As crianças e o déficit de natureza — Gama Revista
David Clode via Unsplash

As crianças e o déficit de natureza

Com poucas opções de áreas verdes nas grandes cidades, crianças podem ter seu desenvolvimento prejudicado. Iniciativas que levam a brincar com elementos naturais apontam mudanças positivas físicas e psicológicas

Betina Neves 14 de Outubro de 2021

“É a ‘vitamina N’ que está faltando.” O diagnóstico da pediatra carioca Evelyn Eisenstein, professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do grupo de pesquisa Saúde na Era Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, diz respeito à vida cada vez mais emparedada de crianças residentes das grandes cidades brasileiras. O contato restrito com a natureza pode ser prejudicial para o desenvolvimento físico bem como o psicológico na infância e na adolescência.

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“Existe toda uma progressão de habilidades psicomotoras que depende dessa vivência do lado de fora. A natureza traz também percepção espacial e temporal e ajuda a desenvolver a curiosidade e a criatividade. Uma criança que tem esse contato dorme melhor, come melhor, se exercita melhor e tem relações afetivas melhores. Tirar a natureza delas é tirar parte da alegria de viver.” A pediatra diz que o tempo todo recebe crianças com questões que ela percebe estarem atreladas a essa falta. “Já é um mantra pra mim pedir para desconectar das telas.”

A natureza traz percepção espacial e temporal e ajuda a desenvolver a curiosidade e a criatividade

Um dos pesquisadores que melhor retratou o problema foi o jornalista americano Richard Louv, autor de “A Última Criança na Natureza – Resgatando nossas crianças do transtorno de déficit de natureza” (Aquariana, 2016). No livro, ele reúne pesquisas e argumentos para mostrar que o ser humano precisa de experiências na natureza para se desenvolver integralmente e cunha o termo não médico “déficit de natureza” como um problema de uma sociedade em que as crianças estão cada vez mais restritas a ambientes fechados.

As consequências podem variar entre questões de comportamento, como agressividade e alterações bruscas de humor, até ansiedade, terror noturno, obesidade, déficit de atenção e hiperatividade. Há alguns anos se identifica também uma “epidemia” de miopia entre as crianças, agravada pela pandemia, por causa da falta de atividades do lado de fora e do excesso de tempo diante de telas.

Renata Stort/Divulgação

Por cidades mais verdes

“O uso desqualificado das ferramentas digitais está muito relacionado com a falta de oportunidades de vivências do lado de fora de forma autônoma, independente e segura. As crianças já estavam confinadas muito antes da pandemia”, dia Maria Isabel de Barros, pesquisadora do programa Criança e Natureza do Alana. Esse programa foi justamente criado para chamar a atenção para o afastamento das crianças dos espaços abertos, principalmente os públicos. “Se antigamente a experiência com a natureza acontecia de forma quase casual, porque as cidades eram menores, os bairros eram mais calmos e havia mais segurança, hoje precisa ter uma intencionalidade.”

Em São Paulo, por exemplo, só há 2,6 m², em média, de área verde pública de lazer por habitante, segundo o último estudo da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. A distribuição ainda é desigual: em Pinheiros, bairro de classe média-alta, por exemplo, tem 5,25 m² de verde por habitante, enquanto em Parelheiros, na periferia, só há 0,29 m² de praças e parques por pessoa.

Em nossas pesquisas, 85% das famílias gostariam que os filhos pudessem ter mais acesso ao ar livre

“A culpa obviamente não é só da escolha individual dos pais e das mães, isso é parte de um contexto muito maior. Em nossas pesquisas, inclusive, 85% das famílias dizem que acham estar do lado de fora superimportante e que gostariam que os filhos pudessem ter mais acesso ao ar livre”, diz Maria Isabel.

Na defesa de ambientes urbanos com mais natureza, o instituto toca projetos como o que promove os chamados parques naturalizados. A ideia é ocupar terrenos e gramados com “brinquedos” feitos com elementos naturais, como troncos e galhos, e usar a própria topografia e vegetação disponíveis para criar lugares de convívio e brincadeira atraentes e desafiadores para as crianças – muito mais do que playgrounds de plásticos, aliás. A iniciativa já foi realizada, por exemplo, em locais de Fortaleza (CE), em parceria com a prefeitura da cidade.

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Educação natural para a família toda

Incentivar os adultos a se reconectarem com os ambientes naturais junto com os filhos é parte da proposta do projeto Ser Criança é Natural, do Instituto Romã. Liderado pela pedagoga Ana Carol Thomé, uma das principais referências no tema no Brasil, desde 2013 organiza cursos, encontros, oficinas e formações com educadores e familiares, online e em parques públicos. Ela lembra que não é porque estamos na natureza que sabemos estar com a natureza, e que é preciso desenvolver uma relação ativa com o espaço.

“Nesse trabalho, percebemos que os adultos também precisavam recuperar essa conexão, se não, eles não se encantariam quando a criança apontasse um inseto, pegasse uma semente do chão. Trazemos vivências para que eles possam ativar os sentidos e ir expandindo o olhar para conseguir enxergar o que a criança enxerga. Essa mediação é muito importante.” Nas atividades presenciais, ela leva famílias a parques públicos e conduz brincadeiras e dinâmicas para mostrar como interagir com o ambiente natural, sempre usando elementos encontrados ali, como folhas, flores, troncos e terra. Também estimula que observem insetos, pássaros e outros animais no local.

A pedagoga diz que um dos maiores desafios desse trabalho é a mudança de cultura em relação ao que está do lado de fora, muitas vezes encarado como sujo e perigoso. “Há uma crença muito forte que foi colocando tudo que está do lado de fora como um risco. Estamos aos poucos quebrando essas barreiras.”

O papel das escolas

Isso inclui, claro, o ambiente das escolas, muitas vezes o único local de convívio, lazer e aprendizado da criança no dia a dia. Como o americano Richard Louv explicita no livro, o mundo natural foi desvalorizado na educação: escolas foram se tornando blocos de concreto com pouca ou nenhuma área natural – e, muitas vezes, quando há, é apenas enfeite ou paisagismo, e não usado como ambiente de aprendizado. Para ele, a vanguarda em educação não são tablets, lousas eletrônicas ou computadores, mas pomares, hortas e jardins.

É o que pensa a pedagoga paulistana Denise Martins, depois de 30 anos de passagens por instituições de ensino diversas. “Há um movimento crescente que está pensando diferente, mas muita gente ainda acha que as crianças só vão para o lado de fora para se distrair. É toda uma concepção de ensinar e aprender dentro de uma sala de aula fechada que adoece”, diz.

A vanguarda da educação pode estar em pomares, hortas e jardins

Em 2014, ela montou a própria escola de Educação Infantil, a Arapoti, em Santana de Parnaíba (SP). Ali, a vivência na natureza é o princípio do projeto pedagógico: as crianças são convidadas a observar o ciclo das árvores, a plantar e colher alimentos em uma horta e a cuidar de animais como coelhos, galinhas e jabutis. Muitos projetos de estudo surgem das experiências das crianças ali, já que, para a pedagoga, “o ambiente provoca boas perguntas”. “Além disso, a mudança de comportamento em relação ao que eu via em outras escolas é muito forte. Aqui quase não temos questões com agressividade, as crianças não gritam, é um espaço muito silencioso. Acredito que, quando a gente está com a nossa essência, que é a natureza, a gente fica mais em paz.”

Renata Stort/Divulgação

Preparando a próxima geração

Quando a capixaba Yonne Estrela e o marido começaram a pensar em ter filhos, eles já sabiam que queriam proporcionar uma criação diferente da que tinham tido no “concreto”. Mudaram então de Vitória (ES) para Guarapari, no litoral do estado, para perto de uma área de preservação permanente. Hoje, os trigêmeos do casal, com quatro anos, sobem em árvores, andam a cavalo, nadam em lagoas, catam fruta do pé e praticamente não usam sapatos.

“Foi uma desconstrução muito grande de tudo que eu tinha vivido, e até dos meus medos. Outro dia eles viram uma cascavel e souberam sozinhos que tinham que ficar longe”, conta. Para ela, o dia a dia integrado com a natureza traz uma sensação de pertencimento. “Eles têm uma sensibilidade e compaixão com as pessoas, plantas e animais que é impressionante. Parece que eles entendem a natureza como extensão deles”, diz.

Como criar uma geração que dê conta dos desafios ambientais se as crianças estão crescendo apartadas de experiências afetivas com a natureza?

É justamente essa reflexão que Maria Isabel de Barros, do Alana, propõe: “Em meio a esse cenário problemático, como vamos criar uma geração que dê conta dos desafios ambientais que já estamos vivendo se as crianças estão crescendo apartadas dessas experiências afetivas com a natureza?”. Ela lembra que muitas lideranças indígenas, por exemplo, apontam essa desconexão como parte dos problemas que vivemos hoje.

Como lembra Ailton Krenak no livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (Companhia das Letras, 2019): “Fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.”

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Este conteúdo é parte da série “Crianças e adolescentes têm direito a um futuro no presente”, que tem o apoio do Alana, organização de impacto socioambiental que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança e fomenta novas formas de bem viver.

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