Foto de Maria Navarro

CV: Débora Butruce

Referência em preservação do patrimônio audiovisual no Brasil, Débora Butruce atua como restauradora, curadora independente e pesquisadora desde 2001

Amauri Terto 09 de Julho de 2025

Débora Butruce é uma referência em preservação do patrimônio audiovisual no Brasil. A brasiliense criada no Rio de Janeiro atua como restauradora, curadora independente e pesquisadora desde 2001, e passou por importantes instituições públicas como a Cinemateca do MAM, o Arquivo Nacional, a Cinemateca Brasileira e o Centro Técnico Audiovisual (CTAv).

Ela iniciou sua trajetória ainda na graduação em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF), depois fez doutorado na ECA-USP, com um trabalho sobre restauração de filmes no Brasil e os impactos da digitalização, além de especializações em instituições renomadas em Cuba, Espanha e Estados Unidos — ela foi pesquisadora visitante na New York University, no Moving Image Archiving and Preservation Program.

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Desde 2009, Butruce também está à frente da Minemosine, empresa voltada à preservação, restauração e formação audiovisual. No currículo, acumula a liderança no restauro de obras de cineastas como Geraldo Sarno, Jorge Bodanzky, Suzana Amaral e Anna Muylaert. Um de seus trabalhos de maior destaque é “A Rainha Diaba” (1974), de Antônio Carlos da Fontoura, exibido em 2023 no Festival de Berlim. Além do trabalho com restauração e preservação, ela integra comitês de seleção de festivais e editais de fomento e atua como vice‑presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

Quando uma mulher ocupa esse espaço com autoridade técnica, o diálogo com alguns homens pode se tornar difícil, especialmente quando você domina o assunto mais do que eles

Conciliando atuação em diferentes frentes, seja no setor público ou privado, ela vê na instabilidade do setor como o maior desafio em sua trajetória. “A sociedade brasileira ainda não enxerga a preservação como parte do ecossistema audiovisual. Isso vem mudando, mas ainda não se traduz em recursos”, afirma.

Em entrevista a Gama, Débora Butruce relembra o início de sua trajetória na preservação audiovisual, reflete sobre os desafios enfrentados por mulheres nesse setor e fala sobre a importância da difusão e do acesso às obras restauradas. “Tenho uma satisfação enorme quando um filme volta a circular com a potência que ele merece. A restauração dá essa nova chance para as obras dialogarem com a sociedade.”

Restauração não é melhorar o filme — é devolver o que ele foi

  • G |Como se deu a sua trajetória no audiovisual até aqui?

    Débora Butruce |

    Eu me formei em cinema pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói. E foi lá que tive contato, pela primeira vez, com a disciplina de preservação audiovisual. O curso ofereceu essa matéria de forma pioneira nos anos 2000. Já estava finalizando a graduação quando surgiu a oportunidade de cursar essa disciplina — o que mudou o rumo da minha carreira. Fiquei completamente apaixonada. Na época, eu trabalhava com direção de arte e figurino, áreas que, de certa forma, dialogam com alguns aspectos do trabalho de preservação audiovisual. Mas a disciplina foi definitiva para eu começar a trabalhar com preservação. Logo depois, em 2001, comecei a estagiar na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, no Rio. E desde então nunca mais parei. Tentei por um tempo conciliar com a direção de arte, fiz alguns curtas, mas a preservação foi ganhando mais espaço e intensidade. A área acabou se mostrando um campo de atuação com mais oportunidades. Também dei continuidade à minha formação fora da universidade, fazendo estágios e cursos. A restauração sempre foi algo que me interessou muito. Ela é faceta mais pública, digamos, do trabalho de preservação — que é um grande guarda-chuva, composto por diversas atividades como catalogação, pesquisa, conservação, restauração de materiais, documentação, difusão e acesso a tudo isso.

  • G |E a curadoria? Como teve início na sua trajetória?

    DB |

    Em 2002, com um grupo de amigos, criamos um cineclube voltado para o curta-metragem brasileiro. A gente tinha ido a uma sessão de curtas no Odeon e, a partir dali, surgiu a ideia: fazer um cineclube em que o curta fosse o protagonista. Criamos o Cachaça Cinema Clube, que ficou bem conhecido entre 2012 e 2015. Fizemos sessões itinerantes, inclusive no Festival de Curtas de São Paulo, o Kinoforum. Cada um dos quatro amigos do grupo trazia um olhar diferente. O meu era mais voltado aos filmes de arquivo, ao patrimônio audiovisual. E foi aí que a curadoria começou a caminhar junto com a preservação no meu trabalho.

  • G |Como você passou a trabalhar diretamente com restauração de filmes?

    DB |

    Sempre fui muito curiosa. A restauração tem esse lado técnico e manual que me atrai muito. Em 2006, tive a oportunidade de codirigir a restauração do filme “Bonequinha de Seda” (1936), do Oduvaldo Vianna, com o Hernani Heffner — que foi meu professor na UFF e chefe quando fui estagiária no MAM. Ele sabia do meu interesse e me convidou para o projeto, que acabou sendo uma experiência intensa. Levou sete anos para ficar pronto, com muitas idas e vindas. Foi algo pioneiro também: até então, as restaurações no Brasil focavam filmografias mais canônicas, como Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade. Esse filme, da década de 1930, era uma novidade nos laboratórios daqui. Tivemos que construir soluções aos poucos, em parceria com os laboratórios. Hoje vejo como minha experiência com direção de arte contribui na fase de finalização: correção de cor e marcação de luz. Ter esse olhar treinado ajuda muito, principalmente porque em muitos filmes não temos mais ninguém da equipe original viva para nos orientar. Claro, sempre partimos dos materiais originais como referência, mas é importante ter uma sensibilidade e um cuidado com essa etapa — assim como todas as outras. Entre os trabalhos que tive no MAM, no Arquivo Nacional e depois no  Centro Técnico Audiovisual (CTAv), no Rio de Janeiro, eu sempre busquei formação. No Brasil ainda é muito restrita. Isso tem mudado nos últimos anos, mas eu tive que ir para fora. Fiz cursos e estágios, o primeiro foi na Filmoteca Espanhola, em 2005, depois passei pela Escola de Cinema e Televisão, de San Antonio de los Baños, em Cuba, em 2008, num curso que aconteceu uma única vez, de altos estudos em preservação audiovisual. Estou sempre estudando, buscando me atualizar. Acho isso importante.

  • G |Em meio a esse processo, você criou a Minemosine. Como foi isso?

    DB |

    Ela foi criada em 2009. Eu e alguns colegas precisávamos formalizar uma empresa para prestar serviços ao CTAv, onde trabalhávamos como terceirizados. Com o tempo, eles saíram e eu continuei. A Minemosine tem 16 anos e atua em várias frentes: apoio a projetos de restauração, cursos de formação e desenvolvimento de propostas minhas e de outras pessoas. O nome vem da deusa grega da memória — o que diz muito sobre o propósito. A empresa me permite autonomia para propor projetos. Gosto de trabalhar com acervos não tão canônicos.

  • G |Quais os principais desafios que você enfrentou na carreira até aqui?

    DB |

    O maior deles é a instabilidade. Trabalhei em várias instituições públicas e privadas, com vínculos muito diversos. Isso acaba sendo desgastante. Muita gente, inclusive, desiste da área por não conseguir se manter. A sociedade brasileira ainda não enxerga a preservação como parte do ecossistema audiovisual. Isso vem mudando — tenho percebido uma maior consciência nos últimos anos sobre a importância da preservação do patrimônio audiovisual brasileiro —, mas ainda não se traduz em recursos. Um momento bastante desafiador também foi o período em que fui coordenadora do acervo do CTAv, entre 2006 e 2013. Com apoio do então gestor Gustavo Dahl, conseguimos estruturar de forma muito mais sólida o setor de preservação, com salas adequadas, equipe especializada e, depois, a construção de um depósito de matrizes com condições ideais de climatização. Foi muito desafiador, era a primeira vez que eu lidava com uma equipe grande, com desafios práticos, pensando em soluções específicas e brasileiras, a bibliografia estrangeira muitas vezes não dialoga com a nossa realidade local. Temos um clima quente e úmido, diferente da Europa, que é é justamente o contrário, frio e seco. O clima lá atua a favor enquanto o clima brasileiro atua contra. Então, já partimos de um princípio que é desafiador por si só. Muitas vezes temos que criar soluções locais a partir de áreas que não são preservação, porque não há insumos nem equipamentos específicos fabricados no Brasil, é bem desafiador. Acredito que nessa temporada de trabalho eu dei um grande salto profissional.

  • G |Você acredita que, por ser mulher, enfrentou dificuldades relacionadas ao machismo nessa área?

    DB |

    Com certeza. A gente enfrenta isso em todos os âmbitos da vida, e no trabalho não seria diferente. Na área da preservação audiovisual, por exemplo, vejo que ela está muito ligada a uma ideia de cuidado — o que, historicamente, foi associado às mulheres. Se você for pesquisar, vai perceber que há muitas mulheres atuando, especialmente em setores como revisão de filmes ou acervos de fotografias antigas. São funções majoritariamente femininas porque dialogam com esse imaginário do “cuidar”, que supostamente seria algo inerente a nós. Mas o desafio mesmo está em ocupar os postos de poder. Ainda é muito comum vermos mulheres em posições de apoio ou assessoria, mas não nos cargos de decisão. E isso vem mudando aos poucos. Uma das áreas em que mais sinto resistência é no campo técnico. Existe uma percepção equivocada de que esse lugar pertence aos homens — como se fosse algo “naturalmente masculino” — e isso ainda pesa. Quando uma mulher ocupa esse espaço com autoridade técnica, o diálogo com alguns homens pode se tornar difícil, especialmente quando você domina o assunto mais do que eles. É um equilíbrio delicado. Eu procuro sempre manter o diálogo aberto, uma postura firme, mas também receptiva. Só que quando uma mulher é assertiva, muitas vezes isso não é bem recebido. Mesmo assim, tenho conseguido estabelecer trocas generosas e respeitosas, embora não seja fácil. No campo técnico, o estranhamento acontece até quando trago informações atualizadas. Hoje, com os processos de restauração sendo majoritariamente digitais, é fundamental estar por dentro dos formatos mais adequados à preservação. E isso é algo que eu sempre busco — estudo, compartilho referências, trago esse conhecimento para os projetos. Às vezes, preciso justificar demais, “dar uma carteirada”, para validar minha fala. Mas isso tem acontecido cada vez menos. Acredito que meu trabalho ao longo dos anos vem comprovando esse olhar e essa expertise. Os projetos concluídos falam por si.

  • G |Você pode explicar as diferenças entre remasterização, digitalização e restauração?

    DB |

    Remasterização é um termo muito usado pelo mercado, mas a gente, na preservação, evita. Ele não dá conta da complexidade do que fazemos. Digitalização é a conversão de um material analógico (película ou fita) para o formato digital. Ela é uma etapa da restauração digital, mas nem toda digitalização é uma restauração. Já a restauração busca restituir as características originais de uma obra que foi danificada pelo tempo ou por más condições de armazenamento. Pode ser fotoquímica (em película) ou digital. Na restauração digital, temos ferramentas que permitem apagar riscos, estabilizar imagem, recuperar cor. Mas é sempre um trabalho de pesquisa e comparação entre diferentes materiais, com muito cuidado para não inventar o que não existia.
    Restauração não é melhorar o filme — é devolver o que ele foi.

  • G |Pensando na área de preservação audiovisual, como você vê o cenário atual no Brasil, em comparação com países que têm uma indústria cinematográfica mais consolidada? E como está a formação de novos profissionais para atuar nessa área?

    DB |

    Acredito que estamos passando por uma transformação significativa na preservação audiovisual no Brasil. Há, sim, uma mudança de mentalidade em curso sobre a importância dessa área e do nosso patrimônio. Infelizmente, muitas vezes o país só se dá conta da relevância disso diante de tragédias — como aconteceu com a Cinemateca Brasileira, que passou por uma enchente em 2020 e um incêndio em 2021. Nesse período, eu nunca falei tanto sobre preservação. Esse despertar vem acontecendo, mas como já comentei antes, essa mudança precisa se traduzir em recursos. A área de preservação ainda não tem o destaque que merece — e isso vale, em alguma medida, até para outros países. Mas há exceções. A França, por exemplo, entende a importância de preservar seu patrimônio audiovisual e investe pesado nisso, com programas e instituições bem financiadas. No Brasil e na América Latina, vejo avanços. A mentalidade está mudando aos poucos. E uma das mudanças mais importantes é o reconhecimento de que precisamos criar soluções locais. Durante muito tempo, olhamos para fora em busca de respostas, porque outros países têm mais recursos, mais investimento em pesquisa. Mas os problemas que enfrentamos aqui são muito diferentes, especialmente pela questão climática. A película sofre muito com calor e umidade, o que exige soluções próprias. Esse entendimento está se consolidando. Vários pesquisadores já vêm defendendo a importância de dialogarmos mais com nossos pares latino-americanos e com o chamado Sul Global. Temos realidades muito próximas e desafios específicos. E acho que os trabalhos de restauração que venho coordenando mostram que é possível fazer coisas de excelência aqui mesmo. Um exemplo disso é “A Rainha Diaba”, projeto que coordenei com laboratório e profissionais brasileiros. O filme circulou internacionalmente, foi exibido no Festival de Berlim e eleito uma das dez melhores digitalizações de 2023 — o que foi surpreendente e muito significativo. Isso mostra que temos plena capacidade de entregar projetos de altíssima qualidade. O que falta é estabilidade para que possamos trabalhar com mais tranquilidade e investir tempo em pesquisa. É urgente desenvolver ferramentas adequadas à nossa realidade, com parâmetros que façam sentido para o nosso contexto. Claro que a troca internacional é importante — essa é uma área muito generosa nesse sentido, com muitos diálogos com colegas de outros países. Mas é essencial desenvolver soluções a partir daqui.

  • G |O que te move nessa área?

    DB |

    Olha, o que me move tem muito a ver com o próprio gesto de preservar e difundir. Além do trabalho técnico, eu também atuo com curadoria — então o acesso às obras sempre foi algo muito importante para mim. Muitas vezes a preservação é vista como algo oposto à difusão, como se fossem atividades em conflito, mas isso não faz sentido. A gente preserva justamente para que as obras possam ser vistas, para circularem. Tenho uma satisfação enorme quando um filme volta a circular com a potência que ele merece. A restauração dá essa nova chance para as obras dialogarem com a sociedade — às vezes de forma diferente do que foi possível quando foram lançadas. Muitos filmes foram mal compreendidos ou não tiveram espaço suficiente de reflexão na época em que saíram. A preservação guarda esse potencial, e a restauração tem esse gesto bonito de resgatar uma obra e devolvê-la ao público, oferecendo uma nova leitura, uma nova possibilidade. Tenho visto isso acontecer em vários projetos, e é muito bonito de ver — principalmente o reencontro de certos filmes com uma nova geração. É como se estivessem sendo apresentados pela primeira vez. Isso me emociona, me move muito. E acho que, no fundo, tudo isso tem a ver com uma tentativa de vencer a morte, sabe? O filme é como a gente: nasce para morrer. O que fazemos ao preservar é tentar adiar esse fim. Existe uma certa ousadia nesse gesto. Preservar é, de certa forma, lutar contra o desaparecimento, contra o esquecimento. No Brasil, esse gesto ganha ainda mais força. Aqui, a gente vive driblando a morte e o extermínio de muitas formas. Então, para mim, preservar é mais um desses gestos de resistência. E isso é muito poderoso.

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