Fernando Luna
Digamos desde já que nos amamos
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o rebranding da camisa da seleção, os costumes bárbaros no Zap, a vingança da sociedade dos poetas mortos, o cavalo no telhado e a sabedoria de Patti Smith
Para evitar mal-entendidos digamos desde já que nos amamos
Cacaso, 1974
Antologia Profética
Não foi um final de semana, foi um descarrego pra camisa da seleção brasileira de futebol.
Sábado, Vinicius Junior; domingo, Parada do Orgulho LGBT.
Nem tenho grande apego a qualquer símbolo nacional, talvez seja trauma dos hinos e brasões das aulas de Educação Moral e Cívica, mas deu gosto ver esse rebranding.
Depois de anos, aparece um craque que não deixa ninguém com vergonha alheia, dentro ou fora de campo: Vini Jr ganhou de novo a Liga dos Campeões e se tornou uma das vozes mais importantes na luta antirracista.
Ainda deixa a gente a sonhar de novo com o futebol-arte na seleção brasileira, mais sorriso e alegria do que marra e cai-cai. Só nessa final, fez gol e ainda reinventou a caneta, um dos dribles mais desconcertantes do esporte.
Em vez da bola rolar entre as pernas do adversário, foram as pernas do adversário que contornaram a bola – Vini apenas pisou na pelota e deixou o camisa 26 do Borussia Dortmund passar lotado por cima dela.
(Vale rever o lance com atenção ao fundo da imagem: fora de campo, um reserva do Borussia observa o lance com a boca literalmente aberta de espanto diante da jogada espetacular.)
E ontem a maior parada gay do mundo passou cantando, dançando e exibindo um dress code inesperado: verde e amarelo. A multidão LGBTQIAPN+ disse com todas as letras que a camisa da seleção foi resgatada do bolsonarismo – ela não combina mesmo com calça militar camuflada.
Mais que nunca, é preciso não se deixar levar pelas aparências.
Com o sequestro da amarelinha, ao menos era moleza identificar quem evitar. O amarelo-ouro berrante funcionava como as cores chamativas daqueles sapos venenosos: um alerta pra manter distância.
Agora será preciso um exame mais detalhado, antes de qualquer aproximação. Ou se jogar sem medo na estratégia do Cacaso: “Para evitar mal-entendidos digamos desde já que nos amamos”. Só o amor reconstrói.
Quer ver? Escuta
Francisco Alvim, 2000
O processo civilizador desandou de tal modo que mensagem de áudio tá se tornando socialmente aceitável.
Cada vez mais, recebo e, mea-culpa mea maxima culpa, envio gravações de voz pelo Zap. Pior: sem ao menos aquela introdução que se fazia obrigatória até pouco tempo atrás: “Desculpa o áudio, mas…”.
Quando caiu em desuso a polidez de fingir certo constrangimento por enfiar um podcast na orelha alheia? Como caducou essa pequena hipocrisia, que já foi cláusula pétrea na constituição de usos e costumes digitais?
Hipocrisia, sim.
Pois se o sujeito começava pedindo desculpas era porque tinha plena consciência de que tava na iminência de ser inconveniente – o que jamais impediu alguém de, ato contínuo, mandar um áudio deliberadamente inconveniente.
(É como “desculpa a brincadeira”. Se é brincadeira, não precisa pedir desculpa; se precisa pedir desculpa, não é brincadeira.
Pensei que talvez fosse um problema da minha geração. Um pessoal com vista cansada, incapaz de teclar mesmo depois de ajustar o tamanho do texto do celular pra “Visível do Espaço”. Contra presbiopia, a verborragia.
Mas fedelhos nascidos após 1990 também gastam mais saliva em mensagens.
Rareia em todas as faixas etárias a cortesia de lutar com as palavras. Digitar, apagar, redigitar e corrigir o corretor automático, até chegar num textinho claro e breve – tudo pra facilitar a comunicação e a vida do destinatário.
Há um atenuante universal. Ninguém aguenta mais fritar as próprias retinas, encarando telas o dia inteiro.
O áudio é um colírio, um antídoto sonoro contra o esgotamento visual.
Um lado meu resiste, faz ouvidos moucos pra falação não solicitada. Outro, prefere dizer em voz alta e enviar pra todos os grupos o poema-manifesto de Francisco Alvim, publicado em seu livro “Elefante”: “Quer ver? Escuta”.
O risco é acabar normalizando costumes ainda mais bárbaros – como telefonar.
Você pode conquistar os conquistadores com palavras
Lawrence Ferlinghetti, 2007
Era o que faltava: um poeta atirou num chefe de estado.
Em geral, chefes de estado atiram em poetas. Se não atiram, censuram, prendem, exilam ou infligem as mais variadas barbaridades, não raro terminando em bem mais que versos de pé quebrado.
Essa inversão aconteceu na Eslováquia. Um certo Juraj Cintula, em vez de desfrutar um chá na Sociedade Eslovaca de Escritores, deu de balear o primeiro-ministro Robert Fico. Flagrante delito de exceção histórica: Federico García Lorca foi executado pelos franquistas. Paul Celan sobreviveu a um campo de prisioneiros nazista. Cesare Pavese escreveu o autobiográfico “O Prisioneiro Político”. Anna Akhmátova só voltou a publicar depois da morte de Stalin. Robert Lowell não comoveu Roosevelt e acabou em cana por
se recusar a lutar na Segunda Guerra.
Allen Ginsberg dormiu no xilindró por protestar contra a guerra do Vietnã. Lawrence Ferlinghetti viu o sol nascer quadrado ao publicar o safado “Uivo” de Ginsberg – editor e poeta, sabia que “você pode conquistar os conquistadores com palavras”, como anotou em “Poesia como arte insurgente”.
Li Bai sucumbiu à ira do imperador chinês, nem seu kung fu exuberante o salvou. Geoffrey Chaucer teva a má ideia de visitar a França durante a Guerra dos Cem Anos e ouviu um “teje preso”. John Milton azucrinou a Igreja e precisou se escafeder. Dante Alighieri brigou com o papa e terminou exilado.
Pablo Neruda deve sua morte mais a Pinochet que ao câncer. Reinaldo Arenas foi massacrado pelo regime castrista que apoiara no início da Revolução Cubana. Ferreira Gullar gravou no exílio o “Poema sujo”, contrabandeado num cassete ao Brasil da ditadura por Vinicius de Moraes. Carolina Maria de
Jesus foi detida por bruxaria, disfarçando a acusação de ser preta e pobre.
Já o premiê eslovaco, mesmo alvo de quatro tiros, sobreviveu. Tem que haver alguma vantagem em ser alvejado por um poeta.
Água, água em toda parte e nem uma gota para beber
S. T. Coleridge, 1798
Há catástrofes tão grandes que mal conseguimos capturar sua imensidão.
Lembro quando passei por Brumadinho, cerca de um ano após o rompimento da barragem: aquilo não parecia ter começo nem fim.
Mesmo ali na minha cara, as marcas na paisagem precisavam ser mentalmente somadas à lembrança das imagens de satélite com manchas marrons esparramadas sobre o relevo, das centenas de fotografias de lugares arrasados quilômetros além de onde minha vista alcançava e dos relatos desesperados de quem perdeu família e casa.
Só assim, sobrepondo uma coisa à outra, era possível chegar perto da dimensão da tragédia – talvez seja impossível apreender completamente uma tragédia sem ser diretamente tocado por ela.
Quando a destruição salta da escala municipal pra estadual, como acontece agora no Rio Grande do Sul, parece mais difícil compreender o tamanho do estrago. Até que de repente, não mais que de repente, surge uma imagem capaz de dizer o que não pode ser dito.
O cavalo ilhado num telhado resumiu o absurdo.
Justamente por não ser gente, ele conseguiu reunir em si todos os dramas humanos, cada um irredutível em sua própria desgraça. Tudo ali, disfarçado de bicho e cercado pelo rio barrento por todos os lados: solidão, desamparo, destruição, medo, resignação, resiliência.
Bombeiros e veterinários salvaram o Caramelo e, de quebra, jogaram uma boia pra esperança.
Tem algo no sofrimento animal capaz de recuperar nossa humanidade, que às vezes ameaça desaparecer entre os roubos de casas abandonadas, os ataques sexuais a mulheres em abrigos de emergência e o tsunami de fake news afogando as redes sociais.
De volta à terra firme, sedento em meio a água como um marinheiro de S. T. Coleridge e a população gaúcha, ganhou soro na veia e conforto. À espera do tutor ou da adoção, deu pelo menos um coice na inércia com que se costuma encarar essas catástrofes nada naturais.
Jesus morreu pelos pecados de alguém/mas não pelos meus
Patti Smith, 1975
Há décadas é assim, mas essa semana foi especial: muita gente parou pra
escutar sua música e suas ideias.
Desde que foi a Nova York tentar a sorte como artista, ela fez baixar o espírito do tempo em suas letras e melodias, um cavalo capaz de incorporar uma geração inteira e influenciar as seguintes.
Viu as mentes mais brilhantes de sua geração destruídas pelo HIV. Reagiu levantando a voz contra o preconceito e a favor da comunidade LGBTQIA+.
Gabaritou questões de gênero na capa andrógina do álbum de estreia: pose clássica de homem de negócios, camisa branca masculina e blazer preto. Três anos depois veio toda menininha, camiseta justa, mãos ajeitando o cabelo – porém, oh, pelos à mostra debaixo do braço.
Serve de farol pra muita gente que apareceu desde então. Taylor Swift cita seu nome ao lado do poeta galês Dylan Thomas, na canção “The Tortured Poets Department” – sim, ela continua poeta acima de tudo.
Não facilita pra igreja ou carolices. Desde que o punk é punk é assim: as primeiras palavras da primeira faixa que gravou são “Jesus morreu pelos pecados de alguém/mas não pelos meus”.
Madonna?!
Bem, Madonna até já disse que essa canção, “Gloria”, é uma influência poderosa no seu trabalho – mas tô falando de Patti Smith.
Ela é a convidada do episódio lançado na última quarta-feira do podcast “Wiser than me”, em que a atriz e comediante Julia Louis-Dreyfus entrevista mulheres mais velhas e mais sábias.
Aos 77, Smith conta que às vezes se sente com 9 ou 11 anos de idade. Canta à capela uma homenagem a Robert Mapplethorpe, figura central de sua juventude e de seu livro “Só Garotos”. Fala do tempo no Chelsea Hotel.
Lembra que aprendeu a errar com Sam Shepard e a agradecer com a mãe. Reclama de quem diz que ela não fez nada nos anos 1980 – “Tive dois filhos nesse período, lavei um milhão de fraldas”. Vai logo lá escutar sua música e suas ideias.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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