COLUNA

Marilene Felinto

Noventa anos, Raduan Nassar?

Que tua vida, Raduan, possa servir de exemplo do que se pode fazer contra a barbárie brasileira

14 de Novembro de 2025

Justo neste teu 90º aniversário, Raduan, volto eu a esta Gama Revista, passado quase um ano de sabático meu. Não tive outro tema mais oportuno para escrever: a comemoração dos teus 90 anos no evento do dia 6 último, para o qual me convidaram e onde li esta carta que agora te envio. Foi uma homenagem a você na tua fazenda de Buri, a Lagoa do Sino, que hoje é o campus de mesmo nome da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), graças à doação que você, num altruísmo sem igual, fez àquela instituição em 2010/2011, e que então se efetivou entre os governos Lula e Dilma.

Noventa anos! Isto não é literatura, certo? É lavoura da vida toda para tratar aqui. Desconfio que você não esperava viver tanto — e também desconfio que teria optado por um grande “NÃO” se tivesse podido escolher entre seguir ou parar nesta vida, antes de chegar a essa tua idade agora avançada no tempo.

Sei que você pediria para eu não escrever jamais sobre isso. Sem problema. Lá no evento da Lagoa, fui logo de cara avisando que somos e não somos amigos — porque, como você é muito mau humorado e eu, também, então, temos muitos embates. E pode começar a gargalhar desde já!

Não falarei aqui dos teus livros. Em primeiro lugar, porque, quando te conheci, no início dos anos 1990, você já tinha desistido de escrever. Conheço um pouco do homem e menos do escritor que você é. E nunca nos tratamos um ao outro como escritores. Literatura nunca foi o mote da nossa amizade, esquisita amizade essa em que você, nascido em 1935, mesmo ano em que nasceu minha mãe, poderia ser meu pai, que nasceu em 1931.

Noventa anos! Isto não é literatura, certo? É lavoura da vida toda para tratar aqui

A despeito das idiossincrasias de tua geração, que você como homem carrega todas, como meu pai também carregou — uma leve desconfiança, uma certa neurastenia de macho, uma dose de mau humor no trato com o sexo oposto —, e a despeito das idiossincrasias da minha própria geração, um feminismo atávico e intolerante, esta nossa improvável amizade, a despeito disso, rendeu alguns frutos interessantes.

Interessante, por exemplo, foi a viagem para Recife, quando te convenci a ir comigo conhecer o escritor Ariano Suassuna — eu como jovem jornalista e vocês como dois senhores do interior do “Brasil profundo”, como dizia Ariano. Dois escritores que se admiravam um ao outro, que nunca tinham se visto, mas cujas afinidades eram evidentes, especialmente o amor que nutriam por suas fazendas e suas cabras, você com a Lagoa do Sino, Ariano com a fazenda Carnaúba, em Taperoá, no sertão da Paraíba.

O que teve de admirável naquele encontro foi isso, foi observar dois homens originários do mundo rural, dois artistas da palavra, dois obsessivos, meticulosos e perfeccionistas, cada um a seu modo, duas almas inquietas, inconformadas que, ademais do trabalho com a terra e os bichos, tinham no oficío de escritor e no otimismo e na esperança inerentes a essa atividade, aquilo que os salvou da desilusão, da total decepção com a humanidade.

Conheço mais o homem do que o escritor, daí eu ter escolhido não falar aqui de teus livros. E o que justifica essa minha escolha é o que você mesmo disse a Ariano naquele encontro histórico em Recife, em dezembro de 1999, que depois transformei em reportagem para o jornal Folha de S. Paulo, para o qual eu escrevia na época e cujo título foi “Quando a terra roxa encontra a caatinga”.

Naquele dia, você disse a Ariano: “houve um período da minha vida em que eu não conseguia pensar em outra coisa [que não literatura], houve inclusive uma série de recusas em relação a muitas oportunidades, tudo para poder me dedicar à literatura; ao mesmo tempo, eu sempre tive muita dificuldade de privilegiar o escritor como os escritores se privilegiam. Tenho muita dificuldade de hierarquizar profissões. Eu acho que (…) o agricultor é tão ou mais importante”.

Então, aqui, não privilegiei o escritor, porque também não privilegio escritores vida afora. Eu me baseio na conversa de vocês dois ali, que versou muito mais sobre a terra, a lavoura do campo, as vacas e as cabras do que sobre literatura. Ariano descreveu extensa e apaixonadamente a criação de cabras que mantinha em sua fazenda em Taperoá. E você confessou teu apego à cabras e à memória delas na tua infância.

Então, você disse a Ariano Suassuna: “Eu gostaria de criar gado também, mas como nós estamos fazendo muita lavoura lá [na Lagoa do Sino], eu precisava ter um espaço compatível com a criação, não é? Como a gente tem muita vegetação, árvores e lavoura, torna-se muito difícil… A menos que se fosse fazer uma criação de cabras confinadas. Mas aí já fica com um ar meio industrial. Eu gostaria mesmo era de recuperar a minha infância, a minha relação afetiva com as cabras e, eu espero que isso não seja mal interpretado…” . Eis que naquele momento você caiu na gargalhada, e completou a tua fala: “É que a cabra para mim é uma imagem que toca fundo mesmo, é uma coisa impressionante”.

Naquela conversa, você também disse a Ariano, ao entregar a ele um exemplar autografado de “Lavoura Arcaica”: “Ariano, você fez um pronunciamento, nos anos 80, que foi o que mais me impressionou, quando você disse que não queria mais receber livros, que não queria saber de literatura, e eu carrego essa sua fala comigo pela vida”.

Então você entregou um exemplar de “Lavoura Arcaica” a Ariano e completou tua fala dizendo: “Isso aqui não é um livro. Não interprete como livro, por favor”.

“Faz de conta que é uma cabra”, disse eu, a jornalista que então gravava a conversa. Ariano e você caíram na gargalhada.

E somente algum tempo depois daquele encontro inédito, Ariano, que também era colunista da Folha na época, escreveu uma coluna intitulada “Raduan, as cabras e eu”, em que falava de nossa visita a ele e em que citava teu “Lavoura Arcaica” para explicar a paixão de vocês pelas cabras.

Assim dizia Ariano naquela coluna de jornal: “Falando sobre uma cabra chamada “Sudanesa”, diz o narrador de ‘Lavoura arcaica’: ‘A primeira vez em que vi Sudanesa (…) a trouxe para fora, ali entre os arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã; eu a conduzi com cuidados de amante extremado (…) mas não era uma cabra lasciva (…); era uma cabra faceira, era uma cabra de brincos (…); se esculturava o corpo inteiro quando uma haste verde — atravessada na boca paciente — era mastigada não com os dentes, mas com o tempo; e era então uma cabra de pedra (…), era nessa postura mística uma cabra predestinada (…), Schuda, paciente, mais generosa quando uma haste mais túmida, misteriosa e lúbrica buscava no intercurso o concurso do seu corpo’.”

E Suassuna continuava, agora descrevendo o amor do narrador de seu romance “A Pedra do Reino” pelas cabras: “(…) Sendo feias, e ósseas, e nervudas, as cabras são um símbolo da secura, da feiúra, dos sentimentos de contestação e revolta do povo sertanejo. Eu, (…) acho as cabras ásperas e, por isso, belas: uma das cenas mais bonitas, cavaleiras e fortes que já vi em minha vida foi a de um pai-de-chiqueiro enorme e preto cobrindo uma vermelha e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto de caatinga sertaneja, (…).”

Noventa anos, Raduan. Quem diria!? E justo você, menino rebelde que, aos sete ou oito anos de idade, foi flagrado por tuas irmãs mais velhas passando por baixo do trem “quase em movimento” em Pindorama, tua cidade natal. “É louco?”, tuas irmãs perguntaram, elas que viram a cena e te esperaram do outro lado da travessia. Esse episódio você contou a dona Doraliza de Filippi, tua conterrânea de Pindorama, naquele encontro que ela me pediu para organizar contigo no teu apartamento da Vila Madalena, em São Paulo.

Dona Doraliza, essa figura da tua infância, que no mês passado completou 94 anos, foi outro desses encontros inusitados que surgiram dessas coincidências que também marcam essa nossa amizade improvável.

Que as novas gerações conheçam para além dos teus livros e da tua generosidade ímpar, não apenas o teu mau humor de artista, mas a tua gargalhada de fé na vida

Naquela foto incrível com que dona Doraliza te presenteou naquele dia, você no meio de tantas crianças fantasiadas para o Carnaval de Pindorama, tua cara de traquinas, muito menino ainda, não é diferente da tua cara em que se estampava um riso irônico na entrega do prêmio Camões em São Paulo, em 2017, quando você desancou o governo ilegítimo de Michel Temer, o golpista articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Ali foi bom gargalhar muito.

Pois é. Noventa anos! Tá louco, Raduan? Imagino tua gargalhada profunda neste próximo dia 27, do teu aniversário, das mais sonoras gargalhadas que já conheci. Que as novas gerações conheçam para além dos teus livros e da tua generosidade ímpar, não apenas o teu mau humor de artista, mas principalmente a tua gargalhada de fé na vida, afinal.

Mas, como eu disse antes, não falarei dos teus livros aqui, em segundo lugar, porque, do meu ponto de vista, você é um caso raro em que o homem tem a mesma grandeza da obra que escreveu, ou é mesmo maior do que ela — e esta será talvez a tua melhor biografia, menos a do escritor do que a do homem, a do agricultor, a do teu plantio, da tua militância de esquerda, do teu compromisso com o combate à injustiça social, da tua indignação com “a escandalosa concentração de renda” do país, em palavras tuas, da tua inestimável contribuição para romper em alguma medida com a desiguladade brasileira, tão perversa e hipócrita.

Pena que neste mês do teu nonagésimo aniversário, tudo esteja tão diferente de cinco anos atrás, quando te visitamos, teu amigo e cineasta Luiz Fernando Carvalho e eu. Tratava-se ali de um encontro entre amigos que antecipavam uma visita de comemoração dos teus 85 anos, antes que você sumisse, você que diz preferir desaparecer, apagar em datas de aniversário.

Se você estivesse presente no evento da Lagoa do Sino, certamente gargalharia de novo relembrando aquele encontro bom de cinco anos atrás, recheado de alegria, deboche, rememorações felizes, crítica ao que tinha que ser criticado. Luiz Fernando gravou nossa conversa, que também virou depois matéria de revista. Do mesmo modo como o reencontro com dona Doraliza e com tua infância em Pindorama, 70 anos depois, também virou matéria de jornal.

E eu vou terminar esta carta no tom de “jornalista” (que nem sou exatamente), mas que serve para denunciar aqui um fato. Acho mesmo que parte da nossa afinidade tem a ver com nossa atuação nessa atividade, você como redator-chefe da publicação de esquerda chamada “Jornal do Bairro”, em Pinheiros, São Paulo, entre meados das décadas de 1960 e 1970, quando eu ainda não passava de uma criança, e eu, depois, como uma jovem idiota e imbuída de uma vontade ingênua de mudar o mundo pelo jornalismo, que escrevia para a Folha de S. Paulo naquele início dos anos de 1990 e que foi te entrevistar na tua casa em São Paulo. Acho que você se identificou mesmo foi com aquela minha combatividade jovial, com a indignação e o inconformismo que você já conhecia muito bem.

Então, eu me valho aqui do teu posicionamento político, que é o mesmo meu. Eu justifico a minha denúncia na mesma tônica do que você disse certa vez ao jornal Le Monde Diplomatique:

“Seja como for, não abro mão de manter minhas posições políticas, que vêm desde a adolescência. Com todas as críticas que podem ser feitas à esquerda, penso que suas novas propostas rumo a uma nova sociedade seriam o melhor caminho, diante de um mundo tão desigual”.

Você é um caso raro em que o homem tem a mesma grandeza da obra que escreveu

Eu adoto, portanto, nesta minha denúncia, o mesmo tom do teu discurso na entrega do prêmio Camões, ao qual você foi indicado ainda pelo governo de Dilma Rousseff em 2016, mas cuja cerimônia ocorreu no governo golpista de Michel Temer, em 2017. Ali naquela cerimônia, você transformou o que deveria ser uma simples homenagem à tua obra num protesto necessário e certeiro contra a tirania e o fascismo, prenúncio do que viveríamos logo depois, nos quatro anos de governo antidemocrático de extrema direita que arrasaria o país e mataria quase 700 mil brasileiros durante a pandemia de covid.

Minha denúncia vai também na mesma linha da opção de não ter tratados dos teus livros na Lagoa do Sino. Ou seja: não falei dos teus livros, em terceiro e último lugar, porque não gosto do teu editor.

Peço desculpas por esse meu tom final ácido, mas sei que, quando você vier a ler esta carta, Raduan, concordará com ele, porque é parecido com o teu quando você se revolta contra as injustiças desse mundo. E você já se revoltou muitas vezes, que eu mesma presenciei. Mas é isso. Temos de dizer a que viemos, ou esta vida não faz sentido.

Privilegiei aqui o homem, o agricultor, mas não em detrimento do escritor, porque no fim das contas, um ser não se separa do outro. Em 2019, escrevi para a Folha de S. Paulo um artigo defendendo este campus Lagoa do Sino dos ataques que então vinha sofrendo do desgoverno em voga: do bloqueio de recursos à ameaça de privatização e perda da autonomia universitária.

Eu também defendi naquele texo o que a implantação desse campus simboliza. O que escrevi ali dizia: “Quando Raduan Nassar decidiu doar esta propriedade para que aqui se ministre, exclusivamente, ensino público e gratuito de graduação e pós-graduação, fez um ato radical, por uma revolução democrática permanente, pelo princípio socialista da igualdade real: entrou na cena histórica em favor dos excluídos e da luta pela autoemancipação coletiva deles, para usar palavras de Florestan Fernandes. Ainda em 1985, em comunicação para o Congresso Brasileiro de Escritores, Florestan afirmava, sobre a consciência social do escritor que se recusa a ser instrumento de dominação cultural ou servo da classe dominante: ‘semelhante radicalismo converte o escritor em homem político e, o que é mais importante, em homem político exacerbadamente hostil à ordem existente e […] empenhado […] na ‘transformação do mundo’”.

Parabéns, Raduan Nassar, por esse gol de placa, por ter resistido a tantos opositores, inclusive a tua família

Como você sabe, Raduan, acompanhei de perto tua agonia, no processo de doação desta fazenda, recusada pela Universidade de São Paulo e pela Embrapa. Por uma coincidência fortuita, por minha presença de espírito e meu senso de urgência, adquirido, aliás, no universo sórdido do jornalismo, nos tempos de sua versão impressa e obsoleta, adquirido sob pressão e na premência para o fechamento das edições que deveriam estar muito cedo nas bancas de jornal naquele tempo. Graças a esse senso de urgência é que acabei intermediando a doação da Lagoa do Sino para a UFSCar, ainda no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010, governo para o qual, e somente por acaso, eu tive uma porta aberta exatamente naquele momento.

[A história desta doação está descrita em detalhes nesta publicação.]

Parabéns, Raduan Nassar, por esse gol de placa, por ter resistido a tantos opositores, inclusive a tua família, pelo ato admirável e contrário ao acúmulo de capital da nossa classe dominante usurpadora, geradora de miséria e discriminação social a mais perversa, fomentadora de racismo, de machismo, de homofobia e de todo tipo de fobia social dos que se encontram abaixo dela.

Aqui estou eu falando hoje do território mesmo dessa tua contribuição que chamo de inestimável, tamanha é sua grandeza e sua função nos rumos da vida dessa juventude que hoje usufrui dela. Imagine você, Raduan, se tantas outras propriedades milionárias fossem servir como escolas e universidades aos filhos da probreza, aos jovens negros que, sem perspectivas, entram para o crime nos morros cariocas, nas vielas das favelas Brasil afora, para serem tão somente assassinados brutalmente pelo fascismo de estado — imagine que país não teríamos! Imagine a que horror deixariam de estar submetidos as centenas de corpos dessa juventude miserável que sucumbe todos os dias ao arrepio da lei, duplamente criminalizados também pela mídia corporativa, manipuladora e deformadora de opiniões.

Que tua vida, nesses 90 anos, Raduan, possa servir de exemplo do que se pode fazer contra a barbárie brasileira. Por último, quero dizer que esta fala é dedicada a Rita Ferreira de Jesus, tua funcionária há tantas décadas, ela que, como eu, é negra, imigrante nordestina, ela baiana e eu pernambucana, nós que somos da categoria dos que nada tiveram, dos proprietários de nada, mas que, quando se trata da Rita, sabe distinguir entre a rabugisse do artista e a generosidade do ser humano, ela que retribui com igual dedicação teu cuidado para com os vulneráveis, ela que é teu anjo da guarda sempre, em todos os teus momentos, de maus e de bons humores, na tua saúde e na tua doença.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras 12 publicações, do romance "As Mulheres de Tijucopapo" (1982 – já na 5ª edição; Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de autora revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é o romance "Corsária" (Fósforo, 2025).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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