Tia Dag: 'Para educar, precisa se colocar no lugar do outro, sem discurso moral' — Gama Revista
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Tia Dag: 'Para educar, precisa se colocar no lugar do outro, sem discurso moral'

A fundadora da ONG Casa do Zezinho, que educa jovens no Capão Redondo, em São Paulo, fala sobre o abandono escolar na pandemia e o impacto da desigualdade no ensino brasileiro

Leonardo Neiva 10 de Outubro de 2021

Tia Dag: ‘Para educar, precisa se colocar no lugar do outro, sem discurso moral’

Leonardo Neiva 10 de Outubro de 2021
Comunicação Casa do Zezinho

A fundadora da ONG Casa do Zezinho, que educa jovens no Capão Redondo, em São Paulo, fala sobre o abandono escolar na pandemia e o impacto da desigualdade no ensino brasileiro

No coração do Capão Redondo, bairro da periferia da zona sul de São Paulo, desponta um telhado multicolorido, pintado com os tons do arco-íris. Debaixo dele, se esconde uma quadra poliesportiva e dezenas de salas de aula, que já receberam quase 30 mil alunos carentes da região.

Fundada em 1994, a ONG Casa do Zezinho é a menina dos olhos da pedagoga Dagmar Rivieri, 67, conhecida por todo mundo como Tia Dag. Hoje presidente da instituição que ajudou a criar, ela está ocupada com a retomada das atividades presenciais, em meio ao avanço da vacinação e o aparente arrefecimento da pandemia. No momento, sua principal preocupação é reconquistar a atenção dos jovens pressionados pela necessidade de trabalhar e de levar algum dinheiro para dentro de casa devido à crise.

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“As crianças e os adolescentes estão voltando, mas os jovens estão desesperados por trabalho, por causa da pobreza que estão enfrentando por lá”, conta a educadora.

Apesar de ser formada em pedagogia e ter trabalhado com educação por toda a vida, ela diz que não chegou a exercer a profissão por muito tempo. Começou a alfabetizar na periferia ainda adolescente, aos 14, no período conturbado da ditadura brasileira. Depois, passou a ensinar filhos de exilados políticos e também jovens moradores da periferia que ia abrigando em sua casa, ameaçados pelos esquadrões da morte.

Essa foi a semente que, décadas depois, acabou levando à criação da Casa do Zezinho. O espaço, que conta com 80 funcionários, oferece aos jovens aulas de disciplinas regulares como português e inglês, mas também oficinas de arte, aulas de esporte e em áreas como foto, vídeo e, recentemente, até mesmo programação de games.

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Para atuar com educação na periferia, Tia Dag defende uma maior proximidade e diálogo com os jovens, numa abordagem que demonstre mais compreensão da realidade do outro do que um discurso moralizador. “Precisa conhecer as pessoas e ver aquilo com o que cada um de nós pode contribuir para melhorar e mudar tudo isso”, afirma a educadora.

Na conversa com Gama, Tia Dag fala ainda sobre as demandas dos jovens de periferia hoje, o impacto da desigualdade no ensino brasileiro e a importância das pequenas ações para ajudar a mudar a educação do país para melhor.

Voltamos 20 anos no tempo em todas as questões. A fome, o desespero… Quase 40% dos jovens não devem voltar para a escola

  • G |Qual é a sua missão na Casa do Zezinho?

    Tia Dag |

    A missão da instituição sempre foi a educação, a gente sempre se preparou para isso. Mas, hoje em dia, ficou muito mais difícil, porque muitos jovens saíram para trabalhar, para vender bala na rua, e outros caíram para a violência. Então agora acho que nossa maior missão é reconquistar, seduzir todo mundo a voltar para a Casa do Zezinho. As crianças e os adolescentes estão voltando, mas os jovens estão desesperados por trabalho, por causa da pobreza que estão enfrentando por lá.

  • G |Você está falando da crise causada pela pandemia, certo? Como isso impactou o trabalho de vocês?

    TD |

    Foi um grande impacto. Teve um aumento impressionante dos casos de violência doméstica, violência contra a mulher e abuso infantil. Acredito que, com essa pandemia, voltamos 20 anos no tempo em todas as questões. A fome, o desespero… Então vamos ter que fazer um trabalho de sedução muito grande. Quase 40% dos jovens não devem voltar para a escola. E tem que entender que eles ficaram dois anos praticamente sem aula, porque não têm internet, não têm computador. Foi o caos. Quando o pessoal fala que estou exagerando, lembro que chegaram crianças aqui que já não sabiam mais ler nem escrever. A conta que vai cair no colo Brasil vai ser muito grande.

  • G |Como é a rotina da Casa?

    TD |

    Os pequenos, as crianças de seis a 12 anos, estão voltando. Elas fazem uma série de oficinas de arte, cerâmica, mosaico, e tem a piscina. Jogos ainda não dá, porque estamos na pandemia, mas antes treinavam também jiu-jitsu, ioga… Estamos voltando com todos os cuidados e todos os protocolos. Os pequenos e os adolescentes estão felizes, vamos dizer assim. Praticamente há duas semanas, 100% puderam retornar. Agora, a minha maior preocupação são os jovens. A gente tem oferecido para eles aulas de gastronomia, foto e vídeo… Estamos montando uma sala chamada Zezinho games, onde vão aprender a fazer programação para jogos, uma coisa que seduz pra caramba. Mas, para isso, eles têm que voltar a fazer português, para poder ler e escrever. Vai ser um baita desafio para a Casa do Zezinho. O Capão Redondo não oferece nada para eles, é uma favela enorme. Para ter uma ideia, quase 200 ONGs da região fecharam. Imagina a consequência disso. Também estamos conversando com eles, perguntando aos jovens o que querem fazer. É aquela sedução para mostrar por que vale a pena voltar, e não continuar vendendo bala no farol. Porque, com todo esse tempo sem escola, a competição vai ficar acirrada. Na escola particular teve aula.

  • G |Caíram também as doações nesse período?

    TD |

    Recebemos bastante doação de cesta básica. Nós começamos a gravar vídeos no Facebook — porque todo mundo tem Facebook — como se fosse aula. Coisa de um minuto e meio, uma aula rápida de gastronomia. E mandamos mantimentos para eles prepararem em casa. Se era aula de cerâmica, mandávamos argila. Fiz muita questão de criar a cesta pedagógica, com caderno, caneta, livros, além das discussões com os professores pela internet, para não ficar vazio. Então a gente foi trabalhando isso. Realmente diminuiu o número de doações, mas a gente é bom de briga, viu?

A sociedade  precisa atravessar a ponte da João Dias e começar a dar e também a ouvir, porque todo mundo tem algo para ensinar

  • G |Você sempre teve vontade de trabalhar com a educação de jovens de periferia?

    TD |

    Na época da ditadura, comecei com 14 anos a alfabetizar na favela. Era um caos total. Você vai se envolvendo, não tenha dúvida. Depois comecei a trabalhar na minha casa. Como pedagoga, eu logo era mandada embora, porque pensava muito diferente, e imagina como era isso naqueles anos. Aí comecei a dar aula para filhos de exilados políticos argentinos, chilenos, brasileiros, e punha todo mundo junto lá em casa. O que mais me marcou, que me fez decidir abrir um negócio de educação, foi quando surgiram esses esquadrões da morte. Os caras colocavam num poste quem ia morrer em sete dias se não saísse da favela. Comecei a procurar lugar para esconder essas crianças. Todo mundo tinha medo, ninguém queria, e eu levei tudo para minha casa. Mais tarde, eu e meu marido compramos uma casa maior. Chamei uma amiguinha da USP e começamos assim a Casa do Zezinho. É a minha paixão, esse desafio maravilhoso. Já passaram quase 30 mil jovens pela casa. Ser Zezinho é uma filosofia de vida no bairro.

  • G |Quais têm sido às demandas dos jovens?

    TD |

    A demanda é TI, é informática, porque é onde eles estão encontrando a barreira para trabalhar. Se você não sabe o mínimo, não consegue o emprego. Daí veio essa nossa ideia do game, da programação, do web designer. Vamos por aí agora, porque é a linguagem do século 21. Não adianta você ficar querendo que o jovem faça só história ou geografia que ele não vai. Só se apresentar isso de uma maneira mais dinâmica, mais enfronhada dentro da tecnologia. Eu acredito muito sim que, com essas salas novas [as Zezinho Games], eles vão voltar.

  • G |Que histórias você pode compartilhar desses 27 anos da Casa do Zezinho?

    TD |

    Eu tenho 80 funcionários. Para ter uma ideia, 80% deles se formaram na Zezinho. Já foram para a faculdade e escolheram um emprego, a ideia é que eles tomem toda a Casa. Uma história que nunca esqueci foi a de um menino que entrou aqui dentro em cima de um cavalo. Falei para deixar entrar, não tem problema. O cavalo estava todo machucado, cheio de feridas, e o menino me pediu para benzer o animal para ele. Peguei umas folhas e comecei a fingir que estava benzendo o cavalo, enquanto ligava para o veterinário e perguntava o que podia fazer.  Quando olhei para o portão, vi um cara armado, porque eu farejo arma à distância. Ele me falou que, na hora que saísse, ia matar o menino por ter roubado o cavalo dele. O garoto tinha oito anos. Falei: “Mas você é burro mesmo. Eu estou dando aveia, cuidando, fazendo tudo para seu cavalo melhorar. O menino trouxe para isso. Por que não coloca ele para cuidar do cavalo?” No fim, o menino acabou cuidando do cavalo.

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  • G |Para o processo de educação na periferia, esse diálogo é importante?

    TD |

    Tenho mais facilidade de ter essa conversa lá. Hoje em dia, o pessoal do Capão, do tráfico, todos me respeitam muito. Não estou lá de brincadeira, é coisa séria. Outra história que o pessoal gosta muito que eu conte é a de uma menina de dez anos que estava se prostituindo. Eu descobri, cheguei nela e perguntei quanto estava ganhando. “Cinco real por transa.” Aí ela vira para mim e pergunta: “Tia Dag, você nunca pensou em ser puta?” Respondi: “Eu não, mas, se pensasse, seria em Brasília, não no Parque Santo Antônio [periferia da zona sul]. Lá você ganha 3 mil por transa, não pega doença, logo compra um apartamento, aparece um conde italiano e te leva dali.” Pensei que tinha exagerado nas minhas pedagogias. Mas, depois de três dias, a menina me procurou dizendo que queria ser puta em Brasília. Eu combinei com ela de pagar R$ 5 por dia para ela fazer exercícios e estudar. Hoje ela é dentista. Para educar, precisa se colocar no lugar do outro, sem discurso moral. Porque é fácil falar mal, mas vai lá e fica no lugar dela. Vai morar num barraco três por quatro, sem carinho. Essa é a melhor forma de amar essa população. Eles não são mais os excluídos. Excluído é a gente. Só no Capão, tem 1,5 milhão de habitantes. A sociedade que se diz organizada precisa atravessar a ponte da João Dias e começar a dar e também a ouvir, porque todo mundo tem algo para ensinar. Isso é o que eu mais martelo. Fico muito brava com isso. A pessoa fala que tem uma empregada há 15 anos. Por que nunca incentivou ela a estudar, a mudar de vida? O Brasil é muito provinciano. Os jovens é que têm que começar essa briga.

O que eu quero falar é para todo mundo acordar e partir para essa luta do ensino. Comece em casa

  • G |Como a gente faz para lidar com as desigualdades no ensino?

    TD |

    Precisa trazer para você, mostrar que há outras possibilidades. A primeira coisa que você tem que trabalhar nesses jovens é a autoestima. A pessoa mora na favela e pensa que não vai sair daquilo. Ela lê e escreve mais ou menos, vai trabalhar onde? Ah, mas por que preferem o tráfico, e não um serviço legal? Você tem noção de quanto eles ganham no tráfico? Vão morrer em três anos, mas ganham muito bem. O tráfico é o meu maior concorrente, porque dá grana. Um menino de 12 anos que fica só tomando conta de uma “biqueira” ganha R$ 200 por semana, mais que a mãe dele. A forma de brigar com isso é oferecer oportunidades. Pegar um Jovem Aprendiz e começar a ensinar, mostrar outras vertentes. Eu tenho Zezinho fazendo universidade nos Estados Unidos, no Chile, na Argentina. O nosso trabalho é sair da favela e abrir o mundo. Levar o menino para programas culturais ou até para a praia. Eles são criados na base da pancada, da porrada. “Não sei por que eu tive você. Vai trabalhar. Não vou sustentar vagabundo.” É um mundão que muita gente desconhece. E não é vir pintar muro. Eu fico louca com isso. Disso não precisa. É ver o que pode ensinar, de que forma incentivar. Estou fazendo uma campanha para as pessoas pagarem uma inscrição no Enem. Custa R$ 180, muito dinheiro. Então apadrinha um, paga para o menino. Não é um trabalho monstro, é uma coisa pequena que todo mundo pode fazer.

  • G |Como você vê o impacto das políticas atuais para a educação brasileira?

    TD |

    Não vejo nenhum. Vão mudar o ensino médio no ano que vem, fazer cursos profissionalizantes, mas só vou acreditar vendo. Os próprios professores de escola pública são rejeitados, não é possível. Imagina dar aula para uma sala com 60 alunos. Você não é cursinho, não é uma equipe.  Tem escolas que têm sala de computador que fica trancada. E eu estou falando de São Paulo, imagina lá para Norte e Nordeste como está o negócio. Espero que realmente entrem de cabeça na educação pública, que é uma chance de tudo melhorar, mas só em 10 ou 15 anos. Outro dia vi uma pesquisa que dizia que, a cada dez brasileiros, seis estão passando fome. Você passa fome por dois dias, no terceiro vai acabar arrumando alguma coisa. O número de assaltos e assassinatos aumentou, eles não têm medo de mais nada. A sociedade, o governo e todos nós somos responsáveis por isso. Temos que estar lá juntos.

  • G |Você tem um ideal para a educação brasileira?

    TD |

    A primeira coisa é respeitar como se vive em cada local. Não vem dizer para mim que o moleque da periferia, do Capão, é igual ao de Heliópolis. Não é, é outra cultura. No Amazonas, a cultura é diferente da de São Paulo. Apesar de sermos milhões, é importante ter a visão do um. Ensinar o que é interessante naquela região: cuidar da floresta, reflorestar, estudar bastante biologia. Não pode massificar o ensino dessa maneira, de jeito nenhum. Às vezes, os “manos” me pedem para abrir uma Casa do Zezinho em outro lugar. Eu chamo eles para virem e ensino aqui como abrir, porque não é igual. Assim a gente vai abrindo várias ONGs em outras quebradas, e eu fico um ano dando assistência. Acho que vou morrer professora, não vai ter jeito. Hoje o filho da empregada não quer mais ganhar o berço do patrão. Está diferente. Eles estão fortes por causa da guerra em que vivem. No Brasil, se cada cidade cuidasse de sua cultura, da sua região, ia ser muito melhor. Não sei, eu penso assim.

  • G |O que dá para fazer agora?

    TD |

    O que eu quero falar é para todo mundo acordar e partir para essa luta do ensino. Comece em casa. Ah, mas se eu for na favela, vão me dar tiro. Claro, você chega com uma cesta básica, mas não perguntou o que a pessoa come. Eu fico com muita raiva disso. Precisa conhecer as pessoas e ver aquilo com o que cada um de nós pode contribuir para melhorar e mudar tudo isso.