Trecho de Livro: Gótico Nordestino, de Cristhiano Aguiar — Gama Revista

Trecho de livro

Gótico Nordestino

Em livro de contos, escritor paraibano Cristhiano Aguiar mescla o terror a elementos típicos da cultura popular nordestina

Leonardo Neiva 11 de Fevereiro de 2022

Um cangaceiro desalmado, um mundo tomado por onças inteligentes e carniceiras, uma avó que retorna dos mortos… Com narrativas que encontram nesses e em outros pontos inusitados seu tema central, o escritor paraibano Cristhiano Aguiar mescla elementos do gótico, da fantasia e do terror ao folclore tradicional do Nordeste brasileiro em nove contos que a um mesmo tempo surpreendem, divertem e aterrorizam.

Também crítico literário e professor de literatura da Universidade Mackenzie, ele aproveita o mote de seu novo livro, “Gótico Nordestino” (Alfaguara, 2022), para viajar desde os tempos do cangaço até a ditadura militar e um pouco mais além, imaginando futuros distópicos e sombrios. Além da obra recém-lançada, Aguiar também é autor de “Na Outra Margem, o Leviatã” (Lote 42, 2018), com narrativas fantásticas inseridas num contexto urbano, e “Narrativas e Espaços Ficcionais: Uma Introdução” (Mackenzie, 2017), que explora a importância dos cenários e contextos dentro dos estudos literários.

Recorrendo constantemente à cultura pop, com referências que vão de histórias em quadrinhos a filmes, programas de TV e games – de Pokémon à HQ “Monstro do Pântano” –, o autor cria um caldeirão de gêneros e tradições. Mas, em vez de tornar estrangeiros elementos da cultura nacional, ele opta por fazer o caminho inverso, se apoderando de estilos e clichês tradicionalmente internacionais e traduzindo-os para a realidade brasileira. Mais especificamente, a nordestina.


As onças

Na mesa da cozinha, as novas coisas essenciais: o facão manchado, gaze, analgésicos, luvas, metros de corda resistente, linha e agulhas cirúrgicas.

— Vamos, Diana, tá na hora de comprar o remédio do papai.

Não houve resposta.

A mãe de Diana estava na cozinha, iluminada apenas por um abajur. Desde que as portas da cidade tiveram de ser fechadas, a mãe passou a se irritar com a luminosidade. Nisso, contrariava as recomendações dos especialistas. Quem se aventurasse pelas ruas, naquele crepúsculo, encontraria tanto casas quanto lojas com janelas e portas cerradas, mas com todas as lâmpadas acesas. Algumas famílias chegaram ao ponto, talvez exagerado, de ter trocado as lâmpadas usuais por outras mais potentes. A mãe imaginava as pessoas insones, olhos arregalados, esperançosas de que as luzes intensas espantassem a invasão das onças.

— Diana? Diana…?

Perto de uma das portas da cozinha, reforçada com novas trancas recém-instaladas, piscava a luz vermelha do dispositivo de alarme. Algumas das onças eram espertas e conseguiam burlar mesmo isso. Sabia que cada saída era um risco, mas os suprimentos começavam a faltar na casa. Sair significava pensar num plano estratégico e ponderar riscos e fugas. Muitos a julgavam por levar a filha a tiracolo pela cidade. A mãe convenceu a si mesma de que não existia outra opção. Todos sabiam dos boatos recentes de onças dilacerando crianças deixadas sozinhas em casa… Onças abrindo portas. Além disso, Diana, desde criancinha, se revelou uma garota muito esperta. No momento em que mãe e filha colocavam os pés na calçada, Diana passava a vigiar os telhados. Ela conseguia perceber nuances de som e movimento, ou o piscar do brilho da lua nos olhares felinos. O que é uma filha, afinal? Anjinho, arma, continuidade, salvação? Diana apreciava — coração aos pulos — o faz de conta de ser uma caçadora nas esquinas contaminadas.

— Diana!

— Já vou, mamãe! Tô aqui com o papai!

Piscava a luz vermelha do dispositivo de alarme. Algumas das onças eram espertas e conseguiam burlar mesmo isso

A mãe tocou com cuidado na sua cicatriz recente. Começava pouco abaixo do olho esquerdo e continuava por todo o pescoço. Correu o risco de morrer de tanto sangrar, o golpe por pouco não lhe cegou um dos olhos. Lembrou, com um meio-sorriso, de Diana perguntando se o papai doente tinha voltado de vez pra casa.

— Não, filha, a gente só pegou o papai emprestado.

Ela não enxergava qualquer nobreza na decisão de abrigá-lo. Na verdade, depois de tudo, a mãe se permitia poucas coisas. A casa, a filha, o ex-marido doente. Isso dilatava os dias. A noite, a tarde e a manhã, nada mais lhe contavam. Seu coração era um fóssil. Respirar, respirar, caminhar, comer, defecar — proteger a cria a qualquer custo! E proteger significava, em primeiro lugar, não morrer nem ser devorada.

Geladeira: caixa de leite, garrafas de água, um pouco de queijo, presunto, algumas verduras, iogurtes coloridos para Diana. A casa, antiga, de passado próspero, era grande o suficiente para ter uma ampla despensa — pacotes de arroz, feijão, macarrão, doces e salgadinhos. Caminhou em um passo silencioso e escuro. Seu repúdio às fortes luzes a fez distribuir pela casa abajures e castiçais com velas. Inspecionou as janelas — tábuas de madeira e pregos grossos de ferro —, inspecionou as duas salas. Havia, diziam, cuidados domésticos específicos a serem tomados que podiam afugentar as onças. Todo dia, enquanto Diana brincava sozinha no quarto ou via TV, a mãe iniciava uma procissão doméstica, reforçando travas, tábuas, testando os alarmes, aspergindo nas portas, nas janelas, no quintal, sprays aromáticos e produtos de limpeza cujo odor e propriedades químicas, assim esperava, causavam aversão às onças.

Subiu as escadas. O corredor dos quartos, no segundo andar, estava escuro, exceto pela lanterna de Diana. Sentada no chão, a menina, com seu vestido branco e sandálias nos pés, segurava um livro e o lia em voz alta. Volta e meia, interrompia a leitura e encarava a porta fechada do quarto diante do qual se postava. A garota não deu sinais de ter notado a aproximação da mãe. A luz da lanterna criava uma concha de luminosidade ao redor da menina. As trevas rodopiavam e se curvavam em volta de um minúsculo castelo prateado. A mãe se via, numa manhã, brincando no quintal. A lembrança era tão antiga, mas tão antiga, que podia ser inventada. Talvez tivesse sonhado e feito, sem querer, a costura do sonho com a vida vivida.

Aquela casa pertencia à sua família há gerações; ali nascera, ali consolidara herança e semente. Criancinha, a mãe observava o quintal. Parecia enorme! De repente, se percebeu sozinha. Deu os primeiros passinhos. Olhou para trás — ninguém. Nem pai, nem mãe, nem a babá e as empregadas, nem a avó. Amava correr, mas tinha medo — o quintal terminava muito muito pra frente, terminava em mistério. Andou mais um pouco, encolheu o passo. Olhou para trás outra vez. Não estava mais sozinha. Uma figura feminina, de face impossível de enxergar, dizia, num tom de voz grave, voz raspada com esfregões intensos de uma esponja metálica:

“Vai, vai, corre menina.”

Torceu para que as tábuas do corredor não rangessem.

Via Diana como feita de um vidro delicado.

Sua filha andava com extremos de irritação, ou de choro. Tiveram que voltar a dormir juntas na mesma cama. Houve momentos de febre, também. Diana delirava sobre onças, monstros. E morte. Mesmo naquela condição, a volta do pai, precisava admitir, teve um efeito bom na criança. Ela passou até a se alimentar melhor.

Dane-se qualquer orgulho — se for melhor que ele fique, que fique!

— Diana… — sussurrou. — Filha…?

“Psiu!”

Terminava a sua história:

— … e a princesa, depois de jogar o sapo na parede, eca!, viu que ele, papai, se transformou num lindo príncipe! E aí se casaram e viveram felizes pra sempre!

Diana fechou, satisfeita, o livro, se ergueu do chão e deu um beijo na porta.

— Tchau, papai! A gente vai comprar seu remedinho.

A porta estava trancada por fora. De maneira discreta e submissa, o pai se fez ouvir.

Com alguma força, a mãe pegou no braço da filha e a puxou dali.

O ar, ou a luminosidade, ou não sabemos se certa dança-jogo entre luz e sombras, enfim, algo na paisagem da rua emanava aquela desconfortável, porém sutil, eletricidade — a certeza do quanto, sobre nossas cabeças, paira uma ameaça.

A mãe podia, sim, sentir aquilo na pele.

Fazia alguns dias que não colocavam os pés para fora de casa. É como se a cidade sequer existisse até a entrada em cena de Diana e sua mãe. A rua, a cidade e suas onças invasoras eram esse livro que se abre e do qual depois se esquece. A mãe sempre gostava de monitorar as reações iniciais da filha. A menina primeiro se punha alerta, à procura de qualquer vestígio, na rua, de uma onça. Depois, relaxava. Por fim, um reconhecimento triste — havia uma rua, ela era real? — atravessava o rosto da filha.

Moravam em uma cidade pequena e turística, famosa pelos quarteirões preservados do seu bairro histórico. A mãe nasceu, se criou e agora tinha medo de ser devorada ali. Os únicos anos em que ficou afastada da cidade e da casa foram os seus tempos de faculdade de medicina. Sua família ainda tinha posses, embora não mais como nas glórias passadas de galpões e comércios de tecidos e roupas. A rua estava morna e quieta. Era razoavelmente larga e pavimentada com pedras irregulares. A mãe sempre amou a pavimentação da sua rua. Nesses novos tempos, isso era um problema — não seria fácil correr naquele chão. A casa de Diana e sua mãe fazia parte do casario colonial do bairro, quase todo preservado por empresários ou famílias endinheiradas.

Antes das onças, as calçadas de ambos os lados da rua estariam ocupadas com mesinhas e cadeiras; pessoas de todas as idades bebendo, conversando, fumando, flertando; frequentadores e turistas dos vários bares e restaurantes dali, de cores e aromas deliciosos que cortam a madrugada.

Havia relatos de milicianos assaltando casas, ou cobrando aluguel de proteção, ou rondando e estuprando algumas mulheres nas ruas

Artistas de rua fariam malabarismos e apresentações musicais; artesãos, de origem indígena ou local, colocariam seus tapetes no chão e venderiam sua arte e seus penduricalhos; os pedintes também por ali passariam e estenderiam suas mãos negras e pardas em busca de trocados dos visitantes e moradores, quase todos brancos. Pediriam com medo, pediriam às escondidas. Porque todos sabiam — a mãe de Diana fechava olhos e ouvidos a essas histórias terríveis — dos grupos de milícias que tinham por hábito fazer, periodicamente, sua limpezinha.

Mas e agora? Nada.

Nada, ninguém.

Nada.

Só o morno — em suspensão.

Melhor não chamar a atenção delas. A mãe sabia, contudo, que, quando as onças decidem pegar você, não adianta correr. Ao longo da caminhada pela rua, as duas teriam de passar por três esquinas antes de chegar numa das duas praças principais do bairro, onde ainda funcionavam serviços essenciais como farmácias, delegacia e um mercado. Usavam tênis de corrida, cujas solas as duas recobriram com tecido acolchoado. Mais uma vez, elas notavam que continuava o contraste estranho que tanto chamou atenção de Diana nas primeiras saídas. Olha, mãe, olha que engraçado, ela dizia, apontando algumas das casas com os dedos. Porque a fraqueza do crepúsculo, somada em seguida com a noite recém-chegada, era o espelho invertido das casas que irradiavam aquela intensidade das lâmpadas acesas. Portas e janelas fechadas com tábuas e trancas de metal; por entre as frestas, entretanto, das janelas e das portas, luz pulsando, a luz acolhendo as presas insones.

Alguns postes funcionavam; outros, não. Na frente de várias das casas e estabelecimentos, aglomeração de lixo, sacos plásticos em frêmito intermitente.

Diana fez um gesto assustado, para chamar a atenção da mãe.

Movimento.

As duas se puseram em alerta.

Diana apertou o braço da mãe.

O facão, firme no punho. Aparece! Aparece, bicho de merda.

Mas o bicho também pode ser humano. Havia relatos de milicianos assaltando casas, ou cobrando aluguel de proteção, ou rondando e estuprando algumas mulheres nas ruas. A bandidagem comum também podia aparecer. Por outro lado, o rádio e as mensagens dos celulares garantiam que tudo estava sob controle. Sem dúvida, tanques patrulhavam as ruas. Soldados armados e protegidos com coletes, máscaras e capacetes podiam ser vistos, embora não com a frequência necessária. Aquilo até lembrava a sua adolescência no início dos anos 80, quando fumava maconha escondida na casa dos colegas de movimento estudantil e frequentava um bar, perto dali, que tocava vinis subversivos, e volta e meia sofria batidas dos militares. Bastava dobrar a esquina, depois entrar numa viela mais à frente. O bar ficava por ali. Tempos depois, foi incendiado. Depois, virou uma loja de eletrônicos. Por fim, uma igreja, cujo pastor fundador, ela tinha lido pouco antes de as onças chegarem, quando ainda circulavam jornais e revistas, usava tornozeleira eletrônica.

À direita, dobrando a esquina… Todos os postes apagados — somente duas casas fulguravam por entre as frestas.

Movimentos, algo corpulento. Sim, algo ali.

— Mãe…?

— Psiu. Quieta.

Diana tinha talentos e alma de artista. De início, a mãe quis reprimi-la, em especial por pressão do pai, quando ainda casados. Um dos desenhos mais bonitos de Diana consistia numas formas em movimento, os tons de cores combinando o azul-marinho, um tom de chumbo inventado pela menina e um tom de negro (quando Diana pincelava o negro, ela era delicada e se tornava, aos olhos da mãe, uma transfiguração de fada). Os movimentos do desenho sugeriam os corpos das onças, que aos olhos de Diana reencarnavam nas folhas grossas de papel como seres híbridos de movimento e fumaça. O que estava na escuridão da esquina, se movendo, respirando e à espreita, era isso que Diana desenha e transfigurava.

As instruções de segurança foram seguidas. A mãe ergueu os braços, fez movimentos bruscos, bufou; sacudiu a lâmina acima de sua cabeça; deu pequenos saltos. Quem a observasse de longe (e havia olhares à espreita nas janelas das casas) poderia compará-la a uma marionete. Diana também contribuía: gritava e piscava sua lanterna, enquanto a balançava aleatoriamente. Trancadas em casa, as duas escutavam, de vez em quando, à distância, o barulho agora feito por elas.

Funcionou. Coincidência?

Ninguém compreende direito aquelas onças. Já se sabe de onde vêm, e quando. Mas o que querem, além de ocupar, devorar e se reproduzir?

Não são onças comuns, de forma alguma. Sua presença se espalha pelas cidades do país e ameaça contaminar outros países também. Demonstram inteligência e brutalidade sem precedentes; por outro lado, têm fobias e hábitos de comportamento não observados em nenhuma espécie de felino conhecida.

Sim, a mãe respirou aliviada, acho que funcionou. E nas trevas? O morno, outra vez.

Prosseguiram.

Às vezes falava uma língua diferente, que não podia ser coisa de gente

No quarteirão seguinte, aquela casa. Ainda abandonada. Por mais urgente que a caminhada fosse, tanto Diana quanto a mãe sempre lançavam, mesmo que breve, um olhar na sua direção. Para Diana, a casa lembrava os castelos malignos dos seus gibis e desenhos animados; a casa, para a mãe, puxava o tapete da vida adulta, revelando um alçapão sempre aberto. Nem era uma memória feliz. Não era, também, algo que considerasse um trauma, ou um momento marcante. A casa apenas vinha.

A casa do vampiro.

Assim ela e as amiguinhas e os amiguinhos a chamavam. Uma das diversões consistia em jogar pedras nas janelas e correr a toda a velocidade. Também corriam quando o sr. Khalil, o dono da casa, se aproximava. As próprias famílias, bem discretamente, aconselhavam os filhos a evitar contato com o libanês. Khalil era dono de um comércio no bairro histórico e de dois restaurantes de comida barata nos bairros vizinhos. Às vezes falava uma língua diferente, que não podia ser coisa de gente. E, todos comentavam aos sussurros, não era cristão. Casou-se e teve duas filhas, que herdaram a casa. Desde a epidemia das onças, elas, porém, tinham sumido do mapa. Fugiram? Assassinadas, sequestradas, devoradas? A mãe só sabia que a casa tinha sido, de repente, abandonada. Agora lembrava uma casca, uma carapaça, algo que os insetos largam e esquecem para sempre.

Produto

  • Gótico Nordestino
  • Cristhiano Aguiar
  • Companhia das Letras
  • 136 páginas

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