Observatório da Branquitude
Uma mulher negra no STF
Queremos subverter a castração do racismo que nos sujeita a representações distorcidas, estreitas, autoritárias do que somos e podemos ser
Uma beleza me aconteceu no fundo de uma sexta-feira. A noite chuvosa anunciava o avesso dos quereres do carioca por um sábado de tempo firme em agosto, alento no cotidiano tenso da cidade. Resignada, fiquei em casa e optei pelo encontro com as canções de Caetano Veloso na voz de Xande de Pilares, sob a produção de Pretinho da Serrinha. Um acontecimento magistral. Aviso: não há preparo possível. Nem tente se defender, tampouco ofereça resistência ao convite para as sensibilidades do álbum, uma imersão de esperança nas possibilidades amorosas de um Brasil das gentes. Uma fronteira nova “em vida, em força, em luz”. Naquela noite, o adorável clichê: fez sol dentro aqui.
Das dez canções do álbum, muitas trazem lembranças felizes. Sobretudo “Tigresa”, que habita um canto especial no meu território particular, pois reúne memórias da universidade e a vontade imensa de destampar o futuro com as mãos. Mais que vontade, o compromisso com a coragem de seguir vivona e vivendo. Tal qual a tigresa de unhas negras, que “vai ser o que quis, inventando um lugar”, venho pensando insistentemente no estoque de luta das mulheres negras pela criação de espaços amplos, arejados, plurais a todas nós. Espaços que extrapolem as solitárias sobre as quais nos conta o romance de Eliana Alves Cruz, “Solitária”; que façam jus aos tamanhos e ao “cheiro da nossa própria vida”.
A mais alta corte constitucional brasileira é majoritariamente branca em sua composição há exatos 132 anos
Em honra às que vieram antes e às que virão depois, queremos mais. Queremos subverter a castração do racismo que nos sujeita a representações distorcidas, estreitas, autoritárias do que somos e podemos ser. Queremos, também, expandir a reviravolta da participação político-institucional, crescendo em poder de decisão acerca do rumo dos recursos e das políticas públicas. E temos, diante dos olhos, uma brecha capaz de sedimentar um novo amanhã: queremos e podemos ocupar um dos assentos do Supremo Tribunal Federal (STF).
A mais alta corte constitucional brasileira é majoritariamente branca em sua composição há exatos 132 anos. Em outras palavras, a nobre tarefa republicana de salvaguardar os princípios e diretrizes da Carta Constitucional e de implementar os direitos fundamentais tem sido uma experiência de exclusividade branca entre nós, atravessada pela masculinidade, à exceção da presença de três mulheres ministras.
A nomeação de uma jurista mulher e negra à ministra do Supremo é um compromisso legítimo com o fortalecimento democrático. Não há conciliação possível entre a democracia, a justiça e a reafirmação sistemática do projeto de dominação e subalternização baseado na raça e na cor da pele. Fraturar intencionalmente o monopólio identitário racial branco e falocêntrico na apropriação de espaços de poder como o STF é fundamental. A institucionalidade brasileira, em especial o sistema de justiça, precisa abrigar em seus quadros a nossa multiplicidade de repertórios, visões e trajetórias. Precisa porque a herança colonial expressa em privilégios raciais e simbólicos para os brancos nos atrofia, nos rouba, nos espolia em chances de nutrir e fazer vingar uma sociedade sob pressupostos igualitários em direitos e oportunidades aos moldes da Constituição de 1988.
O mercado nos grita as ocupações que nos cabem, subalternas, interditando cargos sob a máxima de que exige ‘boa aparência’
Alçar uma jurista negra ao STF, portanto, configura a possibilidade de inferir positivamente na formação das próximas gerações, seja na imaginação das crianças acerca do papel do judiciário e do sistema de justiça, seja na ampliação da coletânea limitada de percepções e áreas de interesses com as quais uma menina negra pode sonhar. Nas redes sociais, hashtags pedindo por uma #ministranegrajá, fruto da articulação de movimentos sociais de diversos setores da esfera pública — entre eles, o Observatório da Branquitude — dão conta da vontade da invenção desse lugar onde seremos o que quisermos.
O mercado de trabalho nos grita as ocupações que nos cabem, não raras vezes subalternas, interditando funções e cargos sob a máxima de que exige “boa aparência”, adverte a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro. Na contramão do binarismo irreal da superioridade branca contra a inferioridade negra, não há resposta política mais adequada do que ver refletida a nossa cara no mais alto escalão do poder judiciário, à semelhança de 28% da população brasileira, o maior grupo demográfico.
A “Tigresa”, de Caetano Veloso e de Xande de Pilares, diz, ao mesmo tempo, “que tudo vai mudar”. Do fundo daquela noite em que fui arrebatada pelos belíssimos arranjos do álbum recém-lançado, permanece a insistência na virada de representações em disputa pelo tom do espírito do tempo. Temos pressa. O amanhã, nesse caso, é para ontem. Hoje, melhor dizendo, em outubro próximo o presidente da República tem o poder de agir pela concretização da utopia democrática brasileira, infiltrando o edifício hierárquico da dominação racial, pavimentando a trilha da reparação histórica. Que venha a era em que “a tigresa possa mais do que o leão”.
*Texto livremente motivado e inspirado na coluna “Tudo o que se espera de nós”, de Ana Paula Lisboa, em O Globo.
Carol Canegal é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.
Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
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