Como narrativas distópicas incitam o radicalismo no mundo real — Gama Revista

Sociedade

Como narrativas distópicas incitam o radicalismo no mundo real

Guilherme Falcão

A ficção distópica oferece uma lente poderosa com a qual se vê a ética da política e do poder

Calvert Jones e Celia Paris* 11 de Setembro de 2020

Humanos são criaturas contadoras de histórias com implicações profundas na maneira como enxergamos nosso papel no mundo. A popularidade da ficção distópica continua em ascensão. De acordo com o Goodreads.com, uma comunidade online de 90 milhões de leitores, o compartilhamento de livros categorizados como “distópicos” em 2012 foi o mais alto em mais de 50 anos. A origem do aumento parece estar nos ataques terroristas que aconteceram nos Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2001. O compartilhamento de narrativas distópicas disparou em 2010 quando editoras se uniram para capitalizar o sucesso da trilogia de “Jogos Vorazes” (2008-10). Escrita por Suzanne Collins, a série trata de uma sociedade totalitária “nas ruínas de um lugar outrora conhecido como América do Norte”. Como processamos a informação de que a ficção distópica é tão popular?

Uma grande quantidade de tinta foi derramada para explorar porque essas narrativas são tão atraentes. Mas outra questão importante é: e daí? É provável que a ficção distópica afete as atitudes políticas de alguém no mundo real? Se sim, então como? E o quanto deveríamos nos preocupar sobre seu impacto? Essas foram as perguntas delimitadas em nossa pesquisa, e nos propomos a respondê-las por meio de uma série de experimentos.

Antes de começar, nós sabíamos que muitos cientistas políticos poderiam ficar céticos. Afinal, parece improvável que ficção – algo conhecido por ser “inventado” – teria a capacidade de influenciar as perspectivas do mundo real. No entanto, uma crescente quantidade de pesquisas demonstra que não há uma “forte alternância” no cérebro entre a ficção e a não ficção. As pessoas frequentemente incorporam lições de histórias ficcionais em suas crenças, atitudes e julgamentos de valor, sem nem mesmo estarem cientes de que estão fazendo isso, algumas vezes.

Ficção distópica, além disso, é especialmente poderosa por ter a política inerente. Aqui, focamos no gênero totalitário-distópico, que retrata um mundo alternativo sombrio e perturbador, no qual poderosas entidades oprimem e controlam os cidadãos, violando valores fundamentais no meio do caminho. (Embora narrativas pós-apocalípticas, incluindo aquelas sobre zumbis, possam também ser consideradas “distópicas”, o cenário padrão é politicamente muito diferente, enfatizando o caos e o colapso da ordem social, o que pode afetar as pessoas de maneiras diferentes.)

Certamente, os enredos totalitários-distópicos variam. Para dar alguns exemplos populares, tortura e vigilância aparecem em “1984” (Companhia das Letras, 2009), de George Owell; transplante de órgãos na série “Unwind” (Simon & Schuster, 2007), de Neal Shusterman; cirurgia plástica obrigatória, na série “Feios” (Galera Record, 2016), de Scott Westerfeld; controle mental no filme “O Doador de Memórias” (1993), de Lois Lowry; desigualdade de gênero no livro “O Conto da Aia” (Rocco, 2017), de Margaret Atwood; casamento arranjado pelo governo na trilogia “Matched” (Penguin, 2011), de Ally Condie; e desastre ambiental na série “Maze Runner: Correr ou Morrer” (Vergara & Riba, 2010), de James Dashner. Mas todas essas narrativas obedecem as convenções de personagem, cenário e enredo. Como observado por Carrie Hintz e Elaine Ostry, editoras do “Utopian and Dystopian Writing for Young Children and Adults” (Routledge, 2009. “Escrita Utópica e Distópica para Crianças e Adultos”, em tradução livre), nessas sociedades “os ideais de progresso têm se mostrado tragicamente perturbadores”. Embora existam exceções ocasionais, a ficção distópica valoriza, tipicamente, a rebelião dramática e, muitas vezes, violenta por parte de uns poucos corajosos.

Para testar o impacto da ficção distópica em atitudes políticas, nós aleatoriamente atribuímos sujeitos de uma mostra de adultos americanos a um de três grupos. O primeiro grupo leu um trecho de “Jogos Vorazes” e depois assistiu a cenas do filme de 2012. O segundo grupo fez o mesmo, mas com uma narrativa distópica diferente – “Divergente” (Rocco, 2012), de Veronica Roth. A série apresenta uma versão dos Estados Unidos futurista, com uma sociedade que se dividiu em facções dedicadas a valores distintos, e quando qualquer capacidade cruza as linhas da facção, é vista como uma ameaça. No terceiro grupo, os sujeitos não foram expostos a nenhuma ficção distópica antes de responderem a perguntas sobre as suas atitudes sociais e políticas.

O que descobrimos foi impressionante. Mesmo sendo fictícias, as narrativas distópicas afetaram os sujeitos de forma profunda, recalibrando suas bússolas morais. Em comparação ao grupo não controlado por uma mídia, os sujeitos expostos à ficção eram 8% mais propensos a justificar atos radicais como protestos violentos e rebelião armada. Eles também concordaram mais prontamente que a violência é às vezes necessária para alcançar a justiça (um aumento semelhante de cerca de 8%).

Por que a ficção distópica pode ter esses efeitos assustadores? Talvez um simples mecanismo de preparação estivesse em curso. As cenas de ação violenta poderiam facilmente ter engatilhado uma excitação de forma que tornasse nossos sujeitos mais dispostos a justificar a violência política. Videogames violentos, por exemplo, podem aumentar cognições agressivas, e ficção distópica, muitas vezes, contém imagens violentas de rebeldes lutando contra o poder.

Para testar essa hipótese, nós conduzimos um segundo experimento, novamente com os três grupos, e dessa vez com uma amostra de estudantes universitários dos Estados Unidos. O primeiro grupo foi exposto a um trecho de “Jogos Vorazes” e, como antes, incluímos um segundo grupo, não controlado por uma mídia. O terceiro grupo foi exposto a cenas violentas da franquia de filmes “Velozes e Furiosos” (2001-2021), semelhante em duração e tipo de violência aos trechos de “Jogos Vorazes”.

Mais uma vez, a ficção distópica modelou o julgamento ético das pessoas. Aumentou sua disposição para justificar uma ação política radical em comparação ao grupo não controlado por uma mídia, e os aumentos foram semelhantes em magnitude ao que encontramos na primeira experiência. Mas as cenas de ação igualmente violentas e de alta adrenalina de “Velozes e Furiosos” não tiveram tal efeito. Então, imagens violentas por si só não poderiam explicar nossas descobertas.

Nossa terceira experiência explorou se o ingrediente chave era a própria narrativa – ou seja, se a história sobre cidadãos corajosos lutando com um governo injusto, seja ele fictício ou não fictício, era responsável por causar mudanças nas atitudes das pessoas. Por isso, dessa vez, nosso terceiro grupo leu e assistiu segmentos da mídia sobre um protesto real contra práticas corruptas do governo Tailandês. Clipes da CNN, da BBC e de outras fontes noticiosas mostraram agentes de segurança pública fazendo uso de equipamentos e táticas violentas contra motins, como gás lacrimogêneo e canhões de água, para suprimir massas de cidadãos que protestavam contra a injustiça.

Apesar de serem reais, essas imagens tiveram pouco efeito sobre os sujeitos. Os que estavam no terceiro grupo não estavam mais dispostos a justificar a violência política do que os que aqueles não controlados por uma mídia. Mas o grupo exposto à narrativa ficcional distópica de “Jogos Vorazes” estava significativamente mais disposto a ver os atos políticos radicais e violentos como legítimos, em comparação àqueles expostos à notícias do mundo real. (A diferença foi de 7% a 8%, comparado aos dois primeiros experimentos.) De modo geral, então, parece que as pessoas estão mais inclinadas a tirar “lições de vida política” de uma narrativa sobre um mundo político imaginário do que de uma reportagem baseada em fatos do mundo real.

Isso significa que a ficção distópica é uma ameaça à democracia e à estabilidade política? Não necessariamente, embora o fato de que sejam às vezes censuradas sugira que alguns líderes pensem assim. Por exemplo, “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras, 2005), de George Owell, ainda está banida na Coreia do Norte, e mesmo nos EUA, onde os dez livros mais frequentemente removidos das bibliotecas escolares na última década incluem “Jogos Vorazes” e “Admirável Mundo Novo” (Biblioteca Azul, 2014), de Aldous Huxley. Narrativas distópicas oferecem a lição de que ações políticas radicais podem ser uma resposta legítima à injustiça percebida. Entretanto, as lições que as pessoas tiram da mídia, seja ela ficção ou não, podem nem sempre permanecer e, mesmo quando permanecem, as pessoas não necessariamente agem sobre elas.

A ficção distópica continua a oferecer uma lente poderosa com a qual as pessoas vêem a ética da política e do poder. Tais narrativas podem ter um efeito positivo no sentido de manter cidadãos em alerta para a possibilidade de injustiça em uma variedade de contextos, desde mudanças climáticas e inteligência artificial até ressurgências autoritárias em todo o mundo. Mas a proliferação de narrativas distópicas pode também encorajar perspectivas radicais e maniqueístas que simplificam demais as fontes reais e complexas de discordância política. Portanto, embora a loucura das distopias totalitárias possa alimentar o papel de “cão de guarda” da sociedade na manutenção do poder para prestar contas, ela também pode acelerar a retórica – e até mesmo a ação – da política violenta, em oposição ao debate civil, baseado em fatos, e ao compromisso necessário para que a democracia prospere.

*Publicado originalmente em Aeon, em inglês, com o título “Como narrativas distópicas podem incitar o radicalismo no mundo real”. Traduzido por Manuela Stelzer

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