“Estamos envoltos em tradições inventadas”, diz sociólogo Carlos Doria — Gama Revista
Estúdio Arado/Editora Fósforo

‘Na culinária nacional, estamos envoltos em tradições inventadas’

O sociólogo Carlos Alberto Dória desafia o senso comum sobre a cozinha brasileira em seus livros, que acabam de ser relançados pela editora Fósforo, e no Lobozó, de cozinha caipira, que abriu com o chef Marcelo Corrêa Bastos

Betina Neves 20 de Outubro de 2021

Frango com quiabo, tutu de feijão e leitão a pururuca são pratos tipicamente mineiros, certo? Não para o sociólogo Carlos Alberto Dória, doutor pela Unicamp e talvez o mais notório estudioso da culinária brasileira da atualidade. Segundo ele, existem uma série de mitos – ou, como ele prefere dizer, “racontos” – sobre como enxergamos a trajetória da nossa cozinha. Um deles é a ideia da tradicional comida de Minas.

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Dória explica que ela surgiu a partir dos anos 1920, no contexto do Modernismo, quando houve um esforço de fazer uma representação regionalizada da cozinha brasileira também como parte de disputas oligárquicas entre os estados. E Minas fez o trabalho caprichado, contratando uma série de intelectuais para criar o que seria a identidade mineira. O estado se “apropriou” então de uma comida caipira que era comum a uma região que envolvia também São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, parte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, além da região das Missões, no Rio Grande do Sul – território que Dória chama de “Paulistânia”.

Essas e outras visões que desafiam interpretações consensuais estão nos livros “Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a Cozinha Inzoneira” (2014) e “A Culinária Caipira da Paulistânia – A História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer” (2018), que acabam de ser relançados pela Editora Fósforo. O primeiro é composto por uma série de ensaios que passeiam pelos ingredientes, as técnicas e os processos sociais que levaram à criação dos hábitos alimentares e dos pratos nacionais. O segundo investiga a fundo a cozinha caipira, que tinha como pilar o milho, o feijão e a abóbora, influência dos indígenas guaranis, e o porco e a galinha, trazidos pelos portugueses.

O sociólogo Carlos Alberto Dória, doutor pela Unicamp e notório estudioso da culinária brasileira e sua história  Foto: Pablo Saborido

Dória é figura conhecida nas rodas gastronômicas do país, entre chefs e críticos – foi Helena Rizzo, chef e sócia do Maní, inclusive, que escreveu o prefácio desta nova edição do primeiro livro. Ele também é parte do movimento que organizou, entre outras ações, o Banquetaço de 2017 em reação à proposta do então prefeito João Doria de dar um granulado alimentar que recebeu o a pelido de “ração humana” a pessoas em situação de rua. Em 2020, formalizou sua escola de cursos, a Escola do Gosto, e abriu junto ao chef Marcelo Corrêa Bastos, com quem assina o segundo livro, o Lobozó, restaurante de cozinha caipira na Vila Madalena, em São Paulo.

Em entrevista a Gama, o sociólogo fala do papel da indústria do turismo na regionalização da comida brasileira, explica porque nosso olhar para a feijoada é essencialmente romântico e critica o entretenimento à la MasterChef, focado na competitividade.

Aqui, quando chegaram os colonizadores, comia-se animais como anta, tatu, capivara, tamanduá. Após um século e meio, houve uma colonização do gosto

  • G |Você desconstrói a ideia de que a formação da culinária brasileira seria fruto da mistura da culinária dos índios, dos negros e do português branco. Por quê?

    Carlos Alberto Dória |

    Nós ainda temos um viés de análise da culinária que vem de uma teoria já antiga, do Gilberto Freyre (1900-1987), do Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) [os dois intelectuais que mais contribuíram para o entendimento da culinária nacional], especialmente em temas como a miscigenação – não que ela não tenha existido, mas não me parece que tenha sido bem tratada. Em consequência dessas ideias, acabou se inventando um indígena e um negro genéricos, o que não contempla a diversidade de etnias, línguas e costumes dessas populações. É muito mais promissor para entender a especificidade da culinária, por exemplo, estudar a relação da comida baiana com a da Iorubalândia, cultura presente também em Cuba e nos EUA. Além disso, as influências têm muitas nuances. Veja o dendê, por exemplo, que todo mundo diz que veio da África com os escravos. Na verdade, o dendê veio logo no início da colonização com funções meramente cosméticas. Só depois do fim da abolição, os antigos comerciantes de escravos passaram a trazer o óleo de dendê que é usado na culinária, e isso foi só no século 19. Então hoje se faz um esforço de superar essas visões românticas e ir em direção a uma história mais real. E, para além disso, estudar outras influências: a jaca e a manga vieram da Índia, por exemplo, e ninguém discute isso.

  • G |Por que temos essa visão romântica da história da culinária?

    CD |

    Todos os relatos sobre a formação da culinária brasileira começaram no período romântico, na segunda metade do século 19, quando se começou a discutir como contar a história do país. Um país novo tem que ter uma literatura, uma música, um teatro próprios. Então surgiram vários relatos mitológicos. E um deles é sobre o que seria a culinária brasileira. Por exemplo: é muito comum se falar da mandioca, que veio com os indígenas. Mas se fala muito pouco do milho, que também foi domesticado por eles e importantíssimo em um vasto território do país – que eu chamo de Paulistânia. Então, falar da mandioca é escolher um ponto de vista da narrativa dessa história, com o herói sendo a mandioca. Porque no fundo achavam que o milho era o herói das civilizações andinas, então não era uma coisa autenticamente nacional, enquanto a mandioca nos particulariza. E querer se particularizar é uma questão politico-ideológica, não uma questão culinária.

Farinhas de milho e de mandioca, consumidas de norte a sul do país  Instagram/@lobozocozinha

  • G |Por que os regionalismos culinários estaduais não fazem sentido sociologicamente?

    Carlos Alberto Dória |

    O regionalismo tomou corpo como um movimento político na República Velha, quando as oligarquias dos vários estados disputavam recursos públicos federais. E há um esforço muito grande, especialmente depois dos anos 1920, com o Modernismo e Mário de Andrade (1893-1945), de considerar a culinária um patrimônio. Em 1926, surgiu o manifesto regionalista escrito por Gilberto Freyre (1900-1987), e ali ele fez uma representação regionalizada da cozinha brasileira. E isso acabou prevalecendo, e foi muito explorado pela indústria do turismo. Eu procuro desenvolver uma metodologia da territorialização da culinária popular, não da regionalização. Por exemplo, há uma diferença muito marcante no país em relação ao consumo de salsinha e coentro: no Sudeste quase não se come coentro, e no Nordeste quase não se usa salsinha. Isso se deve ao fato de que os portugueses que vieram para São Paulo, São Vicente, vieram do norte de Portugal, e lá eles comiam salsinha. E os que foram para o Nordeste eram do sul de Portugal, onde se comia coentro. Então é nesse nível de detalhe que nós queremos entender a culinária hoje.

Há um esforço de tipificação da feijoada brasileira, mas ela tem origem portuguesa – há uma tradição de feijoadas muito antiga em Portugal

  • G |Qual o papel da indústria do turismo nisso?

    Carlos Alberto Dória |

    A indústria do turismo é competitiva, os vários destinos disputam clientes. Então o regionalismo culinário acaba sendo ingrediente para essa indústria, a exemplo do que foi feito na França com o Guia Michelin no começo do século 20, que queria te dizer o que você ia comer quando viajasse para tal lugar. Essa proposta de passear pelo país precisou encontrar diferenças entre as regiões para ser mais atrativa. Só que há uma dificuldade em tipificar cozinhas que são muito próximas – como eu vou diferenciar a moqueca que se faz em Salvador da que se faz 300, 400 km mais para baixo? Ah, uma não tem dendê, é outra coisa, é muito diferente. Então se foi criando identidades com essa intenção turística e político-ideológica. Desse ponto de vista, estamos envoltos em tradições inventadas, fazendo referência ao livro do historiador inglês Eric Hobsbawm.

  • G |Mas e a feijoada?

    CD |

    Também me parece que nesse influxo modernista e nacionalista há um esforço de tipificação da feijoada brasileira. De dizer que essa feijoada feita com feijão preto, laranja, farofa e couve é “tipicamente um prato nacional brasileiro”, porque a farinha de mandioca representa o índio, o feijão representa os negros, etc. E usar isso como metáfora tudo bem, mas não tem nada a ver com a história da feijoada, que é uma coisa de origem portuguesa – há uma tradição de feijoadas muito antiga em Portugal, têm regiões de lá onde há feijoadas muito próximas à “brasileira”. O feijão foi elemento central na dieta colonial e aparecia com muitas feições.

Feijoada da Paulistânia, do restaurante Lobozó, feita com feijão rosinha ou jalo cozido com porco, abóbora, milho, e servido com couve refogada, arroz, farofa de farinha de milho e pedaços de laranja  Instagram/@lobozocozinha

  • G |Seu último curso foi sobre a hierarquização das carnes na história do Brasil. Do que se trata?

    Carlos Alberto Dória |

    Eu tenho muito interesse em entender a colonização do gosto. Aqui, quando chegaram os colonizadores, tínhamos um país com flora e fauna exuberantes e uma população que comia animais como anta, tatu, capivara, tamanduá. Um século e meio depois, quase todo território estava ocupado por boi, porco e galinha. Houve uma colonização do gosto pela supressão das carnes da terra – que, aliás, os portugueses apreciavam muito, principalmente a do tatu. Esse enfoque me permite também analisar a culinária do boi, aproximando por exemplo o Nordeste do Rio Grande do Sul. Porque quando começaram as grandes secas no Nordeste, houve a transferência da produção do charque do Ceará para o Rio Grande do Sul. E, enquanto no Nordeste o boi tinha um valor econômico muito maior, porque era criado para fornecer tração animal e alimento para os engenhos, no Sul ele só tinha valor para a extração do couro, não se aproveitava a carne. E aí você tem a origem do churrasco: os guaranis pegavam essa carne que não tinha valor e faziam churrasco.

  • G |Você também costuma contestar a ideia de que gostamos de doces muito doces. Por que?

    CD |

    O sociólogo cubano Fernando Ortiz dizia que a agroindústria do açúcar significava a total submissão de Cuba ao capitalismo mundial. E isso é muito verdadeiro aqui também. O açúcar é um elemento da ocidentalização das culinárias mundiais todas. Que ele venha disfarçado de leite condensado, chocolate ao leite, etc, não importa, mas é algo que vêm das entranhas do capitalismo agroindustrial. E o seu uso descontrolado também se deve a razões econômicas. Por exemplo: você pega uma compota de pêssego ou goiaba e o maior componente ali é o açúcar, porque ele é muito mais barato do que a polpa de fruta. Então existe um sacrifício da qualidade em prol de uma economicidade, e a gente não pode perder isso de vista. E daí é um passo para quererem nos convencer de que comer açúcar desmedidamente é da tradição e do gosto brasileiro – isso é uma bobagem. Se você olhar um livro como o “Doceiro Nacional”, do século 19, as receitas tinham menos açúcar do que as de hoje. Então há uma introdução crescente de açúcar pela indústria.

O açúcar é um elemento da ocidentalização das culinárias mundiais, é algo que vêm das entranhas do capitalismo agroindustrial

  • G |Qual o papel dos chefs contemporâneos hoje nesse “resgate” da culinária brasileira?

    Carlos Alberto Dória |

    Todos os chefs têm uma importância: eles educam o gosto, são professores do gosto. Tem alguns fazendo um trabalho bastante interessante, como a Helena Rizzo, o Rodrigo Oliveira, o Alex Atala. Chamem isso do que for, de cozinha brasileira, regional, afetiva. E atrás vem vindo uma nova geração que também tem essas preocupações. Nisso aparecem desvios, que são esses “master chefs” da vida. Aí são discursos falsos, no sentido de artificiais, com um sujeito que atravessa aquela maratona achando que sai de lá um grande cozinheiro. Isso é bastante nocivo, porque não traz nenhuma descoberta ou reflexão nova. Tem gente ali fazendo espuma, coisa que o Ferran Adriá fazia há 25 anos.

  • G |Por que você não aprecia esse tipo de entretenimento culinário?

    CD |

    A culinária é a transformação da natureza em alimento e isso implica em uma prática cooperativa. O que esses programas fazem é transformar a culinária numa prática competitiva. E eu acho a competitividade o pior aspecto do capitalismo. Ainda mais numa época como a nossa, em que a gente precisa tanto de solidariedade entre as pessoas, a competição é o contrário do que eu espero como ideal de civilização. Então me incomoda que eles tenham tanta audiência. Eu acho que é muito ruim viciar as pessoas em eliminar o outro.

  • G |Qual a ideia do Lobozó, seu restaurante com o chef Marcelo Corrêa Bastos?

    CD |

    Nosso desafio é reinserir a tradição da culinária caipira na vida moderna. Nesse ano e meio nós já revolucionamos a percepção das pessoas em relação ao frango caipira, por exemplo, é uma coisa bem diferenciada do que se faz no resto da cidade. Nós também retomamos a paçoca do Vale Paraíba como ela é, nada a ver com essas paçocas que se vende no caixa da padaria. No livro, nós reunimos 270 receitas, e a gente só mexeu em meia dúzia, então tem assunto aí para uns 20 anos. A abertura foi bastante prejudicada pela pandemia, mas minha ideia é que ele seja também uma referência cultural, um laboratório mesmo.

Produto

  • Formação da Culinária Brasileira – Escritos sobre a Cozinha Inzoneira
  • Carlos Alberto Dória
  • Fósforo
  • 264

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Produto

  • A Culinária Caipira da Paulistânia – A História e as Receitas de um Modo Antigo de Comer
  • Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos
  • Fósforo
  • 376

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