Lázaro Ramos e o racismo distópico do Brasil — Gama Revista
Cena do filme
Divulgação

Lázaro Ramos e o racismo distópico do Brasil

Em estreia como diretor, a aposta é em um futuro distópico para falar sobre racismo no Brasil

Daniel Vila Nova 06 de Abril de 2022

Há cerca de 100 anos, a primeira distopia da ficção era escrita pelo autor russo Yevgeny Zamyatin. “Nós”, romance clássico lançado em 1924, olhava para a sociedade russa da época e extrapolava seus defeitos, criando um futuro terrível, mas possível. Ao longo dos anos, inúmeros autores se inspiraram na realidade em que viviam e criaram futuros distópicos que até hoje habitam nossa cultura. De “1984” à “Jogos Vorazes”, o gênero se mantém relevante abordando questões e injustiças sociais presentes nos tempos atuais.

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Engana-se, no entanto, quem acredita que distopias são previsões pessimistas do futuro. Elas, na realidade, são duras críticas ao presente em que vivemos. Em um país tão desigual e violento quanto o Brasil, críticas são o que não faltam para compor uma distopia nacional. É nesse cenário que Lázaro Ramos assume pela primeira vez a cadeira de diretor de cinema e produz um filme que aborda uma das injustiças sociais fundadoras da sociedade brasileira – o racismo.

Medida Provisória” (2022) é um longa protagonizado por Alfred Enoch (Antônio), Seu Jorge (André) e Taís Araújo (Capitú) que será lançado no dia 14 de abril. Em um futuro próximo, o governo brasileiro anuncia um plano para retornar cidadãos negros, chamados de “melaninados” no futuro distópico, para o continente africano. O que se inicia como uma viagem voluntária rapidamente se transforma em uma medida autoritária e pretos e pardos passam a ser capturados e deportados do Brasil. O longa acompanha a resistência do trio de amigos à medida provisória, e no processo, questiona inúmeros pontos relevantes ao que é ser negro no Brasil, entrelaçando noções de gênero, sexualidade e raça.

 Mariana Vianna/Divulgação

O filme é baseado na peça “Namíbia, não!” do dramaturgo baiano Aldri Anunciação. Além de sucesso de público em Salvador, a história também foi adaptada por Anunciação em formato de romance e faturou o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Juvenil”. De acordo com Lázaro, a vontade de adaptar a história para as telonas sempre existiu. “Lá em 2011 nós já conversávamos sobre a possibilidade de transformar essa história em outra coisa. Tentamos alguns cineastas para o papel de diretor, mas acabou não rolando. Naturalmente, comecei a assumir esse papel.”

O diretor de primeira viagem tinha suas dúvidas se gostaria do novo cargo, mas logo percebeu que aquele local era um lugar de prazer. “O maior desafio foi levar para o cinema uma mistura de gêneros”, assume Lázaro. Os roteiristas do filme classificam a história como uma mistura de thriller, comédia romântica e aventura. Se a junção desses estilos diferentes pode parecer confusa, Anunciação garante que a adaptação foi feita para privilegiar a história. “Queremos que o público se divirta, se emocione e seja tocado pelo afeto presente na narrativa. Há também uma ironia dramática que promove uma abertura de pensamento”, diz o roteirista.

Para eles, a narrativa do longa é uma história que chega no momento certo. “A realidade está se aproximando demais do que a ficção trás como um alerta”, pondera Lázaro. O elenco e a equipe entendem o filme como uma mensagem de resistência contra a censura e o autoritarismo no país. Perguntando sobre o que pode ser feito para evitar que o futuro do filme se transforme em realidade no Brasil, Lázaro é enfático: “Tirar o Bolsonaro do governo.”

Gama acompanhou a coletiva de imprensa do filme e detalha os bastidores da produção e tudo que foi conversado no evento.

Em uma galáxia não tão distante…

Apesar da atualidade do tema, o filme foi filmado em 2019 e deveria ter sido lançado antes de 2022. Entraves políticos e comerciais, no entanto, acabaram adiando a data de estreia de “Medida Provisória”. De acordo com os produtores do filme, o processo de distribuição do longa enfrentou resistência da própria Ancine.

“O que impede o lançamento da obra é, na verdade, a demora da Ancine em concluir os trâmites necessários para a troca de distribuidora do filme”, diz o texto divulgado no final de 2021 pela assessoria de imprensa do longa. “Essa situação gera profunda insegurança jurídica para as produtoras e distribuidoras envolvidas, pois a ausência de uma posição da Ancine impede que sejam tomadas as medidas necessárias para divulgação do filme e, consequentemente, para definição da data de lançamento comercial em cinemas no Brasil”, afirma a nota.

 Divulgação

No Twitter, o então presidente da Fundação Cultural Palmares Sérgio Camargo disse que o filme “acusa o governo Bolsonaro de crime de raciscmo – deportar todos os cidadãos negros para a África por medida provisória.” Ainda na publicação, Camargo afirmou que era dever moral boicotar o longa nos cinemas. Além de “Medida Provisória”, outro filme que também enfrentou problemas com a Ancine e com o governo Bolsonaro foi “Marighella”, também protagonizado por Seu Jorge.

“Os dois filmes foram perseguidos, mas nós estamos atentos, não vamos mais aceitar o autoritarismo”, afirmou o ator. Para ele, Lázaro Ramos e Wagner Moura, que dirige “Marighella”, são homens de coragem. “Eles estão falando sobre questões sérias. É um alerta, nós não queremos um país que mate nossos jovens, que maltrate nossas mulheres e que ataque todos que são diferentes.”

Mariana Xavier, que interpreta o par romântico de Seu Jorge, relata que a realidade do filme ainda parecia distante em 2019. “Achávamos que os próximos anos iam ser ruins, mas não tanto. Infelizmente, estamos muito mais próximos desse futuro distópico do que gostaríamos.” Xavier é Sara, namorada de Antônio que Lázaro define como “a branca mais legal do filme”. “Talvez, se esse filme tivesse sido lançado antes, ele parecesse uma fantasia. Hoje, nós vemos que ele é real. A perseguição aos negros, na prática, já acontece.”

Antônio, André e Capitú

“Esse filme chama a atenção para os sucessivos absurdos que acontecem com a população negra brasileira”, afirma Seu Jorge. No filme, ele interpreta o jornalista André, um sujeito bem humorado e militante pela causa negra. “André e Antônio [personagem de Alfred] são pessoas felizes, alegres e vibrantes”, diz o ator. “É a violência do racismo que vai levando essas pessoas para um lugar onde elas nunca estiveram.”

Isolados e fugitivos dentro do próprio país, a situação vai se tornando cada vez mais brutal para os dois amigos ao longo da trama. Se André acredita que a violência pode ser uma solução para a situação que se encontram, Antônio é veementemente contra. O filme aborda questões como a violência revolucionário e qual é o papel dela dentro do movimento negro. “Bem no começo do filme, o Antônio diz que acredita no poder da palavra”, diz Alfred Enoch. O ator, que é britânico, tem raízes brasileiras e aceitou o desafio de fazer o seu primeiro longa em português.

 Mariana Vianna/Divulgação

Ele interpreta Antônio, um advogado pacifista que luta pela reparação financeira do povo negro em decorrência da escravidão e do racismo. “Eu também acredito no diálogo, por isso gosto de contar histórias”, diz o ator. Para ele, a melhor maneira de mudar o mundo é por meio da palavra e a cultura e a arte são as ferramentas que podem transformar nossa realidade. “Nós só vamos nos aproximar quando entendermos a perspectiva do outro.” Apesar de discordarem nessa questão, André e Antônio jamais se separam. “Esse é o poder do diálogo”, afirma Enoch.

Complementando o trio de protagonistas, Taís Araújo interpreta a médica Capitú. Nascida em um ambiente privilegiado e branco, a personagem foi feita para mostrar a diversidade de mulheres negras. “Existem aquelas mulheres que são letradas racialmente desde pequenas, existem aquelas que não são letradas e aquelas que vão se letrando ao longo do caminho”, afirma a atriz. “Independente da trajetória, o racismo te chama em algum momento.”

Ao longo da trama, Capitú vai se deparando com inúmeras questões pertinentes à realidade da pessoa negra no Brasil. E é ela que, enquanto foge do governo autoritário, encontra aquilombamentos modernos formados pela população preta e parda brasileira. “A dor vai fazer com que ela se letre. Infelizmente, essa é a grande verdade. Quando se nasce negro nesse país, não há outra escolha.”

Encruzilhada cultural

No Brasil, 54% da população é negra. A realidade, no entanto, não costuma ser refletida nas telas do cinema nacional e atrás delas. Em “Medida Provisória”, a situação não é bem assim. “No filme, há uma minoria branca”, afirma o roteirista Aldri Anunciação. “Isso criou uma encruzilhada cultural muito fantástica.” Segundo o autor, narrativas negras brasileiras são totalmente atravessadas pela branquitude e, poder trabalhar com isso durante o processo de produção do filme, foi essencial.

O filme foi escrito por quatro pessoas, três roteirista negros – Lázaro Ramos, Aldri Anunciação e Elísio Lopes Jr – e um branco – Lusa Silvestre. “Há quase um lugar de fala do autor branco para Lusa”, brinca Anunciação. “Quando ‘Medida Provisória’ passou na minha frente”, diz Silvestre, “eu pulei dentro. Era uma gênese de tamanho impacto que eu sabia que o filme seria maravilhoso.” O roteirista, um dos responsáveis por “Estômago” (2007), entrou no projeto para auxiliar a adaptação da história à linguagem cinematográfica. “Espero que eu tenha ajudado a transformar esse filme assim como ele também me transformou em uma pessoa melhor.”

 Mariana Vianna/Divulgação

Mariana Xavier também afirma ter sido tocada pela história do longa. “Eu li tudo em uma tacada só e me arrepiei lendo o roteiro. Aceitei o convite do Lázaro na hora, não existe papel pequeno quando você está contando uma grande história.” Para a atriz, o longa pode trazer lições valiosas para quem é branco. “A minha geração talvez não tenha escolhido fazer parte disso, mas nossa cor ainda carrega privilégios.” Ela entende que o racismo não é um problema somente dos negros e que os brancos também participam dessa engrenagem.

Se Xavier interpreta uma mulher branca que busca auxiliar seus amigos negros, o mesmo não pode ser dito de Renata Sorrah e Adriana Esteves. Acostumadas a brilharem em papéis de vilãs icônicas, aqui elas encontram figuras muito mais terríveis do que as cartunescas Nazaré Tedesco e Carminha. Enquanto Sorrah é uma vizinha que, a todo momento, desconfia e dificulta a vida dos protagonistas, Esteves é uma funcionária pública que parece ter gosto em aplicar às medidas autoritárias do governo. “Se fosse um filme de comédia, eu até aceitaria ser chamada de vilã”, afirma Adriana Esteves. Mas segundo ela, Isabel, sua personagem, é uma pessoal real que infelizmente existe em nosso dia a dia. Talvez por isso, até mais perigosa do que uma vilã de novela.

Apesar de ser uma narrativa negra, Lázaro buscou ouvir todos aqueles que participaram do projeto. Em sua primeira vez como diretor, ele acredita que essa forma de operar foi o segredo para o sucesso do seu filme. “Ser diretor é um trabalho de ouvir os talentos disponíveis para contar essa história. Quero que todos possam se apropriar dessa narrativa”, finaliza o diretor.

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