COLUNA

Observatório da Branquitude

Brancos no Brasil: os convidados para festa

A chave é perceber que cada sociedade, em seus contextos de desigualdades raciais, apresenta um tipo que acumula privilégios e é sobre esse tipo que cabem os questionamentos

04 de Novembro de 2025

Provavelmente, se você é uma pessoa negra de pele clara no Brasil – semelhante a mim –, já escutou que “você não é tão negra/o/e assim”, ou algo próximo disso. O gradiente de cores entre os extremos branco e preto resulta em discussões longas nas ciências sociais e em uma quantidade cada vez maior de vídeos curtos que viralizam nas bolhas de quem se interessa por relações raciais. Mas esse não é um assunto que dá pra se resolver, por exemplo, num corte de podcast: é uma das feridas mais profundas e não tratadas da história do nosso país.

Um país sem memória pública de um passado jurídico de segregação, se comparado, por exemplo, com os Estados Unidos; mas que, mesmo assim, segregou e segrega. Que mascara as questões de desigualdade racial como se fossem de classe. E quando assume a existência de hierarquias e conflitos raciais, adotando políticas de ação afirmativa, o problema se escancara nas bancas de heteroidentificação.

Começam a aparecer nos jornais os casos de pessoas autodeclaradas pardas desclassificadas, com suas fotos circulando pela internet em posts nos quais são muitos os comentários sobre se o candidato ou candidata seria “suficientemente” negro ou negra para acessar a vaga… Esses casos pontuais não colocam em dúvida o funcionamento de uma política eficaz de ingresso de mais pessoas negras no serviço público e nas universidades, mas ilustram a dificuldade que temos em entender que os nossos problemas de desigualdade apresentam uma carga racial tão importante, ou quem sabe maior do que as diferenças de classe.

No íntimo, nossas instituições já sabem quem é negro. A polícia, os seguranças de firmas privadas, as balas perdidas, as pessoas que perguntam “você trabalha aqui?” sabem. Contudo, talvez a gente precise identificar quem são os brancos.

O senso comum de que não temos brancos “legítimos” no Brasil, justificado por esse passado miscigenado, esconde que temos um perfil fenotípico de privilégio no país. A verdade é que, para ser branco, não precisa bater todo um checklist caucasiano para ter as benesses dessa posição elevada na hierarquia racial nacional. Parafraseando Liv Sovik, ser branco no Brasil é exercer uma função social que pouco se relaciona com ter sangue negro ou não. Nesse caso, o exercício dessa função não precisa ser anunciado e se funde com a normalidade. O passe da pessoa vista como branca é que seu trânsito não é questionado. Se médico, as pessoas não vão dizer ou pensar que não parece um médico, pois está no campo da trivialidade de uma pessoa branca acessar faculdades de alto prestígio.

Nossas instituições já sabem quem é negro. A polícia, os seguranças de firmas privadas, as balas perdidas, as pessoas que perguntam “você trabalha aqui?” sabem

Inúmeras pesquisas apontam a facilidade, ou quantas chances a mais pessoas brancas têm em relação a não brancos de serem aprovados em processos seletivos, adquirir bens materiais, garantir acesso e permanência nos degraus educacionais mais altos. O que se manifesta nitidamente no âmbito dos privilégios materiais, põe luz nos privilégios simbólicos. Lia Vainer, em sua tese de doutorado, entrevistou pessoas brancas de diferentes classes sociais. Dentre as conversas informais e formais que ilustram os argumentos da tese, destaco dois trechos:

O primeiro, quando pessoas brancas são perguntadas sobre de que raça elas são, as respostas vão de “marciano” a “rottweiler”. Uma pessoa chegainclusive a questionar a pesquisadora a respeito de que tipo de pergunta era aquela. A imputação de raça ao outro, é um dos traços da branquitude. Não ser visto como um cardume racial, permite brincar com a resposta sobre a que grupo racial pertence. Enquanto brancos não precisam responder por um grupo, ou se identificar com ele, os mesmos continuam a usufruir do privilégio de ser branco. Ninguém questiona uma pessoa branca sobre uma morte violenta de outra pessoa branca, sobre o que aquela morte representa coletivamente. A dificuldade da autopercepção de pertencimento a um grupo racial em nada diminui ou anula as vantagens sociais de pertencer a esse grupo.

Em relação aos efeitos da branquitude, outra das entrevistas é reveladora: uma pessoa branca em situação de rua responde que ser branco é poder entrar num shopping para usar o banheiro. A entrada é livre, por causa da brancura da sua pele. Uma terceira entrevistada diz que ser branca é como ser convidada para uma festa, em que você pode entrar sem problema algum. Ao ler esse relato, penso que essa festa parece a vida. A vida deve parecer mais uma festa quando não há ressalvas sobre o que o seu corpo transmite ao chegar em um espaço.

É como se ser branco trouxesse junto uma chancela, uma presunção de legitimidade, qualquer que seja o lugar. Desde um banheiro de shopping até uma suposta festa”

É como se ser branco trouxesse junto uma chancela, uma presunção de legitimidade, qualquer que seja o lugar. Desde um banheiro de shopping até uma suposta festa. Em outras palavras, é estar apto a ser humano e humanizado. Os brancos brasileiros, em sua grande maioria, podem não ser tão rosados como os estrangeiros, mas isso não os exclui das garantias da branquitude.

Ao inflamarem tantas discussões sobre quem seria negro ou não, se esquecem de um outro lado dessa moeda, um lado imune ao questionamento, ou automaticamente legítimo. Não me atenho a descrever neste texto quais seriam as características de um fenótipo de grupo branco, pois dentro da sua diversidade, há brancos que são brancos na região norte do país, mas não o são na região sul. Ou são brancos no Brasil e se tornam latinos em países do Norte global. Ainda assim, dentro de seus territórios de origem, dentro de seu contexto de vida, que é o que importa, exercem sua imunidade racial. A chave é perceber que cada sociedade, em seus contextos de desigualdades raciais, apresenta um tipo que acumula privilégios e é sobre esse tipo que cabem os questionamentos. Nas divergências sobre pertencimento racial dentro de grupos não brancos, só um lado ganha com tudo isso: aquele dos que são convidados para festa.

Nayara Melo é graduada em odontologia pela UFPE e tem mestrado em sociologia pela mesma instituição, com pesquisas voltadas para ensino superior e ações afirmativas. É doutoranda em sociologia, pelo IESP-UERJ, com foco em desigualdade racial no SUS. Possui experiência como pesquisadora no terceiro setor e como profissional de saúde no serviço público e privado. Atualmente, é analista de pesquisa no Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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