Trecho de Livro: Os Perigos de Fumar na Cama, de Mariana Enriquez — Gama Revista

Trecho de livro

Os Perigos de Fumar na Cama

Os monstros que povoam o novo livro de contos de Mariana Enriquez assustam menos do que os abismos emocionais revelados pela autora argentina

Leonardo Neiva 04 de Agosto de 2023

Um terror que é menos sobre sustos e criaturas horripilantes do que sobre a sombria alma humana. Ainda que a frase possa ser aplicada a várias produções recentes do cinema e da literatura, poucas se encaixam tão bem quanto a obra da argentina Mariana Enriquez quando se trata dos abismos obscuros do ser humano e da sociedade. Após os horrores quase ordinários das narrativas de “As Coisas que Perdemos no Fogo” e “Nossa Parte da Noite” (Intrínseca, 2017 e 2021), romance em que o medo sobrenatural se mescla ao ambiente de temor criado pela ditadura, no volume de contos “Os Perigos de Fumar na Cama” (Intrínseca, 2023) Enriquez trabalha os desejos, obsessões e a sexualidade em 12 histórias macabras, marcadas por um subtexto de crítica e fina ironia.

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Publicado originalmente em 2009 na Argentina, a obra foi traduzida para o inglês em 2021, chegando a constar entre os finalistas do prestigiado International Booker Prize. Nela, figuras reconhecíveis do imaginário popular de terror, como bruxas, fantasmas e mortos-vivos — sem contar as tradicionais brincadeiras macabras que nunca terminam bem — dão as caras numa abordagem cotidiana, até corriqueira, em que o espírito que a autora evoca é o do passado recente de violência e repressão na América Latina.

E os perigos do livro, que no Brasil tem tradução de Elisa Menezes, vão muito além do arriscado hábito de tragar um cigarro sobre o colchão. Quem escancara as páginas acaba se deparando com figuras tomadas por sentimentos profundamente humanos, como o ciúme, o orgulho, o ódio e o desejo, a exemplo do personagem maltratado que semeia a desgraça sobre os moradores de um bairro abastado e da jovem com fetiche por homens com doenças cardíacas. Já no conto que abre a coleção, que você lê a seguir, o terror surge de traumas do passado que pareciam estar enterrados e esquecidos para sempre.


O desenterro da anjinha

Minha avó não gostava de chuva e antes que as primeiras gotas caíssem, quando o céu escurecia, ela ia para o quintal com garrafas e as enterrava até a metade, a boca inteira debaixo da terra. Eu a seguia e lhe perguntava: vó por que você não gosta da chuva por quê. E ela nada, evasiva, com a pazinha na mão, franzindo o nariz para sentir o cheiro de umidade no ar. Se finalmente chovia, fosse garoa ou tempestade, fechava portas e janelas e aumentava o volume da televisão até encobrir o barulho das gotas e do vento — o telhado de sua casa era de metal —; e se o aguaceiro coincidia com sua série favorita, Combate, não havia quem conseguisse tirar uma palavra dela, porque estava perdidamente apaixonada por Vic Morrow.

Eu adorava a chuva porque ela amaciava a terra seca e permitia que eu extravasasse minha mania escavatória. Quantos poços! Usava a mesma pá que minha avó, uma bem pequenina, do tamanho que uma criança usaria para brincar na praia, só que de metal e madeira, não de plástico. A terra mais funda abrigava cacos de garrafas de vidro verde, com as bordas tão gastas que já não cortavam; pedras macias que pareciam seixos rolados ou pequenas rochas de praia, por que estariam no quintal da minha casa. Alguém as devia ter enterrado. Uma vez encontrei uma pedra ovalada, do tamanho e da cor de uma barata mas sem patas nem antenas. De um lado era lisa; do outro, sulcos formavam os traços claros de um rosto sorridente. Mostrei a pedra a papai, enlouquecida porque acreditava estar diante de uma relíquia, e ele me disse que as marcas formavam um rosto por acaso. Meu pai nunca se entusiasmava. Também encontrei dados pretos, com os pontos brancos já quase invisíveis. Encontrei restos de vidros foscos verde-maçã e azul-turquesa. Minha avó se lembrou de que haviam sido parte de uma porta velha. Também brincava com minhocas e as cortava em pedacinhos bem pequenos. Não me divertia ver o corpo dividido retorcendo-se um pouco e depois seguindo em frente. Achava que se cortasse bem a minhoca, como uma cebola, sem deixar contato algum entre os anéis, ela não poderia se reconstruir. Nunca gostei desses bichos.

Encontrei os ossos depois de uma tempestade que transformou o quadrado de terra dos fundos em uma poça de lama. Eu os guardei em um balde que usava para levar os tesouros até a pia do quintal, onde os lavava. Mostrei-os a papai. Ele disse que eram ossos de galinha ou de vaca, talvez de algum animal de estimação morto que enterraram havia muito tempo. Cachorros e gatos. Ele insistia que eram galinhas porque antigamente, quando ele era menino, minha avó tinha um galinheiro no quintal.

Parecia uma explicação plausível até que minha avó se deu conta dos ossinhos e começou a arrancar os cabelos e a gritar “a anjinha a anjinha”. Mas, sob o olhar de papai, o escândalo não durou muito: ele aceitava as “superstições” (assim as chamava) de minha avó desde que ela não se excedesse. Ela conhecia o gesto de desaprovação e se acalmou a contragosto. Me pediu os ossinhos e eu os entreguei. Depois pediu que eu fosse para meu quarto dormir. Fiquei um pouco irritada porque não entendia o motivo da penitência.

Encontrei os ossos depois de uma tempestade que transformou o quadrado de terra dos fundos em uma poça de lama

Mais tarde naquela mesma noite, porém, ela me chamou e me contou tudo. Era a irmã número dez ou onze, minha avó não tinha muita certeza, naquela época não se prestava tanta atenção assim às crianças. Havia morrido com poucos meses de nascida, entre febres e diarreia. Como era anjinha, sentaram-na sobre uma mesa adornada com flores, envolta em um pano rosa, apoiada em uma almofada. Fizeram asinhas de papelão para que ela subisse ao céu mais rápido e não encheram sua boca com pétalas de flores vermelhas porque isso deixava mamãe, minha bisavó, impressionada, lhe parecia sangue. Houve dança e canto a noite inteira, e foi preciso até expulsar um tio bêbado e reanimar minha bisavó, que desmaiara de tanto choro e calor. Uma rezadeira indígena cantou triságios e cobrou apenas umas empanadas.

— Isso foi aqui, vó?

— Não, em Salavino, em Santiago. Fazia um calor!

— Então não são os ossos da neném, se ela morreu lá.

— São, sim. Eu os trouxe quando viemos para cá. Não quis deixá-la porque chorava todas as noites, coitadinha. Se chorava com a gente pertinho, na casa, imagina o quanto ia chorar sozinha, abandonada! Por isso eu a trouxe comigo. Eram só ossinhos já. Coloquei-a numa sacola e a enterrei aqui nos fundos. Nem mesmo seu avô sabia. Nem sua bisavó, ninguém. É que só eu a ouvia chorar. Seu bisavô também, mas se fazia de desentendido.

— E aqui a neném chora?

— Só quando chove.

Mais tarde perguntei a meu pai se a história da neném anjinha era verdadeira, e ele disse que minha avó já estava muito velha e delirava. Não parecia muito convicto ou talvez achasse a conversa incômoda. Depois minha avó morreu, a casa foi vendida, eu fui morar sozinha sem marido nem filhos, meu pai ficou com um apartamento em Balvanera, e me esqueci da anjinha.

Até que ela apareceu ao lado da cama, no meu apartamento, dez anos depois, chorando, numa noite de tempestade.

A anjinha não parece um fantasma. Não flutua nem é pálida nem usa vestido branco. Está meio apodrecendo e não fala. Na primeira vez que ela apareceu, pensei que estava sonhando e tentei acordar do pesadelo; quando não consegui e comecei a entender que aquilo era real, gritei e chorei e me cobri com os lençóis, os olhos bem fechados e as mãos tapando os ouvidos para não a escutar, porque naquela época eu não sabia que ela era muda. Mas, quando saí de baixo dos lençóis, algumas horas depois, a anjinha continuava lá, com os restos de uma manta velha sobre os ombros como um poncho. Apontava com o dedo para fora, na direção da janela e da rua, e assim percebi que era dia. É estranho ver um morto de dia. Perguntei o que ela queria, mas, como resposta, ela continuou apontando, como em um filme de terror.

É estranho ver um morto de dia

Eu me levantei e fui correndo até a cozinha, em busca das luvas que usava para lavar a louça. A anjinha me seguiu. Era só uma primeira amostra de sua personalidade exigente. Não tive medo. Com as luvas postas, agarrei seu cangotezinho e apertei. Não é muito coerente tentar enforcar um morto, mas não dá para ser desesperado e sensato ao mesmo tempo. Não lhe provoquei nem uma tosse, só fiquei com os restos de carne em decomposição entre os dedos enluvados e ela com a traqueia à mostra.

Até aquele momento não sabia que se tratava de Anjinha, a irmã de minha avó. Continuava a fechar os olhos com força para ver se ela desaparecia e eu acordava. Como não funcionava, dei a volta e vi, em suas costas, pendendo dos restos amarelados do que agora sei que era a mortalha rosa, duas asinhas toscas de papelão com penas de galinha coladas. Depois de tantos anos deveriam ter desaparecido, pensei, e então ri um pouco histérica e disse a mim mesma que havia um bebê morto na cozinha, que era minha tia-avó e que andava, ainda que pelo tamanho devesse ter vivido apenas uns três meses. Eu definitivamente tinha que parar de pensar em termos do que era possível e do que não era.

Perguntei se ela era minha tia-avó Anjinha — como não haviam tido tempo de registrá-la com um nome legal, era outra época, sempre a chamaram por esse nome genérico —; descobri assim que ela não falava, mas respondia balançando a cabeça. Então minha avó tinha dito a verdade, pensei, não eram do galinheiro, eram ossinhos da sua irmã os que eu desenterrei quando criança.

O que a Anjinha queria era um mistério, porque não fazia nada além de mexer a cabeça afirmativa ou negativamente. Mas alguma coisa ela queria com extrema urgência, porque não só continuava apontando, como também não me deixava em paz. Seguia-me por toda a casa. Esperava por mim atrás da cortina do chuveiro quando eu tomava banho; sentava-se no bidê quando eu fazia xixi ou cocô; parava ao lado da geladeira quando eu lavava a louça; e se sentava ao lado da cadeira quando eu trabalhava no computador.

Continuei levando minha vida normalmente na primeira semana. Acreditava que talvez fosse um pico de estresse com alucinação e que passaria. Pedi uns dias de folga no trabalho, tomei remédios para dormir. A anjinha continuava lá, ao lado da cama, esperando que eu acordasse. Alguns amigos me visitaram. A princípio não quis responder às mensagens nem abrir a porta para eles, mas, para que não ficassem mais preocupados, aceitei vê-los e aleguei estafa mental. Eles compreenderam, você esteve trabalhando feito uma condenada, me diziam. Nenhum deles viu a anjinha. A primeira vez que minha amiga Marina me visitou meti a anjinha no armário, mas, para meu horror e desgosto, ela escapou e se sentou no braço da poltrona, com aquele rosto podre feio cor de azinhavre. Marina nem percebeu.

Pouco depois levei a anjinha para a rua. Nada. Exceto por aquele senhor que a olhou de passagem e então se virou e a olhou de novo e seu rosto se desfigurou, a pressão deve ter baixado; ou pela senhora que saiu correndo em linha reta e quase foi atropelada pelo ônibus 45 na rua Chacabuco. Algumas pessoas tinham que vê-la, eu imaginava, certamente não muitas. Para poupar-lhes o mal-estar, quando saíamos juntas — ou melhor dizendo, quando ela me seguia e não me restava outra opção senão deixá-la me acompanhar —, eu levava uma espécie de mochila para carregá-la (é feio vê-la andar, é tão pequenininha, é antinatural). Também comprei para ela uma bandagem do tipo mais caro para o rosto, dessas usadas para cobrir cicatrizes de queimaduras. As pessoas quando a veem agora sentem nojo, mas também comoção e pena. Veem um bebê muito doente ou ferido, não mais um bebê morto.

As pessoas quando a veem agora sentem nojo, mas também comoção e pena. Veem um bebê muito doente ou ferido, não mais um bebê morto

Se papai me visse agora, eu pensava, ele, que sempre reclamava que ia morrer sem netos (e morreu, eu o decepcionei nisso e em muitas outras coisas)… Comprei brinquedos para ela se entreter, chupetas para morder e bonecas e dados de plástico, mas ela não parecia gostar muito de nada e continuava com o bendito dedo apontado para o sul — me dei conta disso, era sempre para o sul —, manhã, tarde e noite. Eu falava com ela e lhe fazia perguntas, mas ela não conseguia se comunicar direito.

Até que numa manhã ela apareceu com uma foto da minha casa de infância, a casa onde eu havia encontrado seus ossinhos no quintal. Tirou-a da caixa em que as guardo: um nojo, deixou todas as outras manchadas por sua pele podre que se desprendia, úmidas e pegajosas. Agora apontava a casa com o dedo, bem insistente. Você que ir lá, perguntei a ela, e me respondeu que sim. Expliquei que a casa não era mais nossa, que a tínhamos vendido, e ela me respondeu que sim de novo.

Carreguei-a na mochila com a máscara posta e pegamos o 15 até Avellaneda. Ela não olha pela janela durante as viagens, nem olha para as pessoas nem se distrai com nada, dá ao exterior a mesma importância que dá aos brinquedos. Coloquei-a sentada em meu colo para que ficasse confortável, embora eu não saiba se ela é capaz de ficar confortável ou se isso significa alguma coisa para ela, nem sequer sei o que sente. Só sei que não é má e que tive medo dela no começo, mas há muito tempo não tenho.

Chegamos àquela que foi minha casa por volta das quatro da tarde. Como sempre no verão, havia um cheiro forte do córrego e de gasolina na avenida Mitre, misturado ao fedor de lixo. Atravessamos andando a praça, então passamos pelo sanatório Itoiz, onde minha avó morreu, e finalmente contornamos o campo do Racing. Atrás ficava minha antiga casa, a dois quarteirões de distância do estádio. Mas agora que estava na porta, o que fazer? Pedir aos novos proprietários que me deixassem entrar? Com que pretexto? Eu sequer havia pensado nisso. Andar por toda parte com um bebê morto claramente estava me afetando as ideias.

Anjinha foi quem cuidou da situação. Não era necessário entrar. Dava para espiar o quintal pela meia parede, era só o que ela queria, ver o quintal. Nós duas espiamos, ela em meus braços — a meia parede era bem baixa, devia estar malfeita. Lá, onde costumava estar o quadrado de terra, havia uma piscina de plástico azul, embutida em um buraco no chão. Evidentemente, haviam retirado toda a terra para fazer o buraco, e com essa ação tinham jogado os ossos da anjinha sabe-se lá onde, haviam sido revirados, perderam-se. Tive pena, coitadinha, e disse que sentia muito, que não podia resolver a situação; disse até que me arrependia de não os ter desenterrado de novo quando a casa foi vendida, para sepultá-los em um lugar sossegado ou perto da família se ela assim quisesse. Sim, podia tranquilamente ter colocado os ossos dentro de uma caixa ou um vaso e os levado para casa! Agi mal com ela e lhe pedi desculpas. Anjinha disse que sim. Entendi que aceitava as desculpas. Perguntei se agora estava calma e iria embora, se me deixaria em paz. Disse que não. Bom, respondi, e como eu não tinha gostado de sua resposta saí andando rápido até o ponto do 15 e a obriguei a correr atrás de mim com seus pés descalços que, de tão podres, deixavam despontar os ossinhos brancos.

Haviam retirado toda a terra para fazer o buraco, e com essa ação tinham jogado os ossos da anjinha sabe-se lá onde

Produto

  • Os Perigos de Fumar na Cama
  • Mariana Enriquez
  • Intrínseca
  • 144 páginas

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