
CV: Yara de Novaes
Atriz, diretora e professora, a artista mineira, protagonista do filme “Malu” e no comando da peça “Prima Facie”, com Débora Falabella, comenta sobre o que a move, aprendizados e dificuldades da carreira
Entre a luz dos palcos, o corre-corre das coxias, o silêncio dos textos, a concentração das aulas e o brilho das telas, Yara de Novaes, 58, constrói uma trajetória de entrega e intensidade. Atriz, diretora e professora, ela transita por diferentes linguagens artísticas. Com uma carreira consolidada no teatro, agora experimenta novos caminhos e colhe os frutos do sucesso no cinema.
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Em “Malu”, longa-metragem de Pedro Freire — em cartaz —, o segundo da carreira da artista, Novaes dá vida à protagonista, uma mulher de meia-idade que se encontra em um caos existencial em meio a um drama familiar intenso com a mãe e a filha.
“Nunca fui muito ambiciosa, nunca quis ser famosa. A única coisa que eu queria era exercer minha profissão”, diz. E tem exercido com simplicidade, uma de suas principais características, e êxito: o filme, premiado e bem-recebido pelo público, marca um momento de expansão profissional.
Apesar da recente projeção cinematográfica, Novaes segue fiel à sua grande paixão, o teatro. Atualmente, dirige “Prima Facie”, monólogo com Débora Falabella, amiga e parceira de décadas, que estreia nova temporada em São Paulo nesta sexta-feira (7), no Teatro Vivo. O cruzamento entre a atuação, a direção e o ensino sempre foi natural, conta. “Desde muito nova, tive essa tríade na vida. Não consigo me ver nem lá nem cá. Eu me vejo exatamente nessa encruzilhada, nessa interseção. É assim que me movo como artista.”
Mineira de Belo Horizonte, Novaes começou no meio teatral aos 15 anos, fazendo um curso, e, ao longo do tempo, fundou e integrou companhias importantes, como o Grupo 3 de Teatro. Para ela, a coletividade sempre foi um pilar fundamental. “Escolhi o teatro para ser livre, para ter uma relação de liberdade com o mundo, uma relação de expansão, de experimentação, de independência, de cooperação”, afirma.
Tudo isso, no entanto, não vem sem desafios, especialmente em um país que, segundo Novaes, tem um olhar negligente para a arte. “Nós não somos considerados importantes continuamente. Toda hora estamos caindo, estamos sendo alvejados.”
O machismo também impõe obstáculos, sobretudo na direção teatral, um espaço ainda majoritariamente masculino. “Tenho que ter uma musculatura muito maior do que os homens para conseguir dizer que sou diretora”, pontua. “Uma vez uma pessoa me disse: ‘A Yara é uma ótima atriz que dirige muito bem’. Qual é a dificuldade de me colocarem como diretora? Entendo que seja porque, querendo ou não, a direção tem um poder de decisão.”
Com uma visão lúcida sobre a transitoriedade artística, ela acredita que o aprendizado está justamente na constante transformação, na impermanência. “A gente nunca é alguma coisa, estamos sempre em trânsito. O teatro tem a característica de ser efêmero, nós aprendemos a morrer e a nascer diariamente”, explica.
Na entrevista abaixo, Yara de Novaes fala a Gama sobre carreira, aprendizados e dificuldades.
Escolhi o teatro para ser livre
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G |Como você chegou até aqui?
Yara de Novaes |Comecei a fazer teatro aos 15 anos, em Belo Horizonte. Só contextualizando geograficamente: morei lá até os 32, depois fui para Recife e, mais tarde, em 2003 ou 2004, vim para São Paulo, onde estou até hoje. Sou formada em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais. Entrei na faculdade bem novinha e lá não tinha o curso superior de teatro, então estudei algo que tivesse alguma possibilidade de lidar com o teatro, mesmo que fosse na literatura dramática. E foi muito legal porque, naquela época, a UFMG tinha várias optativas, e pude fazer algumas disciplinas de literatura teatral. Mas, voltando aos 15, antes de tudo isso, eu tinha uma bolsa no curso de teatro que fazia e, a contrapartida dessa bolsa, era ser monitora na escola. Fui monitora das disciplinas de história e interpretação. Desde então, nasceu em mim um outro braço, o da professora, que depois foi acentuado pela licenciatura em letras. Ou seja, desde muito nova, tive essa tríade na vida: atuação, direção e sala de aula. Dirigi o meu primeiro espetáculo, “Casablanca, Meu Amor”, um Arrabal [Fernando], aos 21 anos de idade, uma irresponsabilidade total, mas foi muito legal. Sempre conduzi a minha vida nessa interseção. Não consigo me ver nem lá nem cá. Eu me vejo exatamente nessa encruzilhada, nessa interseção. É assim que me movo como artista, indo de lá para cá, daqui para lá.
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G |Você teve alguns grupos de teatro, certo? Como eles se formaram?
YN |Em BH, tem muitos grupos mais ou menos contemporâneos, como o Galpão. A gente sabia que, de alguma maneira, para fazer teatro em Belo Horizonte era preciso ter uma companhia, não só pelo ponto de vista ideológico, mas pela necessidade de se tornar profissional dessa forma. Então, muito cedo, aos 17 anos, fundei uma companhia que se chamava Grupo Teatral Encena. Fiquei lá por muitos anos, depois saí e fundei outra companhia, chamada Odeon; também fiquei muitos anos ali. E, já aqui em São Paulo, fundei o Grupo 3 de Teatro, com a Debinha [a atriz Débora Falabella] e o Gabriel [Paiva, diretor artístico]. Voltando à questão da interseccionalidade, penso que a minha formação pôde ser tão interseccional porque eu tomei as rédeas, junto dos meus parceiros, de uma trajetória artística. O Grupo 3 acabou há dois anos, porém, seguimos juntos.
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G |E o que te moveu a trilhar todo esse caminho?
YN |Escolhi o teatro, sobretudo, para ser livre, para ter uma relação de liberdade com o mundo, uma relação de expansão, de experimentação, de independência, de cooperação, de coletividade. Tinha tudo isso na cabeça e vi que, se fosse para outro lugar, eu poderia perder tudo isso, que para mim é muito importante. O teatro se tornou um pilar, uma paz para mim, um lugar de grande estrutura, e onde também comecei a me formar como pessoa. O teatro é uma estrada de formação humana muito boa. Foi uma escolha indubitável para mim. Nunca fui muito ambiciosa, nunca quis ser famosa, isso nunca passou por mim; a única coisa que eu queria era exercer minha profissão, e exercê-la em consonância com aquilo que eu realmente acreditava.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
YN |Nosso país não tem uma política contínua de apoio à cultura. Nós [artistas] não somos considerados importantes continuamente. Toda hora estamos caindo, estamos sendo alvejados. O próprio aprendizado sobre arte nas escolas sempre foi muito incipiente — apenas de uns tempos para cá estar sendo mais valorizado. A gente não aprendia a amar a arte e nem a olhá-la como algo que pudesse nos melhorar, como as relações que fazem com a natureza ou com o esporte. Isso dificulta tudo, principalmente na maneira como o país e as pessoas olham para os artistas — às vezes com raiva ou de modo pitoresco. Muitas pessoas, no entanto, não entendem que tudo o que acontece na vida delas, como a música escolhida para um casamento, uma luz em um evento ou um design, vem de desejos, pensamentos e experimentações artísticas. Além disso, o teatro é um lugar muito democrático, cabe todo mundo; inclusive, quem falha, quem não está andando nos trilhos, quem está à margem. O teatro é um local de muita compaixão, que recebe e dialoga com as pessoas, que celebra coletivamente um acontecimento. E, muitas vezes, isso tudo é colocado como algo desinteressante ou menos importante.
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G |E quais foram os seus maiores aprendizados?
YN |Uma grande lição foi aprender a ser simples. O teatro me dá isso, uma coisa meio oriental mesmo. Você vai lá e faz o que tem de ser feito. Eu falo bastante de teatro porque ele é a minha cartilha. Mas, como artista, a gente nunca é alguma coisa, estamos sempre em trânsito. O teatro tem a característica de ser efêmero, nós aprendemos a morrer e a nascer diariamente. Quando entramos em uma sala de ensaio, para fazer um personagem ou para dirigir uma peça, sabemos que o errar e o falhar são, talvez, o que mais a gente faz ali. Penso que o maior aprendizado é essa certeza de que a gente é transitório; é aprender a morrer e a nascer todo dia, nesse ciclo.
Nosso país não tem uma política contínua de apoio à cultura. Toda hora estamos caindo, estamos sendo alvejados
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G |Qual a sua missão na sua profissão? Ela mudou com o tempo?
YN |Acho que a cada espetáculo, a cada obra, de alguma maneira, eu faço emergir uma missão. Não penso em nada grandioso. Minha missão é acordar, viver, comer e fazer o meu trabalho todo dia. É tentar viver e trabalhar da melhor maneira possível.
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G |Você teve um mentor ou uma mentora?
YN |Como comecei muito nova, posso dizer que alguns diretores. Um deles é o meu parceiro Wilson Oliveira, de Belo Horizonte, que foi muito importante. Tem o Kalluh Araújo, que me trouxe um teatro visto de outra forma. O Grupo Galpão foi importantíssimo também. Trabalhei com eles duas vezes, como atriz e como diretora, e sempre saí de lá muito modificada. O Aderbal Freire Filho foi um mentor, mesmo eu tendo trabalhado apenas uma vez com ele. Tive a alegria de dirigir a Cleyde Yáconis, o que foi maravilhoso, uma oportunidade de encontrar com aquela mulher e ouvir tudo o que ela tinha para dizer. Mais recentemente, dirigi a Cleide Queiroz, que é incrível. Tenho muita troca com a Debinha, com o Carlos Gradim. São pessoas que me mostram ou mostraram caminhos diferentes, outros pontos de vista, me ajudando a aprender a fazer o que eu faço. Quero citar ainda o Tchekhov [Anton Pavlovitch, dramaturgo], um grande cara, que é com quem eu mais aprendo, em todos os sentidos.
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G |Há machismo no seu meio? Como você enfrenta?
YN |Na direção, tenho que ter uma musculatura muito maior do que os homens para conseguir dizer que eu sou diretora. E, sobretudo, porque sou atriz também, e, pensam eles, parece ser a destinação social mais aceita para a mulher nesse meio. Principalmente no teatro brasileiro, em que as atrizes eram donas do próprio trabalho, tinham suas companhias. Mas na direção ainda temos poucas mulheres em relação aos homens. Por isso que, realmente, temos que nos desdobrar. Uma vez uma pessoa, que é do teatro, me disse: “A Yara é uma ótima atriz que dirige muito bem”. Qual é a dificuldade de me colocarem como diretora? Entendo que seja porque, querendo ou não, a direção tem um poder de decisão. O diretor acaba sendo autor do espetáculo. É ele que vai juntar a turma e dizer como quer contar aquela história. Tem que ter muito posicionamento, inclusive posicionamento dramatúrgico. Também já passei por uma situação enquanto dirigia a peça “Ricardo III”. Me falaram assim: “Nossa, estou te achando tão masculina”. É porque aquela pessoa estava me vendo dirigir, uma posição que ela atribuía aos homens. Com certeza, eu tenho que provar muito mais que sou diretora e que tenho capacidade de dirigir um espetáculo. Muitas vezes, parece que é quase uma sorte, como se não existisse um pensamento e uma elaboração.
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G |Na sua trajetória, você cometeu alguma falha?
YN |Acho que deveria ter aprendido a cantar. Eu não sei cantar, sou desafinada, e como fui fazer um tipo de teatro que não me exigia isso, não fui pelo caminho da música. Também penso que deveria ter aprendido a tocar um instrumento e a falar mais línguas. Essas coisas que nos ajudam e nos aumentam. Por muito tempo achei que devia ter tido uma carreira acadêmica mais séria, porque eu sempre dei aula na universidade, mas não tenho um título, apenas fui dando aulas — na PUC, na UFPE, na UFMG, na FAAP. Eu já tinha um trabalho bem selado e prático como atriz e diretora. Cheguei a entrar em três mestrados, mas saí de todos porque sempre ia dirigir uma peça ou atuar. Por algum tempo achei que isso me faltou, hoje não acho mais. E quem me ajudou a entender que eu não precisava disso foram duas mulheres acadêmicas maravilhosas, a Maria Thais, que foi professora da USP por muitos anos, e a Mônica Ribeiro, uma parceirona, que é da UFMG. As duas falavam que eu tinha muitas pesquisas. Tanto é que hoje você vê que as universidades já compreendem um trabalho artístico como algo correlato a um trabalho acadêmico por compreenderem que ali tem pesquisa e que, não necessariamente, você precisa fazer uma tese, uma monografia, sistematizar tudo aquilo.