Círculo de Poemas
Elaboradas cascatas
O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um poema da gaúcha Angélica Freitas, da sua plaquete “Mostra Monstra”
Pra começar, você sabe o que é uma plaquete? Os poetas sempre deram um jeito de fazer seus poemas chegarem aos leitores, quase como uma parte inseparável da tarefa de escrever, e a forma mais acessível — e charmosa — que encontraram foi pegar algumas folhas e imprimir suas próprias palavras. Dobrar, colar, ilustrar, pintar. Criar o suporte para os poemas. Imprimir? É, bem antes das impressoras, a coisa ia do jeito que dava: escrever a mão, “bater a máquina”, carimbar, “letraset” (joguem no Google, jovens!) e depois reproduzir na marra, copiando muitas vezes o mesmo poema ou reproduzindo com o auxílio luxuoso do mimeógrafo ou da “xerox”.
No Círculo de Poemas, como homenagem a essa história linda de auto-edição dos poetas, publicamos mensalmente uma plaquete, feita com todo o capricho e qualidade dos livros. A plaquete é simples: uma capa solta com orelhas imensas, ilustrada por dentro, presa apenas por um elástico a um maço de folhas em que a poesia parece encontrar sua casa ideal. Em janeiro, tivemos a alegria de lançar uma plaquete da poeta Angélica Freitas, Mostra monstra, com textos e desenhos retirados dos seus cadernos. Começa assim:

Desde que os seus primeiros poemas começaram a circular, Angélica Freitas tornou-se uma voz central das novas gerações, destacando-se pela forma perspicaz e irreverente como mixa referências eruditas e populares — como no título de seu livro de estreia, “Rilke Shake”, de 2007 — para falar de assuntos que costumam deixar os poetas sisudos.
Nascida em Pelotas (RS) em 1973, Angélica é autora de um dos clássicos recentes: “Um Útero É do Tamanho de um Punho” (Cosac Naify, 2012). Seu livro mais recente é “Canções de Atormentar” (Companhia das Letras, 2020) e sua poesia também está nas faixas do álbum “Avenida Angélica” (2022), do cantor e compositor Vitor Ramil.
Em “Mostra Monstra”, a poeta dividiu com os leitores um pouco do universo criativo que ela escava e experimenta e expande diariamente, preenchendo dezenas de cadernos. Ela tem um método: desenhar na página à esquerda, muitas vezes sem óculos, e escrever à direita, formando um conjunto imagem-texto que é inseparável, em que o traço divertido multiplica os sentidos das palavras e vice-versa. Folheando a plaquete, o leitor vive a experiência de invadir um desses cadernos — e a mente — de Angélica.
Angélica Freitas quer ‘sonhar salivando’ e sabe a força de gargalhar nessas ‘páginas e páginas/ de elaboradas cascatas’
O poema acima, que abre o conjunto, é uma espécie de “exposição de motivos” do que encontramos em toda a plaquete e, talvez, em toda a obra de Angélica, porque revela um desejo de viver nessas esferas em que a criatividade e a imaginação são absolutamente livres e, justamente por isso, derrubam muros que parecem intransponíveis. Os antigos diriam “ridendo castigat mores”, algo assim como rir para se livrar do moralismo, e não há nada mais contemporâneo e necessário do que rir “na cara dos caretas”, quando essa cara vai se tornando cada vez mais monstruosa por todos os lados.
Enquanto o poema diz “olhe nos meus olhos/ e diga a mentira”, os olhões do monstro nos encaram na página ao lado. (E, diga-se de passagem, os monstros de Angélica — pessoas de piche, “o cocô de rita hayworth”, “o fantasma das tuas calcinhas velhas” — são bem mais simpáticos que assustadores!) Quando lemos “não quero saber/ da realidade, só/ da fantasia”, é uma delícia ouvir o eco daqueles famosos versos do poeta curitibano Paulo Leminski: “podem ficar com a realidade/ esse baixo-astral/ em que tudo entra pelo cano/ eu quero viver de verdade/ eu fico com o cinema americano”.
Os poetas adoram visitar esse mundo do delírio, do sonho, da “viagem”, mas nem sempre voltam rindo de lá. Muitos, aliás, acham que a poesia tem que estar sempre séria e bem-vestida. Angélica Freitas, por sua vez, quer “sonhar salivando” e sabe a força de gargalhar nessas “páginas e páginas/ de elaboradas cascatas”. A aparência meio “inacabada” dos desenhos e textos é parte do cálculo. Talvez apenas no mundo da mentira é que alguma verdade se deixe ver. Coisa que só poeta consegue fazer: ela tira os óculos e nos faz ver melhor. Solta seus monstros e, rindo, nos deixa um pouquinho mais livres.

- Mostra Monstra
- Angélica Freitas
- Círculo de Poemas
- 40 páginas
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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.