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CV: Thiago Nascimento

Diretor-executivo do Instituto Decodifica, Thiago Nascimento defende o uso de dados produzidos pelas periferias como ferramenta de justiça social e transformação de comunidades

Ana Elisa Faria 30 de Maio de 2025

Cria do Jacarezinho, comunidade da zona norte do Rio de Janeiro, ex-jogador de basquete, estudante de direito e empreendedor social, Thiago Nascimento, 27, ajuda a converter dados em justiça e direitos. À frente do Instituto Decodifica, ele trabalha para garantir que as periferias tenham protagonismo na produção de conhecimento e acesso a garantias fundamentais. “Não basta coletar dados e transformar em um relatório que tenha fim em si. É preciso que eles retornem em políticas públicas”, afirma.

Com o desejo de promover transformações na própria comunidade, Nascimento liderou, durante a pandemia de covid-19, a campanha “Jaca contra o Corona”, uma mobilização emergencial no seu território que distribuiu cestas básicas e máscaras de proteção. A ausência do Estado naquele momento escancarou uma urgência: a falta de informações confiáveis sobre a favela do Jacarezinho e seus arredores.

Foi dessa inquietação que nasceu o Instituto Decodifica, voltado à produção, à comunicação e à incidência política baseada em dados, com foco nas diversas realidades e necessidades periféricas, a partir do olhar cidadão.

Guiando uma equipe inteiramente negra, o diretor-executivo do Decodifica encara os desafios de sustentabilidade financeira, gestão e o racismo. “A gente é colocado numa caixinha limitadora que impõe até onde podemos chegar, principalmente dentro dos campos da tecnologia e de dados. Enfrentar esse cenário já é enfrentar uma estrutura que promove o racismo estrutural e a desigualdade”, diz.

Nesta entrevista à Gama, Thiago Nascimento conta como a sua vivência moldou o trabalho que realiza, quais os desafios de empreender a partir da periferia e os aprendizados que o motivam a seguir.

O que me move parte do incômodo, da resiliência e da persistência, de buscar caminhos para que a favela seja reconhecida como espaço de potência 

  • G |De que forma você chegou até aqui?

    Thiago Nascimento |

    Eu sou um ex-atleta do basquete, cria do Jacarezinho. Como estudei com bolsa em um colégio particular por conta do esporte, sempre estive muito conectado às questões sociais. Por ter tido uma educação de qualidade, entrei para a universidade pública. Comecei a cursar direito na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], até que, em determinado momento, confesso que um pouco cansado do ambiente do direito, e por não me ver naquele espaço, resolvi trancar a faculdade. Mas tranquei pensando em fazer o vestibular de novo e querendo construir um projeto na minha comunidade. Foi quando criei o Jacaré Basquete, um projeto para as crianças do Jacarezinho, no entanto, logo veio a pandemia de covid-19, uma época assustadora. Ainda com poucas informações sobre a covid, reparamos que a gestão daquela crise dentro do território deveria ser feita por nós, os moradores. Não havia nenhum suporte do poder público. Assim, criei uma campanha chamada “Jaca contra o Corona”, uma rede de organizações, dentre elas a que eu estava fundando naquele momento, a Jacaré Basquete. Fizemos uma mobilização bacana, com o suporte dos professores da UERJ, com doações. A campanha ganhou visibilidade e conseguimos entregar mais de 3,5 mil cestas básicas e mais de 10 mil máscaras. Daí para a criação do Instituto Decodifica foram poucos meses.

  • G |Como foi o processo de criação do Instituto Decodifica?

    TN |

    O Decodifica nasceu de uma lacuna sobre a covid-19, um blecaute total de falta de dados sobre o Jacaré e o Jacarezinho. A gente conversava com a associação de moradores e eles nos passavam um determinado número de pessoas que viviam ali na comunidade, mas quando olhávamos para o Censo havia uma diferença grande. Isso nos batia com receio e, ao mesmo tempo, com uma sensação de urgência para que algo fosse feito. A gente precisava de dados sobre aquelas comunidades. Como se pensa em política pública, em investimento social privado, em financiamento público, se não temos sequer dados sobre a situação dessas comunidades e uma escuta ativa do que os moradores querem? Com outras organizações, criamos um painel unificador da covid-19, e os nossos dados passaram a ter mais visibilidade. Percebemos que havia uma demanda urgente para a construção e a coleta de dados, para combater a desinformação e para a construção de narrativas a partir da nossa própria comunidade. Assim surgiu o LabJaca, Laboratório do Jacarezinho, que, tempos depois, transformamos em Instituto Decodifica, pensando em como conectar melhor os territórios para trabalhar com Geração Cidadã de Dados sobre favelas e periferias.

  • G |Quais são as principais atividades do Decodifica?

    TN |

    Somos um instituto de Geração Cidadã de Dados. A nossa metodologia de trabalho parte do olhar cidadão, de como é importante entender que as favelas devem ser protagonistas do seu próprio conhecimento. Pensamos em formas de desafiar uma lógica que nos trata apenas como objeto de estudo. É mais do que necessário que a gente forme e pense em mecanismos para horizontalizar esses saberes. Quando pensamos sobre transformação de favelas, isso passa por integridade de informação e a nossa presença nos espaços de tomada de decisão. A geração cidadã de dados, metodologia que utilizamos, tem uma parte formativa e uma parte de comunicação para entender qual é o melhor meio de comunicar dentro de favelas e periferias, tanto no offline quanto no online. No entanto, não basta coletar dados e transformar em um relatório que tenha fim em si. Precisamos ter uma agenda muito ativa para consolidar e construir esses dados, fazendo com que eles retornem em políticas públicas. O Decodifica forma lideranças comunitárias e organizações de base comunitária. Trabalhamos com a construção e a valorização de um conhecimento que é favelado, que vem da periferia. Para garantir direitos, é preciso de informação e evidências sobre os nossos territórios.

Trabalhamos com a construção e a valorização de um conhecimento que é favelado, que vem da periferia

  • G |E você pretende voltar para a faculdade de direito?

    TN |

    Eu me mudei para São Paulo recentemente porque ganhei uma bolsa integral na FGV (Fundação Getulio Vargas). Agora, falta só um pouquinho para terminar a faculdade. Honestamente, é importante ter essa formação; é importante para a minha carreira. Invisto muito no Decodifica, na expansão do espaço do Decodifica, numa agenda de tecnologia, pensando em novas tecnologias sociais e digitais emergentes da periferia, mas entendo que o espaço acadêmico é tão importante quanto. Preciso também estar dentro desse espaço e me formar, é uma meta minha.

  • G |O que move você a trilhar esse caminho?

    TN |

    É o incômodo. O incômodo de ter sido criado em um lugar, de ver as potencialidades desse lugar e, mesmo assim, sempre sermos vistos a partir da violência. Onde nasci, cresci, construí o LabJaca, que depois virou Decodifica, é um lugar atravessado pela violência no cotidiano. Nasci em um quintal com cinco primos, e o meu pai era a principal referência paterna desse espaço. E vi três dos meus primos serem presos por tráfico de drogas. Primos que foram criados comigo. Isso sempre me gerou um aperto muito grande no coração, e comecei a pensar em novas perspectivas possíveis para aquele lugar. A criação do projeto de basquete se deu para dar oportunidade aos jovens de construírem e terem sonhos, de terem a possibilidade de sonhar. Quando você nasce em uma favela, muitas vezes, ter sonhos, metas e objetivos é algo muito restrito. É um privilégio muito grande ter a possibilidade de conhecer e aprender determinadas coisas. E eu sempre tive um espaço muito aberto para isso por conta do esporte. Muito do que me move parte do incômodo, da resiliência e da persistência, de buscar caminhos para que a favela seja reconhecida como um espaço de potência, de soluções e de valorização da inteligência das próprias comunidades.

  • G |Quais os principais desafios que você enfrenta desde o início do Decodifica?

    TN |

    Uma organização que nasce na periferia já faz com que a gente enfrente muitos desafios. Sempre tivemos uma trajetória conectada com a garantia de direitos por conta de fatos que nos atravessaram. Por exemplo, a chacina que ocorreu no Jacarezinho [em 2021], quando morreram 28 pessoas. Naquela ocasião, tivemos uma atuação muito forte e presente para reconstruir a autoestima e a memória daquela comunidade. Aquele foi um momento-chave, muito desafiador e traumático. Logo depois, uma amiga, a Kathlen Romeu, que estava grávida, foi assassinada no [bairro] Lins de Vasconcelos. Tudo isso estava acontecendo ao mesmo tempo, e a gente tendo que ter uma atuação firme, para além do lado emocional que muito nos atravessava, para pensar em justiça. Não temos nossos direitos mínimos garantidos. Ainda assim, construímos uma organização integralmente negra, com 20 pessoas, que luta constantemente por sustentabilidade financeira para realizar ações, sem refletir experiências colonialistas ou que afetem como lidamos com o nosso time e com as outras organizações.

  • G |E seus maiores aprendizados até aqui?

    TN |

    Vou destacar a confiança na inteligência coletiva, o poder da mobilização e o trabalho em rede para pautar o território que a gente quer, as mudanças que a gente quer e gerar qualidade de vida a partir disso. É muito importante estar conectado com quem realmente conhece o território, com quem faz o território acontecer. Viramos essa chave no Instituto Decodifica quando passamos a ter uma demanda de transferência da nossa tecnologia para outros territórios. E não é possível fazer isso sem estar conectado com quem vive a dinâmica e a realidade desse território. Para a gente contar essas histórias e impulsionar essas narrativas — porque não é só sobre o dado ali, é sobre o que tem por trás: pessoas, histórias, projetos, famílias —, é fundamental ter um olhar humanizado. Outra coisa essencial é que precisamos ser agentes ativos na transformação das nossas comunidades. Quando pensamos na Geração Cidadã de Dados, questionamos indicadores e métricas para populações negras e periféricas. Quando há uma metodologia desenvolvida a partir dessa construção coletiva, conseguimos trabalhar, inclusive, no engajamento da comunidade.

  • G |Você enfrenta o racismo no meio das organizações com as quais trabalha?

    TN |

    Com certeza. Somos colocados numa caixinha limitadora que impõe até onde podemos chegar, principalmente dentro dos campos da tecnologia e de dados. Trabalhamos com um contexto e um conceito que fala sobre a soberania de dados. Então, temos que ter posse dos nossos dados, não dá para ficarmos tão dependentes das formas como se produzem dados e se coletam dados hoje em dia. Enfrentar esse cenário já é enfrentar uma estrutura que promove o racismo estrutural e a desigualdade. Além disso, ser um ser negro periférico que lida e transita dentro desses espaços por si só já é muito violento. Porém, vamos traçando estratégias para conseguir retornar com investimento, recurso, propostas, projetos e pensamentos de futuro para impulsionar as nossas comunidades. E, ao mesmo tempo, temos de nos tratar para não adoecer. Transitar nesses lugares é lidar com o racismo cotidianamente.

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