Como resorts de luxo se tornaram um retrato da elite branca nas telas — Gama Revista
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Como resorts de luxo se tornaram um retrato da elite branca nas telas

Presente no filme ‘Tempo’ e nas séries ‘The White Lotus’ e ‘Nove Desconhecidos’, o hotel dos infernos está virando cenário carimbado na TV e no cinema, palco do conflito racial e de classes

Leonardo Neiva 03 de Setembro de 2021

Um grupo de pessoas que ainda não se conhecem chega praticamente a um mesmo tempo num determinado lugar. A paisagem é ensolarada, praiana, paradisíaca. O prédio tem de tudo, desde quartos enormes e ricamente decorados até piscinas suntuosas, um merecido descanso da rotina urbana e do trabalho estafante. Ainda com pouco contato entre si, os novos hóspedes desse resort de luxo conhecem seus quartos. Algumas pequenas discussões ou rusgas podem até surgir, mas a impressão geral é de que serão férias relaxantes e muito bem aproveitadas.

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Até que os primeiros problemas aparecem. Eles podem vir na forma de um quarto trocado, um telefonema que coloca em risco toda a carreira de uma personagem, uma gravidez inesperada, uma terapia de choque ou até mesmo um inocente convite para conhecer uma praia deserta ali nas imediações. E, em pouco tempo, o que prometia ser um descanso relaxante começa a virar de cabeça para baixo, podendo se tornar uma história de horror.

Na ordem prática, os ambientes abertos de praia e piscina são mais fáceis de controlar circulação e seguros na pandemia

Se a narrativa parece familiar, é porque provavelmente é: você já deve ter visto esse filme — ou série. Só entre os meses de julho e agosto de 2021, ainda em meio à pandemia, versões dela apareceram pelo menos três vezes distintas nas telas de cinema e de televisão. Primeiro, com a série da HBO “The White Lotus”, que usa um resort de luxo no Havaí para satirizar o privilégio e o modus operandi da elite branca norte-americana. Depois, pelas mãos do diretor M. Night Shyamalan (“O Sexto Sentido”, “Fragmentado”), com o drama existencial com toques de terror “Tempo”, sobre vida e envelhecimento. E, finalmente, no mais recente “Nove Desconhecidos”, disponível no Prime Video e baseado na obra da escritora Liane Moriarty, também autora do livro que deu origem à série “Big Little Lies” (2017).

Mas por que o resort de luxo virou um dos ambientes preferidos para retratar as mazelas humanas, levantando questões como privilégio, preconceito e hipocrisia, principalmente entre as camadas mais altas da sociedade? A resposta pode até ser de ordem prática, como apontou reportagem da revista Vulture, segundo a qual o ambiente de um resort permitiu controlar melhor a circulação de membros das gravações, que aconteceram durante a pandemia. Os muitos espaços abertos, como a praia que é o cenário principal de “Tempo” ou as piscinas ao ar livre de “The White Lotus”, seriam menos propícias à circulação do vírus do que cenários mais fechados. Mas seria essa a única razão?

Vince Valitutti/Hulu

Problemas no Paraíso

Ao longo da história do cinema, a repetição de temas e narrativas é bastante comum e muitas vezes é analisada como parte do contexto histórico e social de uma época. No caso atual, porém, ainda não há distanciamento suficiente para apontar uma tendência, de acordo com o professor de ciências sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) Túlio Rossi, especializado em sociologia e audiovisual.

Ainda assim, essas críticas sociais ambientadas em resorts de luxo podem estar inseridas num contexto maior, dentre as várias séries e filmes que retratam a desconstrução dos ideais das classes mais altas dos Estados Unidos. “Séries como ‘Big Little Lies’ e ‘Little Fires Everywhere’ (2020) mostram a desconstrução do paraíso do branco rico. Os resorts acabam simbolizando esse paraíso, para onde a elite costumava fugir de tudo, em lugares projetados para relaxar e esquecer os problemas.”

Em todos esses casos, as desigualdades sociais vêm à tona num ambiente que era para ser um escape dessas questões

Seriam também ambientes tradicionalmente controlados, em que, no entanto, o caos acaba imperando, numa representação da perda de controle da elite financeira na sociedade atual. “Em todos esses casos, as desigualdades sociais vêm à tona num ambiente que era para ser um escape dessas questões”, enfatiza Túlio.

O lugar que não deveria existir

Usar como cenário um ambiente de estranhamento, que força os personagens a sair de suas zonas de conforto, não é algo muito novo para o cinema ou a TV. “Nada melhor do que jogar pessoas nessa espécie de ‘nãolugar’, um lugar que não deveria existir, onde os hóspedes gastam US$ 10 mil por noite. Um espaço que não serve para morar ou trabalhar, mas para alcançar a felicidade e o bem-estar”, diz a roteirista Maíra Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra).

Ao analisar as ações de seus personagens dentro desse ambiente, feito uma criança postada com uma lupa sobre um formigueiro, as produções acabam fazendo um recorte inicial bastante específico. “Dentro desse contexto de pandemia, quem pode trabalhar de onde quiser ou viajar são pessoas que têm dinheiro”, aponta Maíra. “Embora dialoguem com esse isolamento que estamos vivendo, são também elas que podem deixar suas casas para ir a um hotel ou uma mansão de veraneio.”

O enigma do privilégio branco

A contradição que existe em contar histórias num ambiente hiperprivilegiado e predominantemente branco, ao mesmo tempo em que se tenta retratar um microcosmo da sociedade, parece ter sido uma das pedras no sapato dos autores. Tanto que acabaram optando por alguns caminhos diversos para contorná-la. Em “Tempo”, por exemplo, alguns dos hóspedes são atraídos por um concurso. Já “Nove Desconhecidos” faz com que uma das famílias só consiga comparecer em seu resort terapêutico graças a um considerável desconto na estadia. Ao mesmo tempo, o roteiro faz questão de enfatizar que outro dos hóspedes, que é negro, enriqueceu porque ganhou na loteria.

Outra estratégia foi dar maior protagonismo aos funcionários do hotel, o que “The White Lotus” e “Nove Desconhecidos” utilizam como forma de integrar personagens que não sejam brancos ao elenco principal. O primeiro incluiu também um gerente de hotel homossexual e fez com que uma adolescente negra fosse trazida para a história como convidada de uma família branca abastada.

Assim, as histórias buscaram um ambiente mais diversificado para reproduzir as dinâmicas de privilégio e marginalização que caracterizam a sociedade. No entanto, essas estratégias também acabaram resultando em alguns potenciais problema.

A ponta do iceberg

A pesquisadora Daniela Gomes, estudiosa do cinema hollywoodiano, traça uma comparação das produções citadas com o microcosmo criado no navio transatlântico de “Titanic” (1997), onde as divisões sociais são claras e se refletem no próprio espaço que os personagens ocupam. Ao mesmo tempo, os personagens têm existências próprias, e os mais pobres não estão ali apenas para servir e agradar a elite.

Para Daniela, que está desenvolvendo uma tese de doutorado sobre o tema na USP, embora não recaiam nesse gênero, essas novas produções reproduzem a dinâmica clássica dos filmes de catástrofe, em que a jornada dos protagonistas — normalmente brancos — é em busca de reconstituir um núcleo familiar em frangalhos. O detalhe é que a família é sempre branca. “Assistimos a partir da família de classe média. Não vemos a catástrofe pelo ponto de vista de famílias miseráveis, as que mais vão sofrer com aquilo”, diz a pesquisadora.

Amazon Prime Video

Núcleo do Leblon

Das três produções apontadas, apenas “Tempo” é capitaneada por um diretor/roteirista que não é branco — Shyamalan tem origem indiana. Coincidentemente ou não, é quem acaba integrando mais diversidade à narrativa principal. Gael García Bernal, que interpreta um dos protagonistas, é mexicano. Além disso, o elenco principal também conta com dois personagens negros e um de origem asiática.

A roteirista Maíra Oliveira evoca o cineasta Jordan Peele e seu filme “Nós” (2019) para fazer um contraponto a essas narrativas. Na história, uma família negra de classe média alta viaja à praia, onde é atacada por um grupo de pessoas muito semelhantes a eles mesmos. Entre outras questões, a narrativa mostra a impossibilidade de fugir do passado, dentro de uma lógica de terror, que remete à difícil experiência da população negra norte-americana, diz Maíra.

A reprodução do privilégio dentro da narrativa está também na novela clássica, onde a diversidade racial está apenas nos empregados

Em “The White Lotus”, por outro lado, essa tentativa de mostrar a falência da elite branca acabaria por recair numa contradição importante. “O arco narrativo desperta nossa simpatia por aqueles personagens. Mostra que o passado fez com que fossem daquela maneira e que lidam com a situação da forma que podem. Dá a impressão de que não têm culpa por serem como são e que suas contradições são engendradas pelo próprio sistema”, afirma a roteirista. Assim, apesar de nascer como uma crítica do privilégio, a série terminaria por reproduzi-lo em sua estrutura narrativa.

Esse padrão, segundo ela, não é incomum na indústria audiovisual norte-americana e mundial, e se reflete até mesmo no núcleo rico do Leblon típico das novelas brasileiras, onde a diversidade racial e social só vai aparecer em meio a empregados e funcionários.

Protagonistas e coadjuvantes

E isso acontece, segundo ela, devido às engrenagens da própria indústria, que ainda hoje dá preferência ao ponto de vista de criadores brancos e coloca boa parte da verba disponível em suas mãos. “Há um certo cinismo em como nem se tenta sair de um certo contexto para fazer uma crítica social”, diz Maíra. “Numa realidade com milhões de mortos no mundo, opta-se por contar histórias que agregam muito pouco na discussão sobre privilégio. No máximo, mostram que ele está por aí, mas não há muito o que fazer sobre isso.”

O pesquisador da UFF Túlio Rossi tem outra visão. Para ele, nas séries “The White Lotus” e “Nove Desconhecidos”, os personagens não brancos foram inseridos de forma calculada, de forma a realçar a desigualdade e os conflitos sociais que a narrativa busca criticar. E, mesmo quando há personagens negros ricos, mostra-se como ainda existe um limite para essa ascensão social. “Me parece uma representação coerente com a sátira que estão fazendo, adequada para a proposta das séries.”

Daniela Gomes lembra, porém, que o olhar do autor ou diretor parte sempre dos pontos de vista de identificação com o semelhante e com o outro. Dirigidas e roteirizadas por profissionais brancos, “The White Lotus” e “Nove Desconhecidos” acabariam colocando boa parte de seus personagens negros como subalternos e acessórios das necessidades dos personagens principais, em muitos casos dispostos a agradá-los continuamente. “A história não dá complexidade a esses personagens, não entrega nenhuma camada que não esteja ligada diretamente a esses outros, que são protagonistas.”

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