Ano novo caipira: uma celebração da fartura da colheita
A partir de símbolos do imaginário rural, pesquisadores falam da importância do período junino para a cultura popular e os ciclos agrícolas
“São João! São João! Acende a fogueira do meu coração!”, canta um trecho de O Balão Vai Subindo, de Alberto Ribeiro. Segundo a Bíblia, foi na ocasião do nascimento de João Batista que sua mãe, Isabel, acendeu o fogaréu para avisar Maria, a mãe de Jesus, sobre a chegada do filho que um dia viria a batizar o próprio Messias no Rio Jordão.
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Dois milênios mais tarde, no mês em que se comemora o aniversário do homem que virou santo e a chegada da estação mais fria do ano, milhares de fogueiras são acesas por devotos desejosos pela realização de seus pedidos. “Elas trazem o sol pra dentro do terreiro, no momento do solstício de inverno [começo da estação], em que o sol está mais longe do Hemisfério Sul”, diz o artista e pesquisador no Instituto Arado, Bruno Brito.
Festa do Divino Miguelzinho Dutra, 1841
Nascido em Jacareí e morador de Queluz, no Vale Histórico, no leste de São Paulo, Brito pesquisa o imaginário rural brasileiro a partir de códigos da cultura popular, incluindo os festejos joaninos (referentes a São João) ou juninos (relativos a junho).
As celebrações do meio do ano representam a fartura e a colheita dos principais elementos agrícolas
Importadas do calendário europeu, as celebrações do meio do ano têm origem pagã e, ainda que tenham sido incutidas de caráter religioso com a chegada do Cristianismo no continente, representam a fartura e a colheita dos principais elementos agrícolas. No caso da cultura caipira, o milho, o feijão e a abóbora – complementados pelo porco trazido pelos portugueses.
É o Ano Novo Caipira, nas palavras do cozinheiro e produtor rural, Rafa Bocaina. Inspirados no escritor e folclorista piracicabano Alceu Maynard Araújo (1913-1974), os dois pesquisadores defendem que a verdadeira virada de ciclo no Brasil acontece em junho, na entrada do inverno.
“Quem tem contato com a terra é impelido a celebrar essa fartura que se concentra agora. O sentido está dentro da pessoa, basta que esteja em contato com a cultura agrícola para ser conduzida a algum tipo de celebração.” Ele também destaca outros alimentos característicos do período, como o amendoim, o gengibre e a batata doce.
Segundo Bocaina, é agora que as aves se encontram mais gordas, os porcos estão bem alimentados, a cana fica mais doce e o feijão verde atinge o ápice do sabor: “Tudo caminha para que seja celebrado o fim de um ciclo e começo de outro“.
Quem tem contato com a terra é impelido a celebrar essa fartura que se concentra agora
“Caipira do fundão”, como se autointitula, a cozinheira e chef do Tordesilhas, em São Paulo, Mara Salles, relembra a chegada do frio na quente Penápolis da sua infância como um acontecimento. Para ela, as celebrações da época eram sinônimo de festa, partilha, pedido e troca de confidências.
Ela rememora o ritual: terço, procissão com a bandeira dos três santos – Antônio, João e Pedro – em torno da casa, levantamento do mastro, fincado entre o céu e a terra para trazer a fartura da colheita, e muitos fogos de artifício. “Nesse momento, as pessoas que vinham dos sítios e povoados vizinhos já tinham chegado. Me lembro da cerca de arame farpado lotada de animais amarrados”, descreve.
Como as bandeirolas reunidas em volta do mastro citado por Salles, é na metade do ano que o senso comunitário inerente ao campo ganha força e as pessoas do entorno se engajam nas etapas dos festejos, conjugando necessidade e diversão. “O mutirão para fazer pamonha, por exemplo, é trabalho, mas ao mesmo tempo é lazer”, lembra Brito, com a ressalva de que a chegada da industrialização, a partir de 1930, fez com que parte desse simbolismo se perdesse.
Salles pontua que era durante esses preparativos que as mulheres do meio rural aproveitavam para trocar confidências que nem sempre a lida diária permitia: “Era um trabalho muito feminino, não só das pamonhas, do curau, do bolo de milho, mas dos próprios pré-preparos da festa de São João, as flores, as bandeirinhas, o anisete [licor de anis], as broas de milho”.
Estúdio Arado
“O mês de junho sem milho, que alegria pode ter?”
A frase que inaugura o capítulo “Verde Milho, Doce Milho”, de “História da Alimentação no Brasil” (Global, 2011), de Câmara Cascudo, representa sua importância nos festejos caipiras. “O milho é considerado uma dádiva dos ciclos míticos“, fala a historiadora da alimentação, Rafaela Basso.
Muito antes do bandeirismo e do tropeirismo espalharem sua semente pela Paulistânia, os indígenas guaranis já tinham o cereal como base da alimentação e de rituais. Os portugueses, então, não demoraram a se apropriar do milho, não só como alimento para as viagens, mas também como elemento mítico para representar a fartura do período.
“Ele é o produto alimentar brasileiro que mais significa abundância. Além de ser de fácil acesso, barato e nutritivo, é muito rápido. Semeando no fim de março, você consegue ter as primeiras colheitas em junho”, diz Basso, autora de “A Cultura Alimentar Paulista: Uma Civilização do Milho? (1650 – 1750)” (Alameda, 2015).
Além dos tachos e tabuleiros juninos, de onde saem a pamonha, o curau e a canjica de origem guarani, e os bolos e doces de referência europeia, a simbologia do milho atinge o ápice do lúdico com as crianças, tão logo o vegetal começa a embonecar – no ponto da colheita.
“Num determinado momento, ele fica de cor fúcsia, e esse cabelo é comprido. É lindo ver o milho embonecando! As meninas brincavam de boneca com essa espiga”, recorda a cozinheira, sobre a alegria dos pequenos, como ela, que atravessavam essa época do meio rural.
Estúdio Arado
Sagrado e profano, divisão e fartura
De origem pagã, apropriadas pelo Cristianismo, as festas juninas – não só as relacionadas à tríade Santo Antônio (13/06), São João (24/06) e São Pedro (29/06), mas também ao Divino Espírito Santo (05/06) – contam com símbolos próprios, que variam de acordo com a região. Não só o São João nordestino se difere da festa joanina citada, da Paulistânia, mas também os códigos relacionados à celebração do Divino variam de lugar para lugar.
“A importância maior, na minha opinião, é a capacidade que esses signos têm. As colheitas, , no caso, são a faísca para a sociedade girar“, pontua Brito, destacando a retomada das tradições e práticas rurais, alavancada pelo fenômeno do êxodo urbano.
No Vale do Ribeira, por exemplo, a tainha é o alimento ligado à abundância, enquanto no Vale Histórico, o Afogado – ensopado de carne bovina, menos consumida no dia a dia – é o prato de partilha, podendo ser acompanhado de farinha de mandioca, em Silveiras, ou de milho, em outras cidades. Uma cultura e uma culinária de adaptação e inovação, típicas do caipira.
“Acho que, no fim, as festividades só escancaram uma leitura minuciosa que a comunidade faz da natureza. Elas mostram que de alguma forma a gente precisa se alinhar aos ciclos naturais”, finaliza o pesquisador.
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