, mais do que nunca, a internet é um ambiente fundamental para o acesso à informação e à educação. E que pode ser um instrumento para promover os direitos humanos e de expressão, diz Hartung.

Segundo ele, a internet é menos uma praça pública, onde tudo vale, como boa parte das pessoas ainda imagina, e mais uma espécie de shopping. Dentro dessa lógica, sites e aplicativos seriam as lojas. A diferença é que, em vez de dar dinheiro ou passar um cartão, você paga pelo serviço que eles oferecem ao entregar seus dados pessoais de bandeja.

Muitos aproveitam a alta presença de crianças e adolescentes online e estimulam o uso constante com técnicas de design persuasivo

“Muitos aproveitam a alta presença de crianças e adolescentes online e estimulam o uso constante com técnicas de design persuasivo”, afirma Pedro. “Isso acaba engajando especialmente indivíduos que não têm controle inibitório, porque ainda estão em desenvolvimento e se relacionam com esses ambientes de forma diferente dos adultos.”

Ao citar esse tipo específico de design, ele se refere a apps gratuitos que usam recursos como cores, musiquinhas, notificações e compartilhamento constante em redes sociais como ferramentas de atração, a exemplo de um grande cassino digital. Com isso, vão coletando dados dos usuários de forma contínua, que mais tarde são usados para fins comerciais. Trata-se, aliás, de uma prática ilegal, que entra em confronto com o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente sobre a publicidade infantil.

Caminhos possíveis

Em primeiro lugar, educar tem mais efeitos positivos do que restringir. Esse é um aspecto importante apontado pelas pesquisas do Cetic, que mostram que proibir o acesso à internet pode deixar a criança despreparada para lidar com os desafios daquele ambiente. Até por isso, estabelecer um diálogo franco e aberto com o jovem é o método mais eficiente, destaca Luísa, pesquisadora da instituição.

E liberar não significa deixar de lado um acompanhamento mais próximo das atividades desses jovens online. Mesmo com o cansaço e o desafio extra representado pela pandemia, as psicólogas Ceres e Yael recomendam que os pais busquem sempre fazer esse monitoramento.

Para Ceres, vale até ter acesso às senhas dos jovens nas redes, desde que seja uma coisa combinada previamente. Caso contrário, será uma invasão de privacidade grave, que pode gerar quebra de confiança. E, se o pai quer que a criança passe menos tempo online, também tem que dar o exemplo. “Já conversei com crianças que pegaram a mania de puxar o rosto das pessoas para elas, porque tem pais que ficam com a cara colada no celular e conversam com os filhos sem olhar para eles”, diz a psicóloga

Além do monitoramento online, Yael aponta a importância do esforço para se conectar com os jovens fora das telas. “Fazer uma refeição juntos, contar uma história à noite. Põe a criança sentada no chão da cozinha e pergunta como foi o dia dela.”

Responsabilidade compartilhada

Para combater o cyberbullying, Juliana, da SaferNet, diz que o mais importante para pais ou responsáveis é criar em casa um ambiente de confiança, em que a criança ou adolescente se sinta confortável para contar o que aconteceu, sem medo de um possível castigo.

Em relação às crianças, pode-se recomendar que, caso estejam sofrendo ataques, recorram a mecanismos de denúncia oferecidos pelas próprias plataformas. Além disso, se for alguém do convívio delas, “elas devem buscar a mediação de um professor, um adulto, uma pessoa em quem confiem”, aponta Juliana.

Também deve-se evitar, no entanto, jogar toda a responsabilidade sobre os ombros dos pais ou responsáveis. Como na internet muitos programas são construídos com o intuito de atrair e ludibriar as crianças de alguma forma, Hartung considera que é igualmente importante exigir do governo uma fiscalização dessas empresas, assim como desenvolver uma leitura online mais crítica nas crianças.

“Embora não pareça, essas práticas, além de violar os direitos dos jovens, podem afetar seu desenvolvimento. As empresas exploram as vulnerabilidades delas de forma injusta e abusiva. Podem usar, por exemplo, para veicular comidas e bebidas com alto teor de sal, gordura e açúcar, tendo como consequência o aumento da obesidade infantil.”

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Este conteúdo é parte da série “Crianças e adolescentes têm direito a um futuro no presente”, que tem o apoio do Alana, organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança e fomenta novas formas de bem viver.

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