Sexo: uma odisseia no espaço
Ainda um tabu para agências espaciais, sexo entre astronautas se mostra cada vez mais necessário se quisermos conquistar o espaço sideral
Após admirar a infinitude do universo, os dois únicos ocupantes de uma enorme nave espacial fazem sexo pela primeira vez. Há anos-luz dali, num dos aposentos de uma espaçonave, uma cientista encaixa uma camisinha num consolo metalizado, pouco antes de uma intensa sessão de masturbação. Em outro ponto do espaço-tempo, nus e dividindo apenas um lençol, um casal se beija apaixonadamente enquanto sai levitando sob o efeito da gravidade zero.
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Além de serem todas cenas particularmente quentes em meio a ambientes frios e inóspitos, esses exemplos têm outro fator em comum. Nenhum deles é real. Retiradas respectivamente dos filmes “Passageiros” (2016), “High Life” (2018) e “007 Contra o Foguete da Morte” (1979), as sequências imaginam na ficção um evento que, em tese, nunca aconteceu: atividade sexual no espaço.
“Alguns astronautas mencionaram ereções e aludiram fortemente ao potencial para a masturbação em cenários espaciais“, revela a pesquisadora de comportamento sexual e sexologia espacial da Universidade Concordia, no Canadá, Maria Santaguida. No entanto, segundo a especialista, “ainda que seja tentador imaginar astronautas se engajando em atividades sexuais” e apesar da existência de rumores e especulações sobre o tema, “a NASA já declarou que seres humanos nunca fizeram sexo no espaço”.
O ato sexual é todo ajustado à gravidade terrestre e dela dependente
Apesar de informações sobre o assunto serem raríssimas ou praticamente inexistentes, pode-se supor que as muitas complicações que envolvem transar fora da gravidade da Terra estejam entre os principais fatores que inibem até os viajantes que já sentiram muita vontade de fazê-lo. “O ato sexual é todo ajustado à gravidade terrestre e dela dependente“, lembra o professor de engenharia aeroespacial Antonio Gil Brum, da Universidade Federal do ABC. “Sem ela, torna-se um grande desafio.”
Para começar, de acordo com o estudioso, quando ocorre uma queda considerável de gravidade, muda também toda a distribuição de sangue e de fluidos no corpo. Mais desse sangue vai parar nas partes superiores, como a cabeça, e menos do que seria comum permanece nas inferiores. Ou seja, o tesão e a possibilidade de conseguir uma ereção vão — não literalmente — para o espaço.
Além disso, também tem a dinâmica da coisa. Ficar flutuando por aí causa desorientação e náuseas, diz Brum, e ainda dificulta todo o processo físico do ato sexual. “Para vencer isso, algum tipo de amarra será necessária.” E, conforme o tempo passa, pode faltar até força. Isso porque, no espaço, cai nossa produção de glóbulos vermelhos, reduzindo a massa muscular, aponta o professor. Na realidade, hoje não se sabe nem até que ponto uma gravidez seria viável fora da Terra.
Em meio a todos esses obstáculos, é possível que mesmo vestes adaptadas não deem conta do recado. “Os trajes espaciais podem ajudar a manter os corpos ligados um ao outro, com velcro, por exemplo, mas não vão alterar, corrigir ou facilitar as funções corporais necessárias para o ato sexual”, afirma Brum. Na visão do pesquisador, para que o sexo no espaço se torne uma possibilidade real, talvez outra invenção que só existe no cinema também precise dar as caras na vida real: a gravidade artificial. “Do jeito que se vê nos filmes. Sabe aquele setor da nave espacial que fica girando em torno do eixo do veículo? Naquele compartimento, a rotação é controlada de maneira a simular a gravidade terrestre.”
A hora H
Em tempos de SpaceX, em que voos tripulados por civis deixaram de ser apenas um sonho distante e a possibilidade de pisar em outro planeta parece que logo vai sair do campo da ficção científica, o sexo não é apenas uma questão de alívio e prazer, mas sim essencial para a sobrevivência e continuidade humana fora da Terra. Falar do assunto é tão “pé no chão” que a própria Nasa já está planejando a preparação de astronautas para colonizar Marte. “As viagens planejadas ao espaço são relativamente curtas. Talvez por esse motivo não se tenha pensado muito nisso, mas a hora já chegou e é preciso encarar esse desafio”, declara Brum.
Não significa, porém, que estabelecer uma equipe de pesquisadores para estudar a sexologia espacial esteja nos planos da maior agência espacial do mundo. “No momento não estamos buscando propostas ou considerando uma área ou projeto dedicado a esse tópico”, afirmou recentemente um representante da Nasa ao site Mic. Para Santaguida, a posição da agência é no mínimo equivocada. “Ela ignora a realidade gritante de que que a sexualidade e intimidade humana no espaço são preocupação de saúde e segurança que merecem ser priorizadas.”
De fato, para enfatizar esse ponto, ela se uniu a outros pesquisadores em temas como psicologia e filosofia sexual e tecnológica para desenvolver um artigo que aponta a urgência de se discutir o tema. “Senão, corremos o risco de prejudicar a saúde e o bem-estar de astronautas e futuros habitantes do espaço, colocando em risco o sucesso de missões, e terminando por torná-los cidadãos do espaço infelizes e insatisfeitos”, aponta o documento.
Mão amiga
Hoje, praticamente não existem pesquisas sobre o funcionamento sexual humano em contexto espacial, como ele pode afetar a saúde mental e física dos astronautas ou a performance da equipe, diz Santaguida. Por outro lado, o conservadorismo com que o assunto tem sido tratado oficialmente, segundo a pesquisadora, pode estar impedindo que astronautas incorram em atividades sexuais “ou ao menos admitam que o fizeram”.
As poucas declarações públicas de astronautas até hoje são sobre uma atividade sexual consideravelmente menos complexa e difícil, mesmo sem gravidade. “Meus amigos me perguntam ‘Como você está fazendo sexo no espaço?’ Eu digo: ‘Com a mão!'”, descreveu o cosmonauta soviético Aleksandr Laveykin no livro “Próxima Parada: Marte” (Paralela, 2013).
Aparentemente muito menos fechadas sobre o assunto, as autoridades aeronáuticas soviéticas enviavam a seus cosmonautas vídeos “coloridos” que ajudavam a tripulação a “recuperar o moral” e “agir como homens adultos normais”, contou ao Guardian o cosmonauta aposentado Valeri Polyakov. O que, é claro, não significa que a vontade se restrinja aos soviéticos. “Às vezes, eu acordava com uma ereção capaz de furar até kriptonita”, revelou à revista Men’s Health o astronauta texano Michael Mullane.
Demasiado humano
Em seu artigo, Santaguida aponta ainda que a falta de estudos não faz com que algumas questões relacionadas à sexualidade humana simplesmente deixem de existir no espaço. É o caso, por exemplo, do assédio sexual. O documento reconta como uma pesquisadora foi assediada numa equipe composta por homens durante um experimento de simulação que durou 110 dias.
“A Dra. Lapierre foi assediada sexualmente — apalpada de forma não consensual, forçada e beijada — por um membro russo da tripulação que estava no comando da missão.” Um comportamento que condiz com o histórico complicado de agências como a Nasa em relação à igualdade de gênero. “Mulheres que se tornaram astronautas e cientistas aeroespaciais enfrentaram obstáculos, desigualdades e injustiças sociais, além de dinâmicas de poder problemáticas enraizadas em atitudes e perspectivas sexistas”, explica a especialista.
Para que a humanidade finalmente avance nesse tema, ainda é preciso superar tabus, desenvolver tecnologias que tornem o sexo no espaço seguro e higiênico e garantir a cooperação de todos, o que inclui os próprios astronautas, como diz a pesquisadora. “As agências espaciais devem mudar seus paradigmas de exploração espacial para um modelo que considere o todo ao selecionar, treinar e apoiar viajantes espaciais, o que inclui nossas necessidades sexuais, íntimas e de relacionamentos.”
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