Coluna do Observatório da Branquitude: O fumo de negro que virou cannabis de branco — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

O fumo de negro que virou cannabis de branco

A criminalização do fumo, assim como foi feito com o samba, a capoeira e as religiões de matriz africana, foi e é uma forma de apagamento cultural, contribuindo para um extermínio

22 de Setembro de 2023

Não me recordo como tudo começou e o que me fez despertar interesse sobre o assunto. Mas, lá em 2017, passei a acompanhar famílias que precisavam da maconha para tratar suas crianças e depois adultos, que fumavam para fins medicinais. Eu cruzei com pais que aprenderam na marra o cultivo da planta em casa, pacientes que buscaram na maconha o alívio para a depressão, as dificuldades de pessoas negras periféricas para acessar o tratamento, muitos pedidos de ajuda que chegavam ao meu e-mail com frequência. Então, neste último fim de semana, comecei minha fala em um debate sobre reparação social e econômica por meio da planta na Expocannabis, uma feira voltada para este mercado, falando um pouco de uma das conversas que mais me marcou.

Uma mãe me contou que mesmo com a autorização para o uso do extrato não conseguia comprá-lo porque era caro demais. Ela foi até a boca, comprou um prensado e levou para casa para tentar fabricar o óleo por conta própria e administrar para a filha. Vale lembrar que essa produção não é simples e que precisa seguir padrões de qualidade para ter o efeito esperado. Essa mãe era uma mulher negra, evangélica, moradora de favela, que precisava da maconha e disse: “Eu não recomendo a nenhuma mãe nas minhas condições fazer o que eu fiz. Os ricos fumam nos seus apartamentos, nos seus carros e não são punidos. Mas o pobre e negro, quando vai na boca como eu fui, tem risco de morrer. A perseguição é contra os pobres e periféricos”.

Em poucas palavras, ela fala sobre privilégio branco, perfilamento racial e a suposta guerra às drogas, que na verdade é uma guerra contra negros e pobres. Fala de uma branquitude que cria uma hierarquização na qual o branco é usuário e o negro é traficante, mesmo quando portam as mesmas quantidades. O branco bola seu beck com a tranquilidade de quem tem a cor da pele como escudo. Enquanto isso, para os outros, como bem cantou Bezerra da Silva em “Se Leonardo Dá Vinte”, “mesmo apertando na encolha, malandro, pinta sujeira depois”.

Certa vez, em uma viagem, conheci um homem branco de classe média alta que havia sido parado no aeroporto com maconha, ele afirmou que aquilo não daria em nada. Disse que assinou um termo e pegou o voo seguinte reclamando do transtorno, mas com a calma de quem sabe que a cor da sua pele lhe permite o “privilégio” de sair de um flagrante direto para a diversão das férias. Se fosse um homem negro, certamente, ele teria outro destino.

A proibição da maconha está ligada a uma perseguição contra pessoas negras e a um projeto de nação que desejava ser embranquecida

A realidade é que a polícia humilha jovens negros a cada enquadro, entra atirando em favelas, mata crianças se justificando em uma ofensiva contra as drogas e comete chacinas executando quem enxerga como elemento suspeito. Essa lógica se repete quando chega a vez do juiz decidir como o sujeito apreendido vai ser classificado (usuário ou traficante). O sistema de justiça é essencialmente branco. Quando o juiz vê o maconheiro com a sua cor, enxerga um semelhante.

A proibição da maconha está diretamente ligada a uma perseguição contra pessoas negras e a um projeto de uma nação que desejava ser embranquecida. O que já foi fumo de negro hoje ganha um tom aceitável ao ser chamado de cannabis. Trata-se de uma espécie de higienização que torna a maconha mais palatável e atraente a investimentos quando desvinculada de pessoas negras. A criminalização do fumo, assim como foi feito com o samba, a capoeira e as religiões de matriz africana, foi e é uma forma de apagamento cultural, contribuindo para um extermínio — que segue em curso tanto de forma simbólica como material.

O Supremo Tribunal Federal, composto por ministros brancos e que segue sem uma ministra negra há 132 anos, debate desde 2015 a descriminalização do porte de maconha e também a quantidade para uso pessoal. Nas prisões femininas, a maioria das encarceradas é de mulheres negras, que poderiam ser reconhecidas como usuárias, presas por tráfico. Boa parte delas são mães e estão longe dos seus filhos. É preciso pensar quais as possíveis reparações que essas mulheres e seus filhos podem vir a receber do Estado.

Enquanto se debate o mínimo, a indústria da cannabis se expande e movimenta bilhões. O que pode forçar uma regulamentação pelo viés econômico. Mas essa bonança não necessariamente chega para as pessoas negras que são as que mais sofrem com o proibicionismo. Quem está movimentando esse mercado são, em sua maioria, brancos que deixam as questões sociais e, sobretudo, raciais em segundo plano — afinal, não são racializados. Somos nós, os outros. Gente como a mãe que precisou tentar fazer o extrato em casa ou outras tantas que choram a morte de filhos executados pelo Estado não são prioridades.

Por mais que esse bolo de dinheiro seja grande, dificilmente pessoas negras vão morder alguma fatia. Não à toa, a mesa que debateu reparação na primeira edição da Expocannabis Brasil, estava marcada para encerrar o evento em um domingo à noite, num fim de festa esvaziado. Ainda lembrando do que cantou Bezerra: “A gente vale o que é e somente o que tem”.

Juliana Gonçalves é jornalista e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos. É especialista em comunicação no Observatório da Branquitude, co-fundadora da plataforma de empoderamento profissional Firma Preta e membra do coletivo Minas da Baixada. Tem passagens pelas redações do Catraca Livre, Rede Globo e The Intercept Brasil.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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