COLUNA

Vanessa Rozan

Uma foto, mil palavras

E se a gente colocasse na conta da capa de “Man’s Best Friend” a questão urgente da violência de gênero nos dias de hoje?

18 de Junho de 2025

Como é fácil se encaixar naquilo que a sociedade espera de uma mulher quando estão atendidos os padrões de beleza e se faz a dança do patriarcado. Ao fazê-la você é automaticamente incluída no sistema, só que em um lugar muito específico de protagonismo: o de objeto de desejo do outro.

Estamos neste momento vivendo uma ressaca das discussões das pautas de gênero, padrões e corpos que aconteceram a partir do surgimento do Instagram, da ascensão do #Metoo e das manifestações a favor do aborto seguro que tomaram as ruas não só da America Latina. As redes sociais promoveram o espaço para que outros corpos e outros saberes pudessem ter visibilidade. Dez anos depois, hoje encontramos nessas mesmas redes sociais as tradwives e coachs de masculinidade e feminilidade, falando de energia feminina e do lugar da mulher. Sim, nós mulheres estamos cansadas de lutar. A pandemia aprofundou a desigualdade de gênero, a feminização da pobreza ficou evidente, com mais lares chefiados por mulheres e portanto dependente de suas fontes de renda (preciso escrever aqui que mulheres ganham muito menos que homens, em especial mulheres negras?). Também deixou bem explícita a condição invisível do trabalho de cuidado, feito em sua maioria por mulheres. Resolvemos essas questões? Não.

O que aconteceu desde então — e desde sempre —, foi que uma parte das mulheres, principalmente as mais jovens, aparentemente se esqueceram da condição feminina e das lutas que possibilitaram que a gente chegasse até aqui. Somos a primeira geração, das últimas três (contando sua mãe e sua avó), que pode ter cartão de crédito, registrar o filho sem a presença do pai, comprar imóvel, receber herança, abrir conta no banco, emitir passaporte e viajar, se divorciar e até fazer laqueadura sem ter que pedir autorização para ninguém. Parece quase ridículo enquanto escrevo, mas sim, até ontem na linha do tempo, era preciso que um pai ou um marido autorizasse qualquer uma das tarefas listadas acima. Ou seja, uma mulher morando sozinha e independente não seria assim tão independente. Por isso somos a primeira geração de mulheres que podem viver (quase) como um homem, o que nos faz acreditar que não é preciso lutar por mais nada.

Esse aparente esquecimento ou falta de interesse em saber sobre a condição da mulher, somado à desigualdade e à violência de gênero ainda presentes, fazem com que pareça mais fácil recorrer ao que a sociedade espera do feminino. No outro texto, que falei sobre as tradwives, apontei para a possibilidade da busca por uma falsa segurança em um passado idílico, onde tudo parecia estar melhor, no “lugar certo”, como um folheto de Testemunha de Jeová, onde os humanos estão sorrindo abraçando animais vivendo no paraíso na terra. Sim, com guerras, capitalismo tardio, aquecimento global, violência, pandemia e fake news, em quem vamos confiar?

Tudo isso para dizer que na última semana saiu o novo álbum de Sabrina Carpenter, cantora norte-americana de 25 anos. Sim, iremos analisar o assunto pois a imagem gerou inúmeros vídeos falando sobre o assunto lá no Tik Tok. Minha relação com Sabrina se deu a partir do hit “Espresso”, lançado em 2024, que cantei diversas vezes com a minha filha. Na capa de “Man’s Best Friend”, Sabrina aparece em posição de quatro apoios (para não dizer que ela está de quatro mesmo) com uma roupa preta justa, maquiagem bem elaborada, com uma das mãos levemente apoiada na calça de uma figura masculina. Esse homem está pegando nos cabelos da cantora como quem segura uma coleira, e é fácil fazer a análise semiótica do título do álbum “o melhor amigo do homem” que é o cachorro para a posição que Carpenter se encontra na capa e como seu cabelo é puxado para cima.

Triste mesmo é ter essa capa como uma imagem do atual momento, um retrato que tantas garotas podem ter como inspiração

Poderíamos dizer que Carpenter é maior de idade e portanto uma mulher independente com seu próprio cartão de crédito emitido nos Estados Unidos da América, então tem o direito de expressar seu desejo e sua sexualidade como bem entender. Uma parte dos vídeos eram um “deixa ela ser como quiser, é só não escutar”. De fato, quando levada individualmente, a decisão pessoal é a de só não escutá-la, assim como a decisão individual da Carpenter, lá nas suas quatro paredes, é viver sua vida íntima como bem quiser. Só que a capa de um álbum não é sobre uma escolha individual.

Essas imagens atravessam o tempo, elas determinam uma geração, podem ser um recorte da historico e até conter uma crítica social. A gente pega dois exemplos aqui bem rápido de imagens que estão tatuadas em nossas mentes, como a capa de “Secos e Molhados” (1973), com as cabeças em cima da mesa e o bebê embaixo da água, em “Nevermind” (1991), do Nirvana. Então, agora vamos pensar no impacto visual de uma imagem e como ela atinge parte das garotas que são fãs de Carpenter, essas que estão formando sua relação com o corpo, com o mundo e com a sua sexualdiade. Garotas mais jovens, como minha filha, que foi fã um dia e que, de certa forma, olham para ela como um ícone a ser copiado.

E se colocássemos na conta da capa de “Man’s Best Friend” a questão urgente da violência de gênero nos dias de hoje? Lembra que tinha um cabelo sendo puxado? Não era só a pose, a roupa, a maquiagem, temos a cena toda para analisar. A pesquisa de 12 meses intitulada “Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil”, feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2025, relata que uma em cada dez mulheres sofreu abuso ou foi forçada a manter relação sexual contra a própria vontade. Essa mesma pesquisa apontou que os parceiros das mulheres (cônjuges, namorados) foram responsáveis por 40% dos casos de violência. Segundo a Agência Brasil, “também foram relatados espancamento, ofensas verbais, agressão física, ameaças de agressão, perseguição, lesão, ameaça com faca ou arma de fogo e divulgação de fotos ou vídeos íntimos”.

Se romantizarmos essa violência e a embalarmos numa capa pop com uma garota tipo Marilyn dos dias de hoje, será que a gente não normaliza, além do papel de objeto sexual da mulher, um certo tipo de violência que a mulher pode se sujeitar para se sentir vista ou amada? É desse lugar que nós temos batalhado para sair e nossa amiga Sabrina talvez não tenha se dado conta, o que é normal entre garotas da idade dela e mais jovens, porque ela está totalmente de acordo com o que esperam de uma mulher, ou seja, bem encaixada no que o patriarcado reserva pra ela. Um tanto quanto a versão jovem da personagem que Demi Moore interpreta em “A Substância”, filme Coralie Fargeat, lançando em 2024. Talvez a própria Carpenter demore um tempo pra entender tudo isso, quando ela começar a perder espaço para as garotas mais jovens que encenarão esse papel aí; talvez ela nunca entenda e siga pelos próximos anos tentando se manter nesse padrão pré-aprovado pelo patriarcado a qualquer custo. O que ela decidir para vida dela, como indivíduo, para mim tanto faz. Triste mesmo é ter essa capa como uma imagem do atual momento, um retrato que tantas garotas podem ter como inspiração.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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