Doppelgänger
Após ser confundida com ícone da extrema-direita, a jornalista e ativista Naomi Klein investiga em livro os duplos digitais e o submundo da desinformação
O que você faria se fosse constantemente confundido com alguém bastante parecido com você em diversos aspectos, mas que, ao mesmo tempo, prega visões e ações diametralmente opostas às suas? Foi numa situação como essa que a jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein se viu envolvida em meio ao turbilhão de polarizações que marcou o início da pandemia. Essa vida dupla que ele não escolheu acabou dando origem ao livro “Doppelgänger — Uma viagem através do Mundo-Espelho” (Carambaia, 2024), considerado um dos melhores do ano passado por jornais como New York Times e Guardian.
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Duplo ambulante: é o significado literal da palavra alemã doppelgänger. No caso da autora, sua outra versão era estadunidense, atendia pelo sobrenome Wolf e, assim como ela, tinha um histórico de ativismo feminista, possuía cabelos castanhos, era judia e até mesmo namorava um produtor de cinema cujo primeiro nome era Avram. “Parece uma conspiração”, ela lembra de ter comentado aos risos com o namorado. Mas o humor logo secou quando Klein percebeu que muitas das atitudes e opiniões no mínimo controversas da jornalista Nami Wolf passaram a ser atribuídas a ela. “Comecei a prestar mais atenção ao que Wolf vinha fazendo, por conta da recente constatação de que algumas de suas ações estavam respingando em mim”, lembra no livro.
O grande problema é que, de porta-voz do feminismo da década de 1990, Wolf passou a assumir na pandemia posições negacionistas e antivacina, repercutindo teorias da conspiração e figurando constantemente em canais da extrema-direita. A partir dessa confusão que começou a afetar diretamente a vida de Klein — ela se descreve como uma intelectual de esquerda e anticapitalista —, a jornalista tece em “Doppelgänger” uma profunda investigação do submundo da desinformação e das inúmeras personalidades que estamos criando na internet, explorando o Mundo-Espelho em que, como no país das maravilhas de Alice, conspiração vira realidade, ficção se torna fato e muitos de nós nos tornamos irreconhecíveis a nós mesmos.
Duplos digitais
Há vários anos ofereço um curso na universidade chamado “O eu corporativo”, no qual meus alunos e eu investigamos a fundo, entre outras coisas, a história e os impactos da construção e gestão de marcas pessoais. Num dos exercícios de aula, peço aos alunos, a maioria dos quais tem vinte e poucos anos, que busquem sua lembrança mais antiga de quando o conceito de ser uma marca lhes foi apresentado. Muitos relatam que tudo começou no ensino médio, quando eram pressionados a realizar certas atividades extracurriculares porque isso “pegaria bem” para algum público amorfo no futuro. Outros se recordam dos severos sermões e advertências dos pais e das mães acerca dos perigos das publicações imprudentes nas mídias sociais: tudo o que você colocar na internet agora será lido lá na frente pelos responsáveis pelas admissões universitárias e por seus futuros empregadores; por isso, tenha cuidado com relação à forma como você cuida de si e se apresenta aos olhos imaginados dessas pessoas. Alice Marwick, em seu livro Status Update [Atualização de status], refere-se a isso como “O eu (apropriado para o ambiente de trabalho)” — e alguns estudantes foram treinados para cultivar esse eu muito antes de ter qualquer ideia com relação ao tipo de carreira profissional para a qual desejavam ser “apropriados”.
De forma indefectível, os estudantes descrevem a elaboração das redações de candidatura à universidade como o momento decisivo em que seu sentido particular de identidade foi absorvido pelo imperativo de criar uma identidade consumível e voltada para o público. Eles foram incitados a escrever a partir de motes como: “Alguns estudantes têm formação, identidade, interesses ou talentos tão significativos que acreditam que, sem eles, sua inscrição no processo de seleção estaria incompleta. Se você também pensa assim, compartilhe sua história” ou “As lições que tiramos dos obstáculos que encontramos podem ser fundamentais para o su”cesso futuro. Descreva uma ocasião em que você enfrentou uma dificuldade, um revés ou um fracasso. De que maneira isso o afetou, e o que você aprendeu com a experiência?”.
A “marca pessoal” é mais uma forma de duplicação, uma espécie de processo de criação interna de um doppelgänger
Os motes inspiradores podem parecer benignos, mas muitos estudantes relataram que, por meio desses exercícios de escrita de alto risco, aprenderam a contar histórias sobre sua jovem vida que tinham menos a ver com as verdades tais quais as conheciam do que com atender às necessidades e exigências imaginárias de um público de desconhecidos acerca de certos tipos de identidade. Muita gente concordou com a cabeça quando um aluno descreveu o processo como um modo de “embalar seu trauma na forma de uma mercadoria consumível”. Não é que os traumas sobre os quais escreviam fossem falsos; é que o processo exigia que rotulassem experiências difíceis de formas especificamente comercializáveis e as transformassem em algo fixo, vendável e potencialmente lucrativo (uma vez que se considera que frequentar uma universidade é o primeiro e necessário passo para qualquer carreira lucrativa). Estava ocorrendo uma cisão entre esses jovens e essa coisa que eles deveriam se tornar para alcançar o sucesso.
A “marca pessoal” é mais uma forma de duplicação, uma espécie de processo de criação interna de um doppelgänger.
É lógico que, para esses estudantes, a duplicação exigida da construção e gestão da marca pessoal não parou no momento em que ingressaram na universidade. Um deles, exilado de uma escola superior de administração e negócios, contou que uma de suas primeiras tarefas foi elaborar uma apresentação de trinta segundos sobre si mesmo. Enquanto formulava uma descrição sintética até se reduzir a suas qualidades mais comercializáveis, ele declarou aos colegas: “Senti minha alma deixar meu corpo”. Todos os demais pareceram saber o que ele sentia — estávamos nos primeiros dias das aulas pandêmicas via Zoom, e os colegas encheram suas caixinhas com emojis de coraçõezinhos.
Evocar a imagem das almas é interessante, um lembrete de que esta não é a primeira geração a se moldar para um olhar onisciente e ubíquo. O que é um Deus que tudo vê, capaz de saber quais são os nossos pensamentos e intenções, senão a ferramenta de vigilância mais eficaz já inventada? A genialidade dessa forma de religião é a maneira como seduz os crédulos a praticar a pureza na vida a fim de colherem recompensas após a morte. E, ao contrário do estado de vigilância dos dias de hoje — que sabe apenas o que digitamos, dizemos e fazemos —, os deuses monoteístas afirmam conhecer também as nossas intenções.
O psicanalista austríaco Otto Rank, discípulo de Freud que colaborou estreitamente com ele e mais tarde rompeu com as teorias freudianas, via a alma — o eu que, acreditava-se, vive além do corpo após a morte — como o doppelgänger original, o mais íntimo dos duplos. A escolha de acreditar numa alma, ele escreveu, era “uma defesa do desejo contra uma temida destruição eterna”. Freud concordou, escrevendo que “o duplo foi originalmente uma garantia contra o desaparecimento do Eu, um ‘enérgico desmentido ao poder da morte’ (Rank), e a alma ‘imortal’ foi o primeiro duplo do corpo”.
Uma marca mal gerida tem consequências menos graves do que uma alma mal gerida
Tal como acontece com os duplos que encenamos no éter digital, tudo isso tem um lado ameaçador, porque, como observa Freud, é um lembrete de que nem sempre estaremos vivos. A alma, dessa forma, “passa a inquietante mensageiro da morte”. Dependendo da cosmologia, uma vida mal vivida pode levar nosso espírito duplo ao inferno ardente por toda a eternidade ou pode garantir sua reencarnação na forma de barata. Os riscos dessa forma de duplicação são tão elevados que, amiúde, de acordo com Freud e Rank, ela é acompanhada pela criação de outro tipo de duplo — um gêmeo maligno, ou um eu abjeto — no qual se projetam todos os nossos pecados, transgressões e iniquidades. Esses duplos, que assumem nossos pecados para que possamos permanecer puros, compõem a matéria de que são feitos os monstros nos livros e filmes sobre doppelgängers: são as projeções do eu que acabam sendo esfaqueadas pelos protagonistas, que por engano se matam no processo. Esses duplos são os eus indesejados, dos quais nos livramos fazendo algum tipo de pacto com o diabo, e que agora buscam vingança.
É inequívoco que uma marca mal gerida tem consequências menos graves do que uma alma mal gerida — mas, por outro lado, as consequências ocorrem neste domínio, nesta vida, não na seguinte. Nas nossas discussões em sala de aula, tentamos deslindar precisamente a maneira como a lógica da marca pessoal molda a eclosão daquela coisa que chamamos de “eu”. O que significa para os jovens crescerem sabendo que cada fotografia, vídeo e observação casual postados na internet podem, quando eles forem alguns ou muitos anos mais velhos, ser o fator que os impedirá de conseguir um emprego, entrar numa faculdade ou obter aprovação para financiar a compra de um apartamento? E, inversamente, o que significa quando essas mesmas postagens — experimentar uma roupa bonitinha, dançar sozinho no quarto — podem ser também a passagem para a fama e a riqueza de um influenciador digital? Com tanta coisa em jogo e levando-se em conta as enormes apostas, o que os jovens fazem e o que não ousam sequer tentar? E o que acontece com o “eu abjeto” deles enquanto estão ocupados desempenhando o papel de seu eu aprimorado? Que gêmeos malignos são criados nesse processo de cisão?
Meus alunos talvez não tenham duplos de carne e osso criando o caos para eles, como parece ser o meu caso com a Outra Naomi. Todavia, ainda assim, cresceram com uma consciência aguda de terem um duplo externalizado — um duplo digital, uma identidade idealizada que está apartada de seu eu “real” e que serve como um papel que eles devem representar em benefício dos outros se quiserem ter sucesso. Ao mesmo tempo, devem projetar nos outros a sua parte indesejada e perigosa (o eu não esclarecido, o eu problemático, o eu deplorável, o “não eu” que aguça as fronteiras do “eu”). Essa tríade — separação, representação e projeção — está rapidamente se tornando uma forma universal de criação de doppelgängers, gerando uma figura que não somos bem nós, mas que na percepção dos outros, no entanto, somos nós. Na melhor das hipóteses, um sósia digital pode proporcionar tudo o que a nossa cultura nos ensina a desejar: fama, adulação, riqueza. Mas é um tipo precário de realização de desejo, e para destruí-lo basta uma única opinião equivocada ou uma postagem ruim.
Um sósia digital pode proporcionar tudo o que a nossa cultura nos ensina a desejar: fama, adulação, riqueza. Mas (…) para destruí-lo basta uma única opinião equivocada
- Doppelgänger – Uma viagem através do Mundo-Espelho
- Naomi Klein (trad. Renato Marques)
- Carambaia
- 480 páginas
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