COLUNA

Vanessa Rozan

Códigos de vestir

As escolhas não foram randômicas: o moletom tinha o rosto da filha estampado, a garrafa de água possuía um canudinho — ela é tão galera, né?

21 de Maio de 2025

Na semana passada, as redes sociais foram tomadas pela CPI das Bets e um dos assuntos mais comentados foi a escolha dos códigos de vestir daquela influenciadora que você já sabe o nome. Me parece que a ostentação e a demonstração ao acesso de itens de luxo sempre foi um componente do seu perfil e daí, do nada, ela surgiu de moletom e óculos de grau, com pouca maquiagem e uma garrafa de água cor de rosa. Meus analistas de Tiktok me disseram que essas escolhas não foram randômicas. O moletom tinha o rosto da filha estampado, a garrafa de água possuía um canudinho (ela é tão galera, né?) e me parece que, em algum momento, o microfone quase foi sugado no lugar dele.

Eu acredito que, com alguma semiótica, tudo aquilo ali foi pensado para reforçar essa ideia de que ela é “apenas uma mulher”. Claro que ela é, mas vale o recorte histórico: pela lei, até 1988, as mulheres eram consideradas inferiores aos homens, pois só eles poderiam ser chefes de família. Na real, até 1917, as mulheres eram, segundo a Constituição, seres incapazes, como menores de idade, e dependiam do marido para aceitar herança, para ter permissão para viajar e trabalhar. Não podíamos administrar os bens da família, nem nos divorciar, pois o casamento era indissolúvel, coisa que só mudou na década de 1970 — ou seja, ontem. Quando o contrato social surgiu, formando o estado como conhecemos hoje, ele organizou os homens brancos como iguais e as mulheres brancas como subordinadas ao pátrio poder. Claro, quem estava lá escrevendo isso era um grupo de homens que acreditava em um lugar de insubordinação natural da mulher.

Essa coisa do lugar biológico da mulher parece que voltou. Numa resposta aos avanços das pautas dos grupos minorizados nos últimos 15 anos, os discursos de energia feminina e energia masculina e até a ascensão das tradwifes se conectam com essa ideia de que a natureza já tinha organizado que a mulher fica em casa cozinhando, pois é lá o seu habitat natural. E nesses tempos a gente precisa lembrar que somos seres imensos nessa sociedade ocidental, que, como disse minha querida Paola Carosella, cozinheira e autora, faz com que a gente aprenda pela pele como se dão as dinâmicas sociais. É pelo exemplo e também pela publicidade que essa construção do que “é da mulher” e do que “é do homem” acontece. Uma boneca pra você brincar aqui e já vai treinando seu “instinto” materno.

Fiquei me perguntando: se fosse ali uma mulher negra, teríamos achado tudo uma piada ou o julgamento seria outro?

Não existe nada de biológico em papeis sociais, mas a sociedade (e a religião) nos faz acreditar nisso desde o primeiro segundo de vida. Para isso, o cinema é um ótimo recurso, para imaginar como seria se não tivéssemos tão imersos nessa cultura. No filme “Pobres Criaturas” (2023), a personagem interpretada por Emma Stone exerce livremente sua sexualidade, sem medo de nada, ainda mandando um bom dedo do meio para o que os homens que estão no seu entorno pensam.

Ou seja, não existe lugar natural da mulher, existe onde nos colocaram e no que nos fizeram acreditar, muitas vezes pela via do medo. Como disse a filósofa britânica Carole Paterman em seu livro “O Contrato Sexual, “não se deve esquecer que, na prática, os homens continuam a sustentar seu direito patriarcal sobre as mulheres por meio da ‘força’, ou seja, por meio da força e da violência”. Não à toa o Estado precisa de leis para proteger as mulheres de sua própria condição de subordinação dada pela sociedade. Meio maluco, hein.

Vamos voltar à análise da mulher que o Estado veria como incapaz, essa que foi no depoimento com roupa de criança, canudinho na boca e se comportando como quem acha tudo uma grande brincadeira. Essa mulher, branca e rica, sabe que nunca será penalizada pelo que promove e segue achando tudo engraçado a ponto de aparecer, dias depois, em um vídeo onde canta bem alegre em uma festa, o trecho de música que diz que ela “tá doida com o dinheiro do Tigrinho”. Eu acredito que um dos motivos de, no fim, a coisa toda virar um meme é porque a influenciadora está totalmente de acordo com o que esperam de uma mulher, não só no comportamento de anjo do lar, como também na aparência. Fiquei me perguntando, se fosse ali uma mulher negra, teríamos achado tudo uma piada ou o julgamento seria outro?

Poderia passar mais três parágrafos falando dela, mas eu já sei que esse assunto se resolve com o tempo, quando o eixo juventude-beleza deixar de sustentar a imagem dessa moça. Aí, provavelmente, ela será substituída por outra influenciadora que promoverá outras barbaridades, uma mais jovem, com mais seguidores, bem aquela coisa do filme “A Substância”. Seu futuro auge nas redes sociais será, no máximo, o chá revelação da nova harmonização facial.

Quanto mais nós mulheres nos dermos conta de que, tanto nas redes sociais quanto fora delas, nosso valor segue calcado na imagem, e que esse valor está diretamente conectado com o padrão de beleza, mais saberemos o que fazer quando não estivermos correspondendo a esse padrão. Algumas de nós, no entanto, passarão por provações maiores do que envelhecer, suas imagens de boazinhas e inocentes não colaram mais no corpo e no rosto de uma mulher 50+, nem com garrafa cor-de-rosa nem com moletom. Por isso, eu gosto de reforçar que só existe tradwife jovem, branca e rica, imagem cuspida e escarrada do padrão de beleza imposto pela sociedade. O discurso da mulher incapaz, que tem naturalmente a submissão em suas células, encaixa como solução para mulheres que estão cansadas, que só querem ser cuidadas e que o provedor passe pelas dificuldades lá fora. Isso se conecta com o empobrecimento feminino que avançou durante e após a pandemia do covid-19 — e não, amiga, não é um homem que vai resolver o problema do capitalismo. Melhor correr atrás do seu, achar o seu lugar, em vez de tentar se encaixar no que esperam de você. E, no mais, evitar os jogos de azar e influenciadores que promovem trambiques duvidosos.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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