Round 6 e o sucesso dos 'Death Games' — Gama Revista
Battle Royale Reprodução. Round 6 Divulgação/Netflix

Round 6 e o sucesso dos ‘Death Games’

Conheça o gênero que questiona o capitalismo da forma mais violenta possível e que tem como carros-chefes obras como ‘Round 6’, ‘Jogos Vorazes’ e ‘Jogos Mortais’

Daniel Vila Nova 26 de Outubro de 2021

Round 6” (2021) é uma sensação global. A série sul-coreana de nove episódios tomou o mundo de assalto e foi assistida por mais de 132 milhões de pessoas em apenas 23 dias, tornando-a a série mais bem sucedida da história da Netflix. O serviço de streaming, que gastou cerca de US$ 21 milhões para produzir a primeira temporada, estima um ganho de valor de quase US$ 900 milhões graças ao programa. Além do sucesso financeiro, a obra também é um fenômeno cultural nos mais diversos nichos.

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Se no Brasil a série já virou tema de funk, nos EUA ganhou uma paródia musical do “Saturday Night Live” (1975), um dos mais tradicionais programas de humor do país. A atriz HoYeon Jung, que interpretou a jogadora número 067 Sae-Byeok, é a nova it girl do momento e se tornou a embaixadora global da Louis Vuitton. As personagens da série também ganharão versões em Funko Pops, linha de bonecos extremamente popular.

O mundo se transformou em um lugar onde uma história de sobrevivência tão peculiar e violenta é bem-vinda

O sucesso, entretanto, demorou a acontecer. O criador da série, Hwang Dong-hyuk, começou a trabalhar no roteiro de “Round 6” em 2008, mas encontrou dificuldades em vender o projeto. Segundo ele, a proposta da série era pouco familiar e muito violenta para o público. “Mas depois de 12 anos, o mundo se transformou em um lugar onde uma história de sobrevivência tão peculiar e violenta é bem-vinda”, ele contou ao The Korea Times.

“Round 6” acompanha um grupo de 456 pessoas extremamente endividadas que se arriscam em provas mortais em busca de uma farta premiação em dinheiro. Os participantes que não conseguem cumprir as etapas são mortos. No fim do jogo, o sobrevivente recebe o prêmio. A premissa da série não é exatamente original, ela faz parte de um gênero narrativo que vem ganhando cada vez mais popularidade: os chamados “Death Games”, ou jogos da morte em bom português.

Esse gênero narrativo acompanha um jogo/concurso onde os participantes são colocados dentro de um ambiente restrito e devem superar provas mortais, que podem ou não incluir o assassinato de outras pessoas, e lutar pela própria sobrevivência. Obras como “Jogos Vorazes” (2008, Editora Rocco), “Jogos Mortais” (2004), a série brasileira “3%” (2016) e até mesmo um dos jogos mais populares do mundo, “Fortnite” (2017), são exemplos bem sucedidos desse tipo de narrativa.

Enquanto algumas dessas produções adotam o formato de jogos mortais para explorar a estrutura narrativa do gênero, outras usam as provas como forma de tecer críticas sociais, especialmente contra o capitalismo. Em meio a sangue, mortes e sucessos de bilheterias cada vez mais estrondosos, os “Death Games” nunca estiveram tão populares. Gama busca entender o por que eles fazem tanto sucesso.

 Round 6 Divulgação/Netflix. Battle Royale Reprodução

O sucesso dos jogos

Em 1999, o autor japonês Koushun Takami lançou o livro “Battle Royale” (1999, editora Alt). O romance segue a história de 50 alunos do ensino médio que são obrigados a matar um ao outro pela sua sobrevivência. Ao longo do livro, descobre-se que a matança faz parte de um programa de um governo totalitário e fascista que busca instaurar medo na população a fim de evitar uma revolução. Apesar da violência, o livro se tornou um best-seller no Japão, foi adaptado para um mangá e posteriormente para um filme.

É possível afirmar que livros como “The Most Dangerous Game” (1924), de Richard Connel, “Senhor das Moscas”, (1954) de William Golding, e “The Long Walk” (1974), de Stephen King, têm narrativas que se assemelham aos jogos da morte, mas é “Battle Royale” que costuma ser considerado como a origem do gênero. O livro inspirou inúmeras produções asiáticas e mesmo que seu autor jamais tenha escrito outro romance, se tornou um clássico da literatura juvenil japonesa. Nos Estados Unidos, a série de filmes “Jogos Mortais” e os livros “Jogos Vorazes” popularizaram o gênero. Por mais que “Battle Royale” tenha sido lançado quase dez anos antes da história de Katniss Everdeen, a escritora Suzanne Collins garante que não sabia da existência da obra japonesa enquanto escrevia o primeiro “Jogos Vorazes”.

No Brasil, a Netflix apostou na série “3%” como sua primeira produção original brasileira. Na história, a sociedade brasileira é dividida em duas partes: o Continente e o Maralto. Enquanto no Continente, há escassez, pobreza e fome, no Maralto há riqueza, fartura e prosperidade. Aos 20 anos de idade, toda pessoa do Continente tem o direito de realizar o Processo, uma série de provas físicas e mentais que selecionam 3% dos candidatos do Processo para viver no Maralto.

 Divulgação/Netflix

A produção nacional se tornou a série de língua não inglesa mais assistida no Netflix dos Estados Unidos em 2017. Em comunicado à imprensa, o vice-presidente de Originais Netflix, Erick Barnack, afirmou: “A série foi amplamente vista fora do Brasil em diversos países, o que nos mostra que há sempre um público para uma grande narrativa, seja com conteúdo produzido nos Estados Unidos, Brasil, Singapura, Austrália, Índia ou no Oriente Médio.”

No Brasil, a série ‘3%’, é a representante do gênero de mais sucesso, tornando-se a série de língua não inglesa mais assistida da Netflix em 2017

“E se houvesse um processo de seleção único que determinaria toda a sua vida?” Essa foi a pergunta que originou a premissa de “3%” na cabeça de Pedro Aguilera. O criador da série, que também se inspirou em distopias clássicas e reality shows, buscou inspiração em experiências comuns a todos os jovens — o vestibular e o mercado de trabalho. “Ao assistir à série, é possível fazer paralelos com grandes momentos de tensão na vida de qualquer um, seja uma prova, um exame ou uma entrevista.”

Aguilera acredita que esse tipo de história faz bastante sucesso pois tem uma estrutura narrativa forte e posições dramáticas claras. “Você sabe que a história vai acompanhar o processo do começo ao fim. Quem vai passar? Quem não vai passar? O que cada pessoa vai revelar durante as provas? O que a prova vai exigir de cada um? É um lugar bem fértil para contar uma história.”

Para Aguilera, parte do charme do gênero é a maneira com que ele consegue fazer com que as pessoas se projetem nessas histórias. “Quando alguém assiste, acaba se perguntando se teria uma sacada brilhante na hora da prova ou se ficaria nervoso e surtaria. Será que eu sobreviveria? Isso trás o público para dentro da narrativa.” De acordo com o autor, o universo dramático no gênero costuma a ser elevado ao extremo, gerando a curiosidade no espectador de entender como os seres humanos agem quando estão no limite.

Parte do charme do gênero é a maneira com que ele consegue fazer com que as pessoas se projetem nessas histórias

Quem concorda com essa visão é o pesquisador americano Travis L. Wagner, doutorando em Biblioteconomia e Ciência da Informação e formado em Estudos de Gênero na Universidade da Carolina do Sul. Em 2019, Wagner publicou um estudo que analisa a lógica neoliberal dentro da franquia “Battle Royale”. “As pessoas enxergam o quão arbitrárias as regras para o sucesso no capitalismo são e imaginam que, se estivessem em um jogo, seria mais fácil, ou ao menos mais divertido.” O pesquisador entende que parte da metáfora dessas obras, de que os jogos são espelhos fiéis da economia capitalista, se perdem nesse processo. “É uma forma perversa de escapismo dos nosso próprios jogos mortais do capitalismo tardio”, ele afirma. Um filme literal sobre a sobrevivência no capitalismo seria entediante e triste, argumenta Wagner.

 Battle Royale Reprodução. 3% Divulgação/Netflix

Crítica social f…

Um dos principais atrativos de “Round 6” é a maneira com que a série critica a estrutura capitalista sul-coreano e, consequentemente, mundial. Pobreza e falta de perspectivas são assuntos que assolam parte da população coreana e a produção da Netflix abordou essas temáticas de forma crítica. “As pessoas comentaram sobre como a série é relevante na vida real”, afirmou o criador de “Round 6”. “Infelizmente, o mundo está indo nessa direção. As provas da série em que os participantes tentam ganhar de forma alucinada se alinham com o desejo que as pessoas têm de ganhar na loteria com coisas como criptomoedas, mercado imobiliário e o mercado de ações. Inúmeras pessoas foram capazes de se relacionar com a história.”

O pesquisador Travis L. Wagner entende que parte da tradição do gênero é vista na maneira com que essas histórias abordam as desigualdade social presentes na sociedade. “Os jogadores estão completamente arrasados pelas dívidas e topam participar dos jogos, mesmo que as probabilidades estejam claramente contra eles. Eles podem não concordar ou ter medo do jogo, mas sabem que aquela é a última chance.” Wagner entende que os jogos servem como uma forma de aplacar a verdadeira mudança social, oferecendo por meio da competição uma falsa promessa de libertação a nível individual.

O mundo de hoje incentiva a individualidade. Esse tipo de narrativa acaba sendo um reflexo disso, onde cada participante briga por si

Para Pedro Aguilera, vivemos em uma época em que há um embate de ideias que busca justificar ou questionar a desigualdade social. Assim como na Coreia do Sul, a desigualdade é uma questão central do Brasil. “O mundo de hoje incentiva a individualidade. Esse tipo de narrativa acaba sendo um reflexo disso, onde cada participante briga por si.” A temática da individualidade contra a coletividade é bem presente no gênero e Aguilera acredita que, cada vez mais, esse tipo de questionamento atrai o público.

Em artigo publicado pela Gama, duas pesquisadoras americanas escrevem sobre como narrativas distópicas incitavam o radicalismo no mundo real. Elas se baseiam em pesquisa que indica que esse tipo de narrativa modela o julgamento ético das pessoas, aumentando sua disposição em justificar uma ação política radical. “A ficção distópica continua a oferecer uma lente poderosa com a qual as pessoas vêem a ética da política e do poder. Tais narrativas podem ter um efeito positivo no sentido de manter cidadãos em alerta para a possibilidade de injustiça em uma variedade de contextos, desde mudanças climáticas e inteligência artificial até ressurgências autoritárias em todo o mundo.”

Em um protesto organizado pela Confederação Nacional dos Sindicatos sul-coreanos, manifestantes tomaram as ruas vestindo trajes característicos da série exigindo melhores condições de trabalho. Com um mundo cada vez mais desigual, não é de se estranhar que tantas pessoas se interessem por obras de ficção que questionem o padrão de sociedade vigente.

Wagner, entretanto, é reticente quando fala sobre o poder da crítica anticapitalista de séries como “Round 6”. “O arco narrativo dessas histórias frequentemente mostra que, embora possa haver algum tipo de trabalho coletivo, o sistema é poderoso e as pessoas gananciosas demais para que haja qualquer sucesso”, ele afirma. Para o pesquisador, por mais que os diversos exemplos do gênero expliquem os motivos pelo qual os participantes não podem se recusar a jogar, o gênero falha enquanto crítica ao capitalismo ao não explorar a possibilidade de um boicote. “É postulado, invariavelmente, que alguém sempre estará investido demais em ganhos capitalistas para ajudar os outros. É revelador, entretanto, que esses indivíduos estão sempre além da salvação”, finaliza Wagner.

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