Coluna do Fernando Luna: Arte é como um incêndio — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Arte é como um incêndio

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o melhor Oscar de todos os tempos, o Hitler do terceiro mundo, o mais superestimado dos acidentes geográficos e os 20 aninhos do Facebook

04 de Março de 2024

Arte é como um incêndio/ nasce daquilo que queima

Jean-Luc Godard, 1998

Antologia Profética

Esse Oscar merece o Oscar de Melhores Filmes: não lembro de outra leva tão boa de indicados.

Alguém dirá que nada supera 1976, com “Um Estranho no Ninho”, “Barry Lyndon”, “Tubarão”, “Nashville” e “Um Dia de Cão”. Mas estará errado. Eram apenas cinco títulos e, além disso, toda lista existe pra irritar os outros.

Então aqui vai a minha, do menos inflamável ao mais incendiário filme do ano, aproveitando a metáfora de Godard. Que, aliás, nunca teve nenhum de seus mais de 40 longas indicado ao Oscar.

10) “Maestro”: tenta prestar atenção em qualquer outra coisa além da prótese de nariz que Bradley Cooper usa pra interpretar Leonard Bernstein.

9) “Ficção Americana”: mesmo caindo em todos os clichês pra criticar os clichês na maneira como negros são representados nas artes.

8) “Vidas Passadas”: vê logo esse original do estúdio A24, antes que façam um remake em Hollywood — que fatalmente terminará com um beijo em fade-out.

7) “Os Rejeitados”: quem precisa de um grande drama quando os pequenos dramas são suficientes pra tornar a existência miserável?

6) “Oppenheimer”: chega chegando, entre especulações físicas e metafísicas. Depois, vira mais um filme de tribunal — por isso vai ganhar o Oscar.

5) “Barbie”: sim, “Barbie” é minha vencedora do Barbieheimer. Greta Gerwig fez o melhor e mais longo branded content de todos os tempos.

4) “Assassinos da Lua das Flores”: Scorsese é um dos grandes e esse é um grande filme. Talvez grande demais com 3h26. De Niro no papel de De Niro.

3) “Pobres Criaturas”: Lanthimos com orçamento pra ser mais Lanthimos que nunca. Melhor cena de dança desde “Pulp Fiction”.

2) “Anatomia de uma Queda”: a personagem da incrível Sandra Hüller é culpada ou inocente? A verdade é uma só: são tantas as verdades.

1) “Zona de Interesse”: o som e a solução final (a de Jonathan Glazer, não a nazista) fazem um filme assustador e atualíssimo — o mal é o cidadão de bem.

O futuro se aproxima devagar mas vem

Mario Benedetti, 1979

Aproveitei o domingo pra ver o Hitler do terceiro mundo — no cinema, não na avenida Paulista.

A Cinemateca Brasileira, numa dessas coincidências que fazem um cético sentir orgulho do acaso, exibiu justamente ontem um dos menos vistos e mais legendários longas-metragens nacionais: “Hitler III Mundo”, de José Agrippino de Paula.

É o único filme do autor de “Panamérica”, livro que Caetano Veloso aponta como precursor do Tropicalismo e cita na letra de “Sampa”. Foi rodado clandestinamente em pleno AI-5, com sobras de negativos e o esculacho do Cinema Marginal.

O roteiro, se é que dá pra chamar assim, enfileira cenas aleatórias em torno de personagens bizarros – um Hitler-robô planeja seu quarto reich na América Latina, um samurai da favela interpretado por Jô Soares, e um Coisa, aquele héroi dos quadrinhos do Quarteto Fantático, em versão baixíssimo orçamento.

Qualquer semelhança com o delírio do Brasil nos últimos anos e da Paulista nesse final de semana não é mera coincidência.

Se bem que nem Agrippino foi capaz de imaginar uma turma que defende intervenção militar e canta o hino contra a ditadura “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”. Ou senhoras religiosas apoiando a extrema-direita de Israel porque se trata de “um país cristão como o nosso”. Ou uma mulher de ponta-cabeça num giromaster gritando “Brasil acima de tudo”. Ou um ex-presidente que se cala na polícia federal mas entrega a rapadura em cima de um carro de som.

(Bolsonaro discursar a favor do estado democrático de direito é como Kleber Bambam lançar uma masterclass pra ensinar a lutar boxe ou Benjamin Netanyahu publicar um livro argumentando pela solução de dois estados.)

Sem pressa, sem revanchismo e sem ódio, como no poema que o uruguaio Mario Benedetti publicou em “Clandestinas”, o futuro se aproxima. Devagar e sem anistia, a Papuda vem.

O que eu faço? Eu ouço a água cair

William Carlos Williams, 1948

Em vez de pular carnaval, pulei o carnaval em si: troquei a rua pelo mato.

E como sempre acontece quando se vai pro mato, você tenta fazer algo pra compensar a falta de festa, cinema, bar, bagunça, show e multidão. Não dá dois dias e um incauto propõe ir à cachoeira.

Geralmente sou esse incauto, mesmo sem gostar de cachoeira – ao contrário de William Carlos Williams, que botava a queda d’água do Passaic até na capa de “Paterson”.

Porém gosto ainda menos de Dixit, quebra-cabeça, mímica e jogos de carta em que só pode bater com canastra de números primos – atividades obrigatórias de acordo com o contrato social que rege a vida no campo.

Cachoeira é o mais superestimado dos acidentes geográficos, um escorregadio e gelado degrau de chão com branding bem trabalhado.

Mas não me cancele ainda.

O conceito de cachoeira me encanta. Adoro aquela cachoeira platônica, água azul-clara formando num poço tranquilo pro banho, sol a pino aquecendo a vegetação rasteira e verdinha às margens do rio.

A realidade costuma ser bastante diferente – não por acaso, cachoeira é sinônimo de cascata.

O rio é barrento e frio. O fundo varia de uma textura pastosa que sobe entre seus dedos pra algo dolorosamente afiado e pedregoso. A queda d’água fica embutida entre as árvores, correnteza permanentemente à sombra. Insetos, anfíbios e répteis em escala bíblica completam o cenário.

Ah, mas tem uma cachoeira na Chapada Diamantina que… eu sei, eu sei, fui feliz lá. A exceção confirma a regra.

Aliás, via de regra existem apenas dois tipos de cachoeira: a próxima e a isolada. O problema da próxima é justamente ser próxima, o da isolada é exatamente ser isolada. Enquanto o acesso fácil daquela faz com que esteja sempre lotada, a dificuldade pra alcançar essa raramente justifica o esforço – e acaba em decepção.

Tudo fica mais penoso quando a coisa é chamada, falsa intimidade, de “cachu”.

O abismo não nos divide. O abismo nos cerca

Wislawa Szymborska, 1972

Mark Zuckerberg publicou ontem no Facebook: “Há 20 anos lancei uma coisa”.

Em vez de parabéns, ouviu que tinha “sangue nas mãos”. Foi o protesto de um senador, numa audiência no congresso norte-americano semana passada, investigando os perigos das redes sociais pra crianças e adolescentes – predadores sexuais e suicídio no topo da lista.

Ah, ninguém mais entra no Facebook.

Ninguém, a não ser 3 bilhões de usuários por mês, à frente de toda concorrência. E a concorrência não é diferente. Em vez de simplesmente nos dividir, o abismo digital nos cerca – e cá estamos nós, prisioneiros dos algoritmos.

Cada conta gera gratuitamente dados pra vender publicidade e aumentar em 69% o lucro. Assim, a Meta bateu a meta e viu suas ações saltarem 20% na última sexta, elevando seu valor de mercado a 1,2 trilhão de dólares – o quinto maior do planeta.

Quando não inventa sua própria revolução com o botão de curtir ou o feed, o Face copia na cara dura invenções alheias: Story imita o Snapchat; Reels, o Tik Tok; e Threads, o ex-Twitter. Se não for o suficiente, vai lá e compra logo o Instagram e o Whatsapp.

“Move fast and break things”, mote de Zuckerberg desde o dormitório em Harvard, virou “move fast e finge que se importa com o que quebrou pelo caminho”. Mas, se talvez seja tarde demais pra fingir que se importa, quanto mais pra arrumar a bagunça.

Entre o descaso com as pessoas e os resultados financeiros obscenos, o fã clube do bilionário encolhe. Ele, único dos fundadores que segue como CEO numa Big Tech, virou o rosto imberbe do pós-capitalismo, rindo sem vergonha da erosão de nossa saúde mental e, claro, social.

Pra além da sanidade e da democracia, outro risco nas plataformas digitais é aquele sujeito que estudou na sua turma da quinta série retomar contato por DM. Algo me diz que, se você não tem notícias de alguém há 40 anos, é melhor continuar assim.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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