Coluna da Vanessa Rozan: Arqueologia do corpo — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Arqueologia do corpo

Uma reflexão sobre como nós mulheres viemos parar aqui nessa sociedade patriarcal

21 de Novembro de 2023

Uma das perguntas que me movem é entender como nós mulheres viemos parar aqui. E por “aqui” eu situo a sociedade patriarcal, essa mesma de hoje que até nos faz pensar que sempre foi assim, que até já conquistamos bastante, quem sabe não precisamos mais dos movimentos sociais e da palavra (e da ação) do feminismo.

Recentemente o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os dados sobre violência contra meninas e mulheres do primeiro semestre de 2023. Há uma estimativa de que diversos tipos de violência nem são reportados às autoridades. Veja o que autoridades fizeram no caso Mari Ferrer? Ela e a corajosa jornalista que tornou seu julgamento público foram vítimas da misoginia do sistema. Quando exatamente na história mulheres tiveram sua humanidade diminuída? A quantidade de mulheres que experimentaram alguma forma de violência no ano passado foi a maior já registrada em quatro edições da pesquisa, de novo segundo os dados recolhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Jacques-Louis Moreau, um dos fundadores da “antropologia moral” — e já daí a gente tem que desconfiar —, escreveu que a relação da mulher para o homem é de uma série de oposições e contrastes: eles são diferentes em todo aspecto do corpo e da alma, em todo aspecto moral e físico. Eu estou lendo esse livro chamado “Making Sex: Body and gender from the greeks to Freud”, de Thomas Laqueur, e ele, como historiador, ficou impressionado com a mudança de como os sexos eram tratados até 1400, para o que se deu a partir de 1800. Pelo que ele explicou na introdução, os registros mais antigos entendiam que os sexos eram iguais, porém inversos, um para fora, o outro exatamente igual, para dentro.

Eles não estava tão preocupados em estudar particularidades do sexo feminino. Até hoje a ciência sabe pouco sobre esse corpo

Esqueçam o conceito de gênero, que só surgiu no século 20. Ali no começo de 1800, vários camaradas deste senhor da antropologia moral estavam bem focados em determinar diferenças fundamentais dos sexos ao estabelecer uma hierarquia entre eles. Hierarquia é a palavra, e hierarquia é poder. Eles não estava tão preocupados em estudar particularidades do sexo feminino, e até hoje a ciência sabe pouco sobre esse corpo (estudos recentes mostram que sofremos ataques cardíacos de forma totalmente diferente do corpo masculino). Foi somente em 1759 que alguém se preocupou em desenhar em detalhe um esqueleto feminino. Menopausa, fibromialgia, endometriose são doenças pouco conhecidas e pouco estudadas. Mas, voltemos ao final do século 19, onde outros caras se dedicaram a tentar provar que no nível celular as mulheres eram mais passivas, moderadas, lerdas e estáveis do que os homens.

E aí vem a melhor parte: “Embora admitisse que não conseguia elaborar completamente a ligação entre estas diferenças biológicas e as ‘diferenciações psicológicas e sociais resultantes’, um deles justificou, no entanto, os respectivos papéis culturais de homens e mulheres com uma ousadia impressionante”. Ou seja, ele simplesmente meteu o louco e disse que não tinha comprovação nenhuma mas que está valendo essa ideia aí de que tem um sexo dominante e um dominado. Todos os homens concordaram, olha a surpresa.

Ao estabelecer uma hierarquia, determina-se que não existem somente diferenças físicas entre eles, mas que essas diferenças têm importância e dão o valor dos sexos, como se um fosse bom, o outro, nem tanto. E como se essas diferenças biológicas pudessem responder pela programação cultural que cada uma delas carrega. Eu amo ouvir mais sobre o “instinto natural de cuidado” que as mulheres têm quando não se faz nenhuma análise dessa construção social de séculos.

Esse laboratório de diferenciações que se deu entre homem e mulher lá atrás, definindo o primeiro como universal e, portanto, mais importante, foi bem reproduzido na invenção do conceito de raça, que aconteceu na sequência. Existem vários registros de medições de toda sorte que tentaram afirmar isso e de como essa protociência, sem nenhuma comprovação, atravessou os séculos.

Seguimos nossas vidas, normalizamos a brutalidade e os números. Os feminicídios aumentaram enquanto outros crimes contra a vida caíram

Eu ainda vou seguir na leitura aqui para entender o que aconteceu dos gregos a Freud, como o autor promete no subtítulo. Fico pensando que talvez nessa definição de hierarquia de sexos, e em todos os séculos que reforçaram essa ideia de uma forma ou outra, pela “ciência”, pela religião e pelo Estado, se estabeleceu um valor e o quanto esse valor pode ser medido hoje pela forma como nossos corpos são violados na sociedade atual — e como pouco é feito a respeito. Seguimos nossas vidas, normalizamos a brutalidade, normalizamos os números. Os feminicídios aumentaram enquanto outros crimes contra a vida tiveram uma queda. Como se explica isso e quem se importa?

Nessa hora, eu me lembro da frase que a promotora de Santa Catarina disse a uma garota de 11 anos, vítima de violência sexual e grávida por consequência do abuso, em 2022. Ela pediu que a garota aguentasse um pouquinho mais. Quanto mais aguentaremos?

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação