O debate LGBTQIA+ nas escolas — Gama Revista
Ines Fraile / Getty Images

Como anda o debate LGBTQI+ nas escolas?

Diante da onda conservadora, instituições de ensino se acanham na discussão de sexualidade e gênero. Em meio aos retrocessos, educadores e iniciativas regionais buscam caminhos para combater a LGBTfobia

Betina Neves 07 de Julho de 2021

“As pessoas LGBTQIA+ costumam ter memórias terríveis da vida escolar”, diz o antropólogo Ricardo Braga, mestre e doutorando na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com pesquisas na área de gênero, corpo e sexualidade. “A escola as expulsa do seu espaço de muitas formas.”

Sofrer agressões físicas de outros alunos, aturar preconceitos muitas vezes por parte de professores e coordenadores e não se ver representado em materiais didáticos são algumas das situações vividas por esses estudantes. O bullying com os que fogem dos estereótipos de gênero – o menino que gosta de rosa ou a menina que joga futebol – continua, e jovens trans passam por situações constrangedoras para usar o banheiro.

Na Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, de 2016, 73% dos estudantes LGBTQIA+ disseram já terem sido agredidos verbalmente, e 36%, fisicamente. Mais recente, a Pesquisa Nacional por Amostra da População LGBTI+, lançada pela startup Todxs no fim de 2020, mostrou que sete em cada 10 pessoas LGBTQIA+ não se sentem seguras para declarar suas identidades de gênero ou orientações sexuais no ensino médio.

“A escola reproduz o que acontece na sociedade. Se ainda temos machismo, racismo, gordofobia e LGBTfobia, essas práticas vão estar presentes ali”, diz Braga. “Ao mesmo tempo, ela tem uma enorme contribuição a dar nesse sentido, porque é ali que se formam as futuras gerações.” Segundo ele, apesar das discussões cada vez mais latentes sobre o tema, inclusive a recente criminalização da transfobia e homofobia, o que tem se visto nos últimos anos é um silenciamento das escolas em relação à diversidade sexual e o combate às discriminações e violências de gênero.

Sofrer agressões físicas de outros alunos, aturar discriminação por parte de professores e coordenadores e não se ver representado em materiais didáticos são algumas situações vividas por esses estudantes

Um passo para frente, dois para trás

Os anos 2000 foram marcados por uma série de avanços nas políticas públicas educacionais voltadas para a inclusão da população LGBTQIA+. Em 2001, o Plano Nacional de Educação colocou como objetivo a promoção de uma sociedade menos desigual no que diz respeito à gênero e sexualidade, propondo inclusive avaliação de materiais didáticos para retirar textos discriminatórios ou que reproduzissem estereótipos. Em 2004, durante o governo Lula, foi lançado o programa “Brasil sem Homofobia”, que, na área da educação, visava o combate da discriminação por orientação sexual com formação de professores, divulgação de estudos científicos e produção de materiais educativos. Na época, também foi criada a SECADI – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, extinta em 2019 pelo governo Bolsonaro.

Posteriormente, em meio à insurgência de grupos conservadores que se opõem às discussões de gênero no mundo todo, o modo como a questão era abordada nas escolas, que já era feito de forma tímida, foi minguando. O símbolo do retrocesso é a polêmica ao redor do que foi chamado pejorativamente de “kit gay”, um material didático chamado “Escola sem Homofobia” dirigido a professores que acabou engavetado em 2011 com a pressão das bancadas evangélica, católica e da família. Daí, começaram a vir à tona projetos de lei do movimento “Escola sem Partido”, que previa limitar o que o professor podia falar em sala de aula e, na maioria dos casos, vetar menções a política, gênero e educação sexual.

Nas últimas versões tanto do Plano Nacional de Educação quanto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento que define as linhas gerais do que os alunos das 190 mil escolas do país devem aprender –, foram suprimidas todas as referências à gênero e diversidade sexual, apesar de ambos versarem sobre princípios de equidade no acesso escolar e inclusão universal nesses espaços.

Em 2019, o governador João Doria mandou recolher uma apostila de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual de São Paulo que explicava os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, dizendo que “não é razoável que crianças e adolescentes tenham esse tipo de assunto na escola” e que “não concordava e nem aceitava apologia à ideologia de gênero”.

“Falar de gênero passou a ser demonizado, sobretudo nas escolas. Nas minhas pesquisas, já conversei com professores que assumem ter medo de processo se abordarem esse tema, dizendo até que preferem não se meter se virem algum comportamento LGBTfóbico entre os alunos porque ‘essas coisas são muito complicadas’”, diz Ricardo Braga, da UFRN. Este ano, um estudante de 11 anos de uma instituição estadual de Campinas (SP) foi reprimido por pais de alunos e funcionários da escola por ter proposto um trabalho sobre o mês LGBTQIA+. Houve denúncia e protestos e a ex-diretora e uma professora acabaram afastadas.

Falar de gênero passou a ser demonizado, sobretudo nas escolas. Nas minhas pesquisas, já conversei com professores que dizem ter medo de processo se abordarem esse tema

“Com os movimentos neoconservadores, t­em-se entendido que discutir gênero e sexualidade nas escolas tira a inocência das crianças, e que evitar o assunto é uma forma de “protegê-las”. Mas quais crianças estamos protegendo assim? Só as que estão dentro da norma cisgenêro e da matriz heterossexual. As outras estão sofrendo abusos psicológicos e apanhando todos os dias”, diz Braga.

Apesar de movimentos similares terem aflorado em países como México, Estados Unidos e Itália, em outros, os ventos têm soprado para outro lado. Em 2018, a Escócia se tornou o primeiro país a incorporar educação sobre os direitos LGBTIQ+ nas escolas, com objetivo de combater a homofobia e a transfobia e integrar a identidade dessa parcela da população. Na Inglaterra, passou a vigorar em 2020 um novo currículo de educação sexual que cobre tópicos como relacionamentos homoafetivos e transgêneros.

O papel dos professores

“Professores ainda são grandes produtores do sofrimento dos LGBTQIA+ nas escolas”, diz o antropólogo Ricardo Braga. Ele conta como, nas suas pesquisas de campo, já chegou a ver educadores disseminando informações equivocadas, como uma professora de biologia que disse que, do ponto de vista biológico, homens se sentem atraído por mulheres e mulheres por homens, e que tudo o que foge a isso é errado. Ele diz que muitos ainda resistem a adotar nomes sociais de alunos travestis e transexuais, apesar do uso ter sido autorizado por uma resolução do Ministério da Educação, em 2018. “A questão é complexa porque é inevitável que professores tragam suas representações ideológicas, muitas vezes com caráter religioso, para dentro da sala de aula.”

Para ele, a relação íntima de religiões com muitas escolas no Brasil é um entrave para o acolhimento dos alunos LGBTQIA+ – o que aparece em situações como a de uma escola adventista de Belém (PA) denunciada por homofobia por causa de uma prova de língua portuguesa que trazia perguntas como “homossexualismo têm perdão?” e “como evitar o homossexualismo?” (o termo “homossexualismo” não é mais usado por remeter a uma condição patológica). A própria ideia de “ideologia de gênero” veio de uma pauta difundida mundialmente pela Igreja Católica.

Para Sayonara Nogueira, professora, ativista trans, membra do Comitê Trans da Rede Ibero-americana de Educação LGBTI e vice-presidenta do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), o problema está na formação dos professores: universidades não têm disciplinas obrigatórias que tratem do tema e há poucos programas de educação continuada voltados para isso. “A maioria chega na escola completamente despreparada para lidar com a diversidade”, diz.

A relação íntima de religiões com muitas escolas no Brasil é um entrave para o acolhimento dos alunos LGBTI+

Fundado em 2017, o IBTE é formado por 47 professores, a maioria da rede pública, que atuam por meio de projetos e ferramentas pedagógicas dentro das escolas onde trabalham e como convidados em outras instituições e secretarias de educação pelo país. Eles defendem que a questão LGBTQIA+ não seja discutida apenas em palestras ocasionais – o que inclusive pode contribuir para a “exotização” dessas pessoas –, mas que seja incorporada no conteúdo das matérias no dia a dia. Um professor de física pode, por exemplo, chegar na temática a partir da formação do arco-íris – para então falar da bandeira LGBTQIA+. Já quem ensina matemática pode abordar estatísticas de violência contra pessoas trans ao ensinar conceitos sobre porcentagem.

“Além disso, preparamos mecanismos para orientar professores a mediar conflitos e casos de bullying por meio do diálogo, usando os princípios da justiça restaurativa [que procura discutir formas de reparação ao dano causado além da punição]”, conta Nogueira. O instituto ajuda a desenvolver competências que são apontadas no próprio BNCC, como a consciência social, que fala de importância de se colocar no lugar do outro e de respeitar a diversidade.

No Mães pela Diversidade, ONG de acolhimento para mães de filhos LGBTQIA+ com mais de dois mil membros, o trabalho é diretamente com as famílias. “Nós fortalecemos as mães para elas irem em defesa dos filhos nas escolas”, diz Priscila Karin, integrante do grupo e coordenadora de uma escola estadual na região de Guaianases, em São Paulo (SP). Já na instituição onde trabalha, Karin diz que é preciso introduzir o debate aos poucos e orientar a equipe toda, da secretaria aos professores, desde o básico: “Várias coisas sobre a discussão de gênero podem parecer óbvias, mas ainda são desconhecidas para muita gente.”

Há esperança

Apesar dos retrocessos recentes, há escolas agindo contra a LGBTfobia. São notórios casos como o do Centro Educacional Asa Norte (Cean), em Brasília (DF), conhecido por abraçar a diversidade depois de um longo processo com ações em diversos níveis, e da Escola Estadual Professor Joaquim Luiz de Brito, de São Paulo (SP), que realiza um festival desde 2013 para discutir diversidade, gênero e orientação sexual.

Para os ativistas da área, o debate vem sendo mais trabalhado nas escolas públicas. “No ensino privado, há medo de abordar temas polêmicos que podem desagradar algumas famílias e fazer perder alunos”, diz Priscila Karin. Entre as 40 escolas particulares do Rio de Janeiro (RJ) e de São Paulo (SP) pesquisadas para esta reportagem, só duas fizeram posts nas redes sociais em 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIA+: o Colégio pH, com um episódio do podcast da escola sobre o tema e um vídeo com uma funcionária lésbica, e o Colégio Anglo, mostrando a existência de um banheiro unissex na escola.

“Acontece de haver reclamações sim”, diz Filipe Couto, diretor pedagógico do pH, do Rio. “Mas a gente entende esse posicionamento contra a discriminação como parte do projeto pedagógico da escola. E para se posicionar tem que ter fundamento e segurança, se não, com o primeiro grupo que vier tacando pedra, você já volta atrás. Não é uma postura panfletária, é uma postura educativa.”

Para se posicionar tem que ter fundamento e segurança, se não, com o primeiro grupo que vier tacando pedra, você já volta atrás. Não é uma postura panfletária, é uma postura educativa

No pH, isso vem sendo trabalhado por demanda dos próprios estudantes por meio da conscientização em grupos de estudos e ciclos de debates, também junto às famílias – há situações em que alunos que não têm aceitação em casa vêm procurar acolhimento na instituição. Além disso, desde 2018 a escola dedica 1h30 de aula por semana para um programa de convivência, no qual são levantados temas que permeiam o bem-estar coletivo, incluindo a questão de gênero. “A escola é a antítese da violência. Não podemos ter relações de aprendizado em um ambiente hostil”, diz Couto.

Para Ricardo Braga, da UFRN, é seguro dizer que hoje temos uma escola mais democrática e mais inclusiva do que há 20 anos. “Antes, por exemplo, professores gays não se assumiam. Hoje, eles aparecem mais, ajudando a servir de espelho para essas pessoas”, diz. Porém, o caminho para um maior acolhimento, aceitação, naturalização e promoção da diversidade no ambiente escolar ainda é longo. “A gente só vai ter instituições de ensino menos LGBTfóbicas quando houver uma política pública a nível federal, séria e bem formulada, que trate o tema de maneira universal. Sem isso, as coisas não avançam.”

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