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Reportagem

A nova onda do cinema de horror brasileiro

Mesmo sem grandes bilheterias, filmes recentes do gênero colecionam elogios ao tratar de temas sociais e cultura regional

Leonardo Neiva 19 de Junho de 2022

A nova onda do cinema de horror brasileiro

Leonardo Neiva 19 de Junho de 2022
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Mesmo sem grandes bilheterias, filmes recentes do gênero colecionam elogios ao tratar de temas sociais e cultura regional

Um homem de barba cerrada e monocelha, imerso em folhagens, encara a câmera e fala diretamente ao público: “O que é a vida? É o princípio da morte.” Foi dessa forma que o famoso personagem Zé do Caixão, criado e interpretado pelo cineasta José Mojica Marins (1936-2020), apareceu pela primeira vez no cinema, em “À Meia-Noite Levarei sua Alma” (1964), deslizando em pouco tempo para o posto de ícone cultural e principal representante do cinema de horror brasileiro.

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Poster do filme “À Meia-Noite Levarei sua Alma”  Divulgação

Mas se o coveiro sádico de unhas longas e vestes escuras, vagamente inspirado na versão do Drácula de Bela Lugosi, voltou recentemente às manchetes com o anúncio de um remake hollywoodiano de suas aventuras macabras, a afirmação antes comum de que o cinema de terror nacional se resume ao Zé do Caixão faz cada vez menos sentido. Filmes produzidos na última década, como “As Boas Maneiras” (2017), “O Animal Cordial” (2017), “Morto Não Fala” (2018), “Skull – A Máscara de Anhangá” (2020) e “A Mata Negra” (2018), entre muitos outros, têm capitaneado uma nova onda do horror nacional, com elogios da crítica e destaque até fora do Brasil — mas que ainda pena para atingir o público para além dos fanáticos pelo gênero.

Embora seja vista como uma época marcada por filmes de terror independentes e de baixo orçamento — categoria em que se inclui o coveiro satânico de Mojica –, o horror brasileiro das décadas de 1960 e 1970 foi um grande sucesso de bilheteria, levando milhões de espectadores aos cinemas, lembra Laura Cánepa, professora de pós-graduação na Universidade Anhembi Morumbi e pesquisadora do cinema de terror no Brasil. Lá atrás, boa parte dessa produção de fantasia e terror se confundia com as pornochanchadas, “com histórias que incluíam altas doses de erotismo, fantasmas, possessões demoníacas e serial killers”.

Se a geração atual de filmes de horror perde feio em números, no entanto, ela ganha disparado quando o quesito é visibilidade, aponta a especialista. E isso acontece especialmente na cobertura da imprensa, que antes era mínima, além do apoio da crítica e até em festivais mundo afora. Mais do que isso, porém, a produção se destaca por surgir após um longuíssimo hiato, em que muito pouca coisa digna de nota foi produzida dentro do gênero. “Até aparecia um filme ou outro, mas eram esparsos. Tem os filmes do Ivan Cardoso, que fez ‘As Sete Vampiras’ em 1986, depois ‘O Escorpião Escarlate’ (1990). Em 2001, teve ‘O Xangô de Baker Street’, uma comédia de serial killer com cenas até bem extremas. Mas era esse tipo de experiência muito solta.”

O cinema brasileiro tem problemas. Seria demais cobrar que o terror fosse capaz de furar esse bloqueio

A pesquisadora também não coloca a falta de bilheteria do horror nacional na conta de um suposto preconceito contra o gênero. Até porque, ela lembra, a baixa frequência de público não é exclusividade do terror made in Brazil. “O cinema brasileiro tem problemas, como pouco tempo de tela e questões comerciais que acabam favorecendo alguns poucos filmes. Seria demais cobrar que justamente o terror fosse capaz de furar esse bloqueio.”

Ela destaca inclusive que produções nacionais têm sido destaque nos streamings, desde “Sem Seu Sangue” (2019), da cineasta Alice Furtado, até “Mate-me Por Favor” (2015), de Anita Rocha da Silveira. O gênero, aliás, está em alta não só no cinema, mas também em séries e podcasts de true crime, a exemplo do Caso Evandro, uma história real que envolve um suposto ritual satanista e alcançou grande repercussão ao ser documentada em ambas as mídias. “Antigamente, tínhamos o Linha Direta, que investigava de OVNIs ao incêndio do Joelma, que por si só é um episódio apavorante. Então isso sempre existiu, mas o streaming deu vida a um número maior dessas obras.”

Para Cánepa, a geração que produz horror hoje teve a oportunidade de crescer nos 1970 e 1980, assistindo filmes de fantasia e terror produzidos por grandes nomes do cinema norte-americano, como James Cameron, Steven Spielberg e Tim Burton. Após uma infância regada a slashers e longas de lobisomens adolescentes, eles teriam passado a compreender e aceitar melhor as particularidades do gênero. O que não significa que hoje se busca copiar ou repetir esses sucessos do passado. Na visão da professora, o que vem acontecendo é o contrário. “É uma outra geração, que faz filmes de horror de forma diferente. Isso não só no Brasil, mas no mundo todo.”

Influências, dos quadrinhos ao Zé do Caixão

Apesar de ter vivido a infância nesse período e ser um dos nomes mais proeminentes do atual cinema de terror nacional, Dennison Ramalho não teve como principal influência nenhum dos nomes citados pela pesquisadora. Na verdade, o que abriu seus olhos para o impacto das narrativas horripilantes não foi nem o cinema. “Quando era criança, tinha muitos quadrinhos de terror nas bancas Brasil afora, principalmente brasileiros, em revistas como ‘Calafrio’, ‘Espectro’ e ‘Mestres do Terror’.” Só mais tarde foi conhecer filmes como os do estúdio inglês Hammer, que contava em seu elenco com os atores Christopher Lee (1922-2015) e Peter Cushing (1913-1994), duas grandes estrelas clássicas do gênero.

Hoje, ele credita ao Zé do Caixão sua motivação para passar de cinéfilo a cineasta. “O cinema do Mojica tem muita afinidade temática e visual com os quadrinhos de terror que eu lia. Então, quando descobri os filmes dele, sofri uma espécie de epifania afetiva.” O impacto foi tanto que, durante a faculdade, Ramalho tratou de conhecer e se tornar amigo do pai do terror brasileiro. E, em 2008, roteirizou “Encarnação do Demônio”, longa que fechou a trilogia do Zé do Caixão mais de quatro décadas depois do lançamento dos dois primeiros filmes. “Não quero desmerecer meu trabalho, mas acho que o Mojica já fez filmes bem melhores. Só que com certeza esse foi o filme mais extremo da sua carreira. Era o principal desejo dele.”

Passo por muita miséria todos os dias na ida ao trabalho, então meu cinema se contamina muito disso

Para o cineasta, que em 2018 dirigiu “Morto Não Fala”, seu primeiro longa de terror, não basta só lançar um filme que assuste e copie fórmulas estrangeiras. É preciso também falar do lugar onde se vive e como o artista enxerga esse mundo. “Eu vejo o mundo desgraçado. Meu escritório é no centro de São Paulo. Vou escrever meus roteiros todos os dias a pé e passo por muita miséria todos os dias na ida ao trabalho, então meu cinema se contamina muito disso.” Essa tendência fica clara no filme, protagonizado por um assistente de legista capaz de conversar com cadáveres. Diariamente, ele precisa lidar com corpos, em sua maioria negros, de pessoas mortas pela polícia ou em conflitos entre facções rivais.

Hoje o sucesso ou fracasso de um filme de terror no Brasil, na visão de Ramalho, não se mede mais por números de bilheteria, coisa que ele considera “mítica” no contexto atual, nem por views em streamings, cujos números têm costume de ser insondáveis. “Nosso termômetro são os fãs do gênero”, sentencia. Portanto, a repercussão em sites especializados de terror, como o famoso Boca do Inferno, podcasts ou mesmo canais específicos de cultura geek é o que dá ao cineasta uma compreensão do que as pessoas estão achando. “Por isso nossa relação com o público é muito difusa. É difícil mensurar se o filme está tendo um bom alcance, porque quase tudo acontece na internet, sem um relatório, análise de performance ou visualizações.”

É difícil mensurar se o filme está tendo um bom alcance, porque quase tudo acontece na internet

Mesmo com as dificuldades, ele lembra que o terror tem a mania de resistir. Assim, num período como a era Collor, quando o cinema brasileiro praticamente deixou de produzir, o gênero continuava de pé, ainda que timidamente. “Tinha um cara que fazia audiovisual de terror no Brasil, o Petter Baiestorf. Ele não filmava em película, fazia filmes trash direto para VHS. Na época, era visto com desconfiança, mas hoje seu trabalho é reconhecido, um cineasta super prolífico que mantém a estética escrota de que ele gosta.”

Cinema sem grana

Baseando-se em influências que iam dos cinemas drive-in e exploitation à música underground, Baiestorf considera seu trabalho um dos principais precursores do gore — “extremamente carregado de sangue, tripas e coisas explícitas” — no cinema brasileiro. Devido às limitações da época, que eram praticamente todas, ele filmava direto em VHS pois não tinha condições de gravar em película, num modelo inspirado pelas demo tapes das bandas underground. “Senão qualquer filme vagabundo ia sair no mínimo pelo preço de um apartamento.”

O cineasta aponta que “O Monstro Legume do Espaço” (1995), um de seus filmes mais badalados, foi feito por cerca de R$ 8 mil, em valores atualizados. O longa, gravado na pequena Palmitos (SC) — município de pouco mais de 16 mil habitantes que foi cenário de boa parte da produção de Baiestorf –, conta a história de um alien vindo do Planeta Leguminoso, cheio de ideias anarquistas e um ódio profundo da humanidade, que massacra todos os humanos que encontra pela frente até se deparar com uma mulher que considera perfeita para gerar um filho seu. Num dos momentos mais marcantes do longa, um dos personagens veste as vísceras de um companheiro morto como colar e se banha em seu sangue.

Fotos de produção do O Monstro Legume do Espaço (1995)  Reprodução

Sem distribuição oficial, os filmes do diretor eram oferecidos ao público na seção de cartas de uma revista de heavy metal. As fitas eram enviadas pelo correio e vendiam aos milhares por todo o Brasil, cobrindo facilmente os baixíssimos custos de produção. Para se ter uma ideia, seu primeiro filme de zumbi, “Zombio” (1999), se pagou já na primeira exibição, que ocorreu num bar lotado com mais de 450 pessoas. Embora tenha começado a fazer filmes com um pouco mais de recursos — “Zombio 2” (2013) custou R$ 75 mil –, Baiestorf não dirige um longa desde 2016, devido aos custos que as produções atuais demandam. Principalmente, ele frisa, no período pós-eleição de Bolsonaro.

O cineasta, que em 2021 publicou uma segunda edição do seu livro “Manifesto Canibal”, onde ensina os passos para filmar sem nenhuma grana em tempos de crise, considera que as oportunidades hoje são muito maiores do que no seu tempo. “O celular que estou usando para conversar contigo é melhor do que qualquer câmera com que filmei de 2010 para trás.” Por outro lado, na opinião dele, isso gera uma oferta muito grande de conteúdo, o que torna necessário se diferenciar de alguma forma. Mas Baiestorf diz ser fã da atual geração do horror nacional, que, em suas palavras, tem sabido usar as ferramentas à disposição e abordar temas de destaque. “Só gostaria que a gente tivesse uma estabilidade econômica para produzir muito mais”, confessa.

Coragem, crítica social e resiliência

Para o roteirista e diretor especializado no gênero Armando Fonseca, o que destaca a atual geração de jovens produzindo terror no Brasil é a coragem de dar a cara para bater. “Por muito tempo, foi muito difícil filmar. O que a gente vê é a coragem dessa molecada de mostrar que é possível.”

Um dos nomes à frente do slasher “Skull – A Máscara de Anhangá”, Fonseca teve que superar a recepção morna do longa no Brasil em pleno auge da pandemia para ganhar prêmios e elogios em festivais do gênero mundo afora. Entre os principais pontos da produção que agradaram os gringos estão os efeitos práticos, que potencializam as cenas gore — Fonseca e o codiretor Kapel Furman são especialistas em efeitos especiais e comandam o “Cinelab”, reality show focado no assunto –, e a abordagem de uma mitologia pré-colombiana, que explica a sede de vingança do monstrão do título. “Não é uma história eurocêntrica sobre um vampiro da Transilvânia ou um lobisomem europeu. Os gringos em geral acharam muito interessante e quiseram aprender mais sobre aquela mitologia.”

‘O Animal Cordial’ fala de um Brasil atual que está explodindo de raiva, com os preconceitos muito para fora e os monstros vindo à tona

Apesar das inspirações inevitáveis e elementos tirados de cinemas de horror pelo mundo, a produção brasileira tem se mostrado bastante original e resistente a comparações, diz a historiadora e pesquisadora de cinema de terror Gabriela Larocca. Um dos principais exemplos seria o filme “O Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, uma das principais representantes do horror nacional hoje. Na história, um restaurante de classe média sofre um assalto que coloca em xeque as estruturas de poder dentro do estabelecimento. “Tem toda uma questão de slasher, de um filme de horror psicológico, mas sem deixar de lado essa dinâmica da classe média brasileira. Apesar da inspiração de fora, o produto vem com uma identidade própria.” Para a especialista, o longa se inscreve numa onda global de terror que aborda questões culturais e sociais mais sérias em meio aos sustos ocasionais.

A gente enfrenta uma crise de falta de fomento ao audiovisual, mas o horror sobrevive e continua

Citada por praticamente todos os entrevistados para a reportagem, Almeida diz que seu filme trazia um risco alto, especialmente por apresentar uma violência gráfica ligada à classe média, e não a confrontos em comunidades, mais comuns no cinema nacional. “Ele fala de um Brasil atual que está explodindo de raiva, com os preconceitos muito para fora e os monstros vindo à tona.” Segundo a cineasta, o longa teve pouquíssimos espectadores no cinema, mas ganhou sobrevida no catálogo da Netflix. “Me deixa bastante feliz como artista ter apostado em algo tão arriscado, mas que teve eco ao longo dos anos.” Amaral se integra a uma corrente de cineastas periféricos, como mulheres latino-americanas e diretores asiáticos, que ganham voz no cinema por meio de um gênero considerado menor e barato. “Mas que de barato não tem absolutamente nada”, acrescenta. Seus filmes estariam refletindo o momento incerto vivido no Brasil e no mundo, com a ascensão da direita, dúvidas e ansiedades que encontram um lar no terror. “No fundo, no fundo, estamos todos com medo.”

Caso precisasse cumprir a ingrata tarefa de definir o terror brasileiro em uma palavra, Larocca escolheria resiliência. Ela reforça a dualidade de um gênero rejeitado por boa parte do público, mas que, ao mesmo tempo, também tem os fãs mais fiéis que existem. “Eles consomem, vão em festival, dão um jeito de assistir ao filme mesmo que esteja num circuito mais limitado.” Até por isso, a pesquisadora compara a trajetória do terror a um de seus principais ícones: o zumbi. “A gente enfrenta uma crise de falta de fomento ao audiovisual, mas o horror sobrevive e continua, nem que seja em pontos mais isolados. Ele sempre segue vivo, ou melhor, morto-vivo.”