Fernando Luna
Noite de Natal
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o Natal da tradicional família brasileira, o balanço existencial de dezembro, o negacionismo climático e os quatro pretos mais perigosos do Brasil
Noite de Natal. Estou bonita que é um desperdício
Ana Cristina Cesar, 1979
Antologia Profética
Existe salvação pro Natal da tradicional família brasileira. Basta a Bauducco fazer uma collab com a Cimed e lançar um panetone com Rivotril. Todo mundo tranquilo na ceia.
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Se você não gosta da alegria pré-datada das celebrações de fim de ano, um conforto: o regozijo com hora marcada ainda é melhor que a surpresa de ser acordado num sábado pela Polícia Federal e passar as festas preso na Vila Militar em Deodoro, na zona oeste do Rio.
Se bem que a cela do Braga Netto, o Mau Velhinho, não chega a ser um xilindró: suíte com ar-condicionado, TV e frigobar. Ou seja, ele tá num lugar melhor que a pousada que você reservou pro réveillon – e ainda parcelou no cartão até o meio do ano que vem.
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Diz que Jair Bolsonaro mandou um cartão de Natal pro Braga Netto, mas os Correios devolveram com o carimbo de “Mudou-se”.
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Aliás, a manifestação mais bela do espírito natalino é a indignação da turma do “bandido bom é bandido morto”, subitamente inconformada com o indulto natalino negado ao general golpista. Insuspeitados defensores dos direitos humanos.
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Aprenda com a poeta Ana Cristina Cesar. Não canse sua beleza brigando com a família no Natal. Evite temas espinhosos.
É difícil, eu sei, ainda mais depois de uns cinco natais na defensiva. Agora era hora de devolver toda aquela enxurrada de delírios conservadores. O país crescendo o dobro do previsto, desemprego baixíssimo e golpistas sendo presos um a um – e você sem poder falar nada? Sim. Melhor ser feliz
que ter razão.
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Política é assunto proibido. As artes, tadinhas, foram abduzidas pelas guerras culturais. Nem falar do tempo é possível: com o negacionismo climático, virou tabu. Um simples “Esquentou, hein?” atira a conversa na COP30.
Shhhhh. Fica umas cinco horas em silêncio, entre rabanadas, fios de ovos e tender. Não reclama das passas. Passas são de direita, tão Ancien Régime, mas não crie caso por isso.
Se não posso fazer o que quero fazer/ então o meu trabalho é não fazer o que não quero fazer
Nikki Giovanni, 1978
Com dezembro avançado e a temporada de balanços existenciais aberta, é hora de olhar pra trás e pra frente.
Como aquele deus romano de duas cabeças viradas pra lados opostos, uma espiando o que passou e a outra tentando avistar o que vem por aí, fazemos uma retrospectiva pessoal do ano enquanto esboçamos o que queremos de 2025.
Mesmo sem vocação pra Olimpo ou Torre de Marfim, a poeta norte- americana Nikki Giovanni pode ajudar nesse processo.
Intelectual pública, gostava de dar entrevistas, palestras e falar seus versos pra quem quisesse escutar. Lotava teatros com suas performances e tinha a cadência dos melhores rappers – “rap” é “rhythm and poetry”, afinal.
Como poetas e profetas, ela era capaz de enxergar e colocar em palavras o que os outros não conseguem ver nem elaborar – não importa se no passado ou no futuro. Por isso, quando chega este momento do ano de juízo final pessoal e intransferível, vale prestar atenção em seu legado.
Nikki morreu semana passada, aos 81 anos. O New York Times a definiu como “poeta carismática e iconoclasta, ativista, autora de livros infantis e professora, que escreveu de forma irresistível e sensual sobre raça, política, gênero, sexo e amor”.
Um de seus ex-alunos conta que, sempre que telefonava com alguma questão importante, ela repetia que “A resposta é sempre sim. Você pode mudar de ideia mais tarde, se não estiver funcionando”.
Embora gostasse mais de “sim” do que de “não”, sabia que volta e meia recebemos uma negativa do mundo. Mas, assim como na matemática “menos” com “menos” dá “mais”, na vida “não” com “não” pode fazer um “sim” – ou quase.
No poema “Escolhas”, Nikki escreveu “Se não posso fazer o que quero fazer/ então o meu trabalho é não fazer o que não quero fazer/ Não é a mesma coisa mas é o melhor que posso fazer”.
Se não dá pra fazer tudo em dezembro, isso é o melhor que você pode fazer.
A parte mais bela do teu corpo é pra onde ele vai
Ocean Vuong, 2019
A expressão mais irritante do negacionismo climático é o táxi.
E não digo isso por conta da emissão de monóxido de carbono que contribui pro aquecimento global. Isso se resolve com motores elétricos. O que me pega é o ar condicionado.
Ou melhor, a insistência em deixar o ar condicionado desligado, não importa que a temperatura lá fora esteja em 35 graus centígrados e, dentro do carro, uns 48.
No corre de dezembro (só faltam 67 semanas pro mês terminar), apelo pro táxi na esperança ganhar tempo pra fazer tudo que não fiz nos outros 11 meses, evitando os engarrafamentos de final de ano – em São Paulo, veículos com placa vermelha podem circular pelos corredores de ônibus.
Mas você paga praticamente um rim por uma corrida de quinze minutos e leva, inteiramente grátis, uma sauna sobre rodas.
As desculpas dos motoristas são as mais estapafúrdias.
Além da clássica “Puxa, o ar quebrou hoje cedo”, já escutei até “Deixei um passageiro agorinha mesmo no pronto-socorro”. Perguntei se o que o cara tinha parecia contagioso, e ele respondeu com a convicção de um plantonista do Hospital das Clínicas: “Melhor deixar as janelas abertas”.
Pior que essas fábulas urbanas, só quando o taxista topa ligar o ar – porém o faz de maneira tântrica, bem devagar devagarinho.
Em vez de esperar a temperatura baixar um pouco antes de fechar as janelas, ele primeiro lacra os vidros. A carro se transforma numa Air Fryer e você vira um nugget. Sem pressa, ajusta o ventilador na velocidade mínima e a temperatura em 23 graus. Até que seja possível voltar a respirar, você chegou
ao seu destino.
O sagaz Ocean Vuong tem razão quando diz que “A parte mais bela do seu corpo é pra onde ele vai”. Mas se der pra ir sem derreter, prefiro.
Há lugares melhores pra suar que um Renault Logan parado no cruzamento da Rebouças com a Henrique Schaumann. Não sufoque o artista – nem o passageiro.
Malandragem de verdade é viver
Mano Brown, 1997
Racionais MC’s permanecem vivos, prosseguem na mística: 35 anos contrariando a estatística.
Se seguem atuais e urgentes, a culpa é do Brasil – que não muda.
Na madrugada de sábado, fui ver “os quatro pretos mais perigosos do país”. Na plateia, umas 7 mil pessoas. Muita camiseta do próprio grupo, uma ou outra bombeta N.W.A., mano com corrente de dar inveja ao Flavor Flav, mina com lenço na cabeça tipo Tupac Shakur – um desfile da história do hip-hop.
Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue são protagonistas do movimento cultural brasileiro mais importante desde a Tropicália: o rap paulistano, que dos anos 1980 pra cá fez uma ligação direta entre as periferias – dessa vez, o mainstream teve que se mexer pra não ficar atrás.
O show começou pelo começo: “Pânico na Zona Sul”, primeira gravação do quarteto. “Certo não tá, né, mano? E os inocentes, quem os trará de volta?”, pergunta Brown, em cima de um sample de quem sampleou seu próprio sobrenome artístico, James Brown. “Continua-se o pânico na Zona Sul”.
Diz se não podia ser escrita agora: no dia seguinte, familiares e amigos das vítimas do massacre do baile funk da favela de Paraisópolis protestavam. São 5 anos de impunidade, desde que 9 garotos e garotas morreram depois de uma ação violenta da polícia.
Barreiras policiais impediram a multidão de chegar ao Palácio dos Bandeirantes. Lá, Tarcísio de Freitas e seu secretário de segurança, Capitão Derrite, celebram a eficiência do holocausto urbano: o número de mortos pela PM do estado aumentou 78% em 2024.
Tocaram “Fórmula Mágica da Paz”, uma retrospectiva da vida e morte nas periferias: “Muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai chorar?/ Há, demorô, mas hoje posso compreender/ Que malandragem de verdade é viver”.
A partir de sexta, essa trajetória vai ser contada na mostra “Racionais: o Quinto Elemento”, no Museu das Favelas.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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