COLUNA

Observatório da Branquitude

Mete marcha, negona, rumo ao infinito

Dia 25 de novembro. Brasília. Nos vemos lá, na Marcha das Mulheres Negras, com nossas roupas bonitas, nossa dignidade intacta e nosso grito solto

21 de Novembro de 2025

Novembro está de volta para nos lembrar que a Consciência Negra não é um ritual, mas um processo. E neste ano, ele chega com um símbolo poderoso: a posse da Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras. A autora que devolveu o Brasil para si mesmo por meio de seu livro “Um Defeito de Cor” é agora reconhecida no mais alto espaço das letras, e isso não é apenas uma honra individual. É uma correção histórica.

E é justamente “Um Defeito de Cor” que guia este texto, porque há obras na contramão das narrativas oficiais e restituem a nossa humanidade enquanto povo negro.

“Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito”

Pego emprestada a afirmação definitiva de Ana Maria Gonçalves — de que preta é qualidade — para escrever sobre o Mês da Consciência Negra e sobre a Marcha das Mulheres Negras que, no próximo dia 25, voltará a ocupar Brasília.

A ausência de vontade política é o maior obstáculo para a igualdade racial e de gênero

Em 2015, levamos mais de 50 mil mulheres negras à capital federal para dizer ao país aquilo que ele segue se recusando a ouvir: que a ausência de vontade política é o maior obstáculo para a igualdade racial e de gênero.

Dez anos depois, isso permanece verdadeiro. Os números confirmam. As violências confirmam. As estruturas confirmam — frias, objetivas, irrefutáveis.

Mas se os dados mostram o tamanho do problema, a literatura de Ana Maria Gonçalves revela, com beleza e contundência, o que está em disputa quando marchamos “Por Reparação e Bem Viver”.

“Para os brancos fiquei sendo Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde… Era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto.”

Kehinde nos ensina que o que nos foi arrancado não foi apenas a liberdade: foi o direito de sermos nomeadas por nós mesmas. Foi a dignidade de existir fora do olhar que nos reduz. Foi o futuro que poderíamos ter escolhido. Foi a autonomia sobre nossos próprios destinos, corpos e histórias.

Reparação, portanto, não é apenas reconhecer o que foi tirado, é restituir o direito de sermos quem decidimos ser, não quem o sistema racial e patriarcal insiste que sejamos. É devolver-nos a inteireza que nunca deveria ter sido fragmentada.

Bem Viver é a recusa da violência com a qual tentam nos encaixar em papéis, nos silenciar, nos apagar. É existir em plenitude: com nossos nomes verdadeiros, nossas histórias completas, nossos futuros — aqueles que escolhemos.

Por isso marchamos. Por tudo isso.

Marchamos também porque a violência nunca foi exceção, foi projeto. E Ana Maria Gonçalves nos mostra isso quando narra o cotidiano das pessoas escravizadas castigadas com máscaras de ferro:

“Havia até pretos que usavam aquilo pela vida inteira… muitos tinham a cicatriz enorme na testa.”

A máscara de ferro não servia apenas para calar: marcava, deformava, tornava visível e permanente a condição de propriedade. Era pedagogia do terror inscrita no corpo.

Não é por acaso que, hoje, mulheres negras lideram as estatísticas de violência política. O país sofisticou os instrumentos de silenciamento, mas a lógica permanece intacta: quem ousa falar, quem ousa ocupar, quem ousa disputar poder precisa ser calada, exposta, marcada como exemplo.

Este é o horizonte que estamos construindo: um Brasil onde existir em plenitude não é ato de resistência, mas exercício de direito

A estrutura não mudou. Apenas trocou o ferro pelo algoritmo, a praça pública pela timeline, a marca na testa pela campanha de difamação. Mas o objetivo segue o mesmo: fazer com que carreguemos, pela vida inteira, a cicatriz de ter ousado existir em plenitude.

E é por isso que novembro não é celebração. É convocação.

Marchar, para nós, é continuar a travessia que começou muito antes de 2015. É honrar as mulheres negras que sempre foram motor de democracia. É seguir o chamado que Kehinde ouviu ao olhar para outras mulheres negras com roupas bonitas e dignidade intacta, mesmo em meio à dor:

“Prometi a mim mesma que um dia usaria aquelas roupas e seria muito mais feliz do que jamais tinha sido, pois foi esta a imagem que elas me passaram: a de felicidade, apesar de tudo.”

Felicidade, apesar de tudo.

Esse é o horizonte que estamos construindo. Um Brasil onde a felicidade das mulheres negras não seja milagre arrancado ao sistema, mas premissa inegociável dele. Onde ela seja ponto de partida, não troféu de guerra. Onde existir em plenitude não seja ato de resistência, mas exercício de direito.

Por isso, neste novembro, te convido sem rodeios:

Levanta e marcha!

Ou, como canta Larissa Luz no jingle que gruda na alma:

Mete marcha, negona, rumo ao infinito
Bote a base, solte o grito, solte o grito

Dia 25 de novembro. Brasília.
Nos vemos lá. Com nossas roupas bonitas, nossa dignidade intacta e nosso grito solto.

Manuela Thamani é bacharel em administração de empresas (USP) e mestra em comunicação (USP). Trabalhou em multinacionais, veículos de mídia e fundações. É codiretora executiva do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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