Coluna do Observatório da Branquitude: A zona de conforto da branquitude — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

A zona de conforto da branquitude

Os aliados antirracistas que não levantam sua voz estão presos na zona de conforto da branquitude, envoltos pela tentadora manutenção de privilégios

31 de Julho de 2024

O mês de julho é das pretas, mulheres negras latino-americanas e caribenhas, de Tereza de Benguela, de todas nós amefricanas nessa Améfrica Ladina — como diria Lélia Gonzalez. Eu poderia escrever sobre tudo isso. No entanto, não nos dão trégua nem em épocas de celebração e o nosso fardo é o mesmo de sempre: o branco. Não necessariamente você branco que me lê. Mas, sim, a figura do branco universal privilegiado. Um ser intocável que tudo pode.

Logo no começo do mês, acompanhamos a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) — aquela mesma que correu armada atrás de um homem negro — chamando, em tom de ataque, a também deputada federal Benedita da Silva de Chica da Silva, após não ter tempo de fala em uma reunião com parlamentares do G20. Pouco depois, jogadores da seleção argentina comemoraram a vitória na Copa América com suas típicas canções racistas e transfóbicas. Na mesma semana, um casal é flagrado se divertindo enquanto imita macacos em uma roda de samba predominantemente negra no Rio de Janeiro — a moça era argentina. Dias atrás, foi a vez da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) sofrer ataques racistas na internet ao anunciar sua candidatura à prefeitura de Niterói.

O que todos esses racistas têm em comum, além da cor da pele, é a proteção do pacto da branquitude. Muitos podem ficar incrédulos diante do que consideram uma ousadia: dois brancos em um reduto negro imitando macacos. Mas não é ousadia. É a segurança de que nada os atingirá. Eles têm passe livre de melanina. Enquanto as pessoas negras têm medo.

Muitos questionam o porquê dos pretos ali presentes não terem feito alguma coisa. Quando a pergunta deveria ser outra: por que os outros brancos não usaram seu lugar de privilégio para intervir? Da mesma maneira que ninguém questionou Lionel Messi sobre a postura dos colegas na celebração da vitória da seleção argentina — como bem lembrou a educadora Bárbara Carine em publicação nas suas redes sociais. Muitos dos que se dizem aliados antirracistas não conseguem enxergar diante do escudo branco a atitude criminosa do seu igual e simplesmente não reagem. Porém, ser omisso é escolher um lado.

No Brasil, o sistema de justiça é branco. São juízes, em sua maioria brancos, que ao julgarem um outro branco enxergam nele um igual e não um criminoso

No Brasil, o sistema de justiça é branco. São juízes, em sua maioria brancos, que ao julgarem um outro branco enxergam nele um igual e não um criminoso. Mas que não compartilham o mesmo olhar humanizado ao julgarem pessoas negras. A branquitude enxerga no negro uma figura de oposição, um não humano, um ser animalizado, macaco. Àqueles que não merecem acesso à justiça e respostas às suas denúncias. É um acordo subjetivo e silencioso. Por isso, os números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgados pela jornalista Flávia Oliveira revelam que, por mais que tenhamos tido nos últimos três anos um aumento de 610% de casos de injúria racial registrados no Brasil, chegando ao número de 6.466 processos relacionados a crimes raciais, existe um gargalo em relação ao número de condenações. Menos de 300 pessoas foram presas por racismo no país no período.

Em breve, as violências sofridas por Talíria Petrone e Benedita da Silva irão se somar aos números de processos relacionados a crimes raciais. Dado que cresce diante da tomada de consciência coletiva de que o racismo não pode mais ser aceito. Um avanço inegável que é puxado pelo estado da Bahia, onde se concentra o maior número de negros no país e também de denuncias de injúria racial, sendo responsável por oito em cada dez processos entre 2020 e 2023. A exemplo disso, o português Hugo Miguel Duarte Macedo, treinador do time feminino do JC Futebol Clube do Amazonas, foi preso em flagrante ao chamar a zagueira Suelen Santos, do Bahia, de macaca, durante uma partida em Salvador, no início do mês. Ele foi solto após audiência de custódia e cumprirá medidas cautelares.

Por outro lado, seguimos observando as ações práticas do pacto da branquitude acontecendo. A Associação Orff-Schulwerk Argentina defendeu a “hermana” que imitou macaco no samba, alegando que no país deles isso não tem conotação racista — bom, então parece que andei assistindo a jogos de futebol errado. Por aqui, Carla Zambelli solta mais uma desculpa típica de quem tem o privilégio de errar: tudo não passou de uma confusão.

A branquitude é um lugar de conforto onde o branco será acolhido com todos os seus erros perdoados e com a licença para cometer crimes impunemente. Parece até papo de coach, mas muitos daqueles que tentam sair da zona de conforto permanecem por lá por ser um local conhecido e seguro. Os aliados antirracistas que não levantam sua voz estão presos na zona de conforto da branquitude, envoltos pela tentadora manutenção de privilégios.

E, você, de que lado está?

JULIANA GONÇALVES é jornalista e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos. É especialista em comunicação no Observatório da Branquitude, cofundadora da plataforma de empoderamento profissional Firma Preta. Tem passagens pelas redações do Catraca Livre, Rede Globo e The Intercept Brasil.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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