De Mãe Bernadete e Rosa Weber — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

De Mãe Bernadete e Rosa Weber

Sangue da líder quilombola Bernadete, assassinada na Bahia, quase respingou na ministra do STF, Rosa Weber, a qual, havia pouco, encontrara-se com a ialorixá

25 de Agosto de 2023

O fascismo parece ter mandado de novo seu recado: atacou a mulher preta, pobre e desprotegida, já que não conseguiria atingir a autoridade máxima, branca e rica, a presidente do Supremo, Rosa Weber, que esteve com Mãe Bernadete menos de um mês antes do assassinato desta, em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador.

De Marielle Franco a Bernadete, o fascismo continua se dando ao direito de matar país afora, cada vez mais covardemente. E nada mais significativo do que uma visita da presidente da corte máxima do Brasil não intimidar os fascistas que assassinaram uma liderança negra em lugar de conflito fundiário histórico, uma comunidade quilombola, território que, há séculos, desde Zumbi dos Palmares, grita por socorro.

Morta com doze tiros na noite de 17 de agosto último, aos 72 anos, dentro de sua casa e ao lado dos netos, Maria Bernadete Pacífico atuava em defesa dos direitos dos povos de quilombo e terreiro, como liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, a 27 quilômetros de Salvador.

Um choque a brutalidade desse crime, ainda mais porque Bernadete era uma mulher negra tão parecida com a mãe, a tia ou a avó da gente brasileira preta e pobre – a mãe cuidadora, lutadora pelos direitos de seus filhos e de seu povo, pela defesa de seus territórios contra as injustiças e a violência de ontem e de hoje. Ela recebia ameaças frequentes de grupos ligados à especulação imobiliária e à extração ilegal de madeira na região de seu quilombo, que é Área de Proteção Ambiental (APA), os quais ela denunciava.

Nada mais significativo do que Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ter estado naquela mesma região da Bahia em 26 de julho último, para visitar o Complexo Prisional da Mata Escura e o Quilombo Quingoma, onde se reuniu com lideranças quilombolas, entre as quais Bernadete.

Naquela ocasião, a quilombola queixou-se à própria Rosa Weber sobre a intensificação das ameaças de que era vítima. “Hoje eu vivo assim, que eu não posso sair, que estou sendo revistada, minha casa toda cheia de câmeras, me sinto até mal, mas é o que acontece”, disse.

Devido às ameaças, Mãe Bernadete estava supostamente inserida no Programa Estadual de Proteção de Defensores de Direitos Humanos. Ora, e quem dormiu na proteção à ativista baiana? Quem cochilou? Quem fugiu à responsabilidade de protegê-la? Qual força policial dessas brasileiras, treinadas para matar negros e pobres?

Quem dormiu na proteção à Mãe Bernadete?

Quem matou o filho de Mãe Bernadete em 2017? Quem infligiu, já então, tamanha dor àquela mãe? Quem não investigou a morte de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, seu filho, líder quilombola também assassinado a tiros, aos 36 anos de idade? Até hoje o crime não foi solucionado, nem pela polícia da Bahia nem pela Polícia Federal.

No encontro com Rosa Weber, provavelmente de mulher para mulher, de mãe para mãe, Bernadete falou da morte do filho. Eis o relato de Weber sobre o fato: “Mãe Bernadete me falou pessoalmente sobre a violência a que os quilombolas estão expostos e revelou a dor de perder seu filho com 14 tiros dentro da comunidade”.

“É absolutamente estarrecedor que os quilombolas, cujos antepassados lutaram com todas as forças e perderam as vidas para fugir da escravidão, ainda hoje vivam em situação de extrema vulnerabilidade em suas terras”, comentou a ministra após a morte da ialorixá.

Estarrecedor. E o recado do fascismo para Mãe Bernadete foi claro: não ouse, não se meta, não pense que é branca ou tem direitos como gente branca e poderosa, cale a boca, não se envolva com autoridade. O recado fascista é completo, fundado no racismo de cor, na misoginia, na violência política e de gênero, no racismo ambiental e no preconceito religioso.

A uma ouvidora do Ministério das Mulheres, uma liderança de outro quilombo da região afirmou: “Uma liderança quilombola nos falou que escuta dos agressores, grileiros da região, frases como ‘você é muito ousada porque não tinha um cabra macho para lhe dar uma surra’. Isso é violência política contra mulheres”.
Bernadete atuava politicamente. Foi secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho entre 2009 e 2016, e estava à frente de uma associação de 120 agricultores locais de frutas e verduras. Bernadete era um grito de resistência.

O Ministério das Mulheres do atual governo Lula reconhece que chegou atrasado à causa de Mãe Bernadete. Uma comitiva do ministério foi à Bahia “pedir desculpas em nome do Estado brasileiro” à família dela, comprometendo-se a acompanhar de perto o andamento das investigações, para “não deixar impune mais um crime contra uma liderança feminina”.

Nada mais representativo deste Brasil do que Rosa Weber – com toda a elegância de seu corpo branco intocável, das classes dominantes no poder –, após a visita a Lauro de Freitas, ter se dirigido ao Fórum Ruy Barbosa, na capital baiana, onde seria homenageada com uma medalha de honra ao mérito por sua atuação em favor das instituições democráticas – e Bernadete Pacífico, a mãe quilombola, por sua vez, ter sido, pouco tempo depois, assassinada com doze tiros na cara.

Nada mais representativo deste Brasil da extrema desigualdade, da violência de todo tipo contra os excluídos por raça, gênero e classe, nada mais representativo do que o corpo negro de Bernadete Pacífico – encerrada sua “vida severina (aquela vida que é menos vivida que defendida)”, no lamento do poeta João Cabral – nada mais natural do que ter sido seu corpo negro, afinal, conduzido a sua cova, “com palmos medida”, a parte que lhe coube neste perverso latifúndio.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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