Trecho de Livro: Conto de Fadas, de Stephen King — Gama Revista

Trecho de livro

Conto de Fadas

Em novo livro, Stephen King mescla horror e fantasia na saga de um jovem por um universo paralelo em busca da cura para sua cachorrinha

Leonardo Neiva 28 de Outubro de 2022

Uma casa enorme e caindo aos pedaços, no melhor estilo “Psicose”, habitada apenas por um idoso misterioso e rabugento, ao lado de sua fiel cadela de estimação. É dessa imagem tradicional em histórias de terror que parte “Conto de Fadas” (Suma, 2022), lançamento mais recente do mestre do gênero, o americano Stephen King. Mas, se a história se inicia com o que parece ser uma casa assombrada, o autor de clássicos como “Carrie” (1974) e “Cemitério Maldito” (1983) lança mão de toda sua fértil imaginação para guiar o leitor por uma narrativa fantástica, com reviravoltas inesperadas a cada curva do caminho.

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Constante como o Dia das Bruxas, o fã de horror só tem uma certeza na vida: que todo ano tem livro novo de King – nos últimos, têm sido dois em média. Além de um escritor extremamente prolífico, suas obras também vêm ganhando destaque nas telas, com filmes como “It – A Coisa” (2017), “Jogo Perigoso” (2017) e “Doutor Sono” (2019). Só neste ano, os fãs puderam assistir a “Chamas da Vingança” e “O Telefone do Sr. Harrigan”. Há também inúmeros outros trabalhos em processo de adaptação, incluindo um longa inspirado em “Conto de Fadas”.

Numa mistura de terror e fantasia, este último lançamento acompanha a jornada do jovem Charlie Reade, que, após salvar um vizinho idoso que sofreu um acidente, acaba descobrindo um portal para outro universo. Por lá, ele se envolve numa luta sangrenta do bem contra o mal, enquanto tenta resgatar a cachorrinha Radar. Essa sinopse, no entanto, diz pouco sobre a escrita inventiva de King. Para os mais corajosos, o Halloween pode ser uma oportunidade de se aventurar por mais um romance do maior ícone da literatura de horror.


A querida e saudosa Hillview High! Parece que foi há tanto tempo. No inverno, eu ia de ônibus, sentado no fundo com Andy Chen, meu amigo desde o ensino fundamental. Andy era um atleta que foi jogar basquete na Universidade Hofstra. Bertie já tinha ido embora, se mudado. O que foi uma espécie de alívio. Existem bons amigos que também são, ao mesmo tempo, maus amigos. Na verdade, Bertie e eu éramos ruins um para o outro.

No outono e na primavera, eu ia de bicicleta, porque nós morávamos em uma cidade cheia de colinas e essa era uma boa forma de desenvolver força muscular nas pernas e nas costas. Também me dava tempo para pensar e ficar sozinho, algo de que eu gostava. Da escola, o caminho para casa era pela rua Plain, avenida Goff, depois rua Willow até a Pine. A rua Pine era cortada pela Sycamore no alto da colina que levava à maldita ponte. E na esquina da Pine com a Sycamore ficava a Casa do Psicose, batizada assim por Bertie Bird quando nós tínhamos só dez ou onze anos.

Na verdade, era a casa dos Bowditch. O nome estava na caixa do correio, apagado, mas ainda legível se você olhasse bem. Ainda assim, Bertie tinha certa razão. Nós todos tínhamos visto o filme (além de outros essenciais para garotos de onze anos, como O exorcista e O enigma do outro mundo), e parecia mesmo a casa em que Norman Bates morava com a mãe morta. Não era parecida com nenhum dos sobradinhos nem com as casas térreas de estilo rústico na Sycamore e no restante do bairro. A Casa do Psicose era uma construção vitoriana incoerente de telhado inclinado que provavelmente tinha sido branca, mas agora estava desbotada em um tom que eu chamaria de cinza gato-selvagem. Havia uma cerca branca antiquíssima contornando a propriedade, torta em algumas partes e frouxa em outras. Um portão baixo enferrujado interrompia a pavimentação rachada do caminho de entrada. A grama era basicamente tomada por ervas daninhas descontroladas. A varanda parecia se soltar aos poucos da casa à qual pertencia. Todas as persianas estavam fechadas, o que Andy Chen dizia que não tinha sentido, já que as janelas estavam sujas demais para se conseguir enxergar lá dentro. Meio enterrada no mato alto, havia uma placa com os dizeres NÃO ENTRE. No portão, em uma placa maior, lia-se CUIDADO COM O CÃO.

E na esquina da Pine com a Sycamore ficava a Casa do Psicose

Andy tinha uma história sobre aquele cachorro, um pastor-alemão chamado Radar, como o cara do seriado MAS*H. Nós todos já tínhamos ouvido (sem saber que Radar, na verdade, era fêmea) e visto o animal de longe algumas vezes, mas Andy era o único que o vira de perto. Ele disse que parou a bicicleta naquele dia, porque a caixa de correio do sr. Bowditch estava aberta e tão cheia de cartas e folhetos que algumas tinham caído na calçada e estavam começando a voar.

— Eu peguei as cartas e enfiei dentro da caixa, junto com o resto das outras porcarias — disse Andy. — Eu só estava tentando fazer um favor, caramba. Aí, ouvi um rosnado e um latido que pareciam dizer YABBA-YABBA-ROW-ROW, levantei o olhar e lá vinha aquela porra de cachorro monstruoso, devia pesar uns sessenta quilos pelo menos, todo dentes e baba voando, e as porras dos olhos vermelhos.

— Claro — disse Bertie. — Cachorro monstruoso. Tipo o Cujo naquele filme. Seeeei.

— Era — disse Andy. — Juro por Deus. Se não fosse o velho gritando com ele, ele teria atravessado aquele portão. Que está tão velho que precisa de apresentadoria.

— Aposentadoria.

—É, tanto faz. Mas o velho saiu na varanda e gritou: “Radar, no chão!”, e o cachorro se deitou na mesma hora de barriga no chão. Só que não parou de olhar para mim e não parou de rosnar. E aí o cara fala, ele fala assim: “O que você está fazendo aí, garoto? Está roubando minhas cartas?”. E eu falo: “Não, senhor, estavam voando e eu fui pegar. Sua caixa de correio está lotada, senhor”. E ele fala, ele fala assim: “Deixa que eu me preocupo com a minha caixa de correio e você só sai daí”. E foi o que eu fiz. — Andy balançou a cabeça. — Aquele cachorro teria rasgado minha garganta. Eu sei.

Eu tinha certeza de que Andy estava exagerando, ele costumava fazer isso, mas perguntei ao meu pai sobre o sr. Bowditch naquela noite. Meu pai disse que não sabia muito sobre ele, só que era um solteirão convicto que vivia naquela casa decrépita fazia mais tempo do que meu pai vivia na rua Sycamore, o que já tinha vinte e cinco anos.

Levantei o olhar e lá vinha aquela porra de cachorro monstruoso, devia pesar uns sessenta quilos pelo menos, todo dentes e baba voando…

—Seu amigo Andy não foi o único garoto com quem ele gritou — disse meu pai. — Bowditch é conhecido pelo mau humor e pelo pastor-alemão igualmente mal-humorado. O conselho municipal adoraria que ele morresse logo para poder derrubar aquela casa, mas até agora ele está firme e forte. Eu falo com ele quando o vejo, o que é raro, e ele parece educado, mas eu sou adulto. Alguns idosos têm alergia a crianças. Se quer um conselho, diria pra ficar longe dele, Charlie.

O que não foi um problema até aquele dia em abril de 2013. E vou falar disso agora.

Parei na esquina da Pine com a Sycamore a caminho de casa depois do treino para soltar a mão esquerda do guidão e a sacudir. Ainda estava vermelha e latejando por causa dos treinos da tarde no ginásio (o campo ainda estava enlameado demais para jogar). O treinador Harkness, que era do beisebol e do basquete, me botou primeiro com uma série de garotos que estavam fazendo teste de arremessador. Alguns jogaram com muita força. Não vou dizer que o treinador estava se vingando de mim por eu me recusar a jogar basquete (os Hedgehogs perderam de 5-20 na temporada anterior), mas também não vou dizer que não estava.

A casa vitoriana decrépita do sr. Bowditch estava à minha direita e, daquele ângulo, parecia a Casa do Psicose mais do que nunca. Eu estava fechando a mão em volta do guidão esquerdo, pronto para sair pedalando, quando ouvi um cachorro soltar um uivo. Veio de trás da casa. Pensei no cachorro monstruoso que Andy tinha descrito, todo cheio de dentes grandes e olhos vermelhos acima da mandíbula com baba, mas aquilo não era um YABBA-YABBA-ROW-ROW de um animal cruel de ataque. Parecia triste e assustado. Talvez até arrasado. Já pensei nisso, me perguntei se é por causa da lembrança, mas decidi que não é. Porque soou de novo. E uma terceira vez, mas baixo e meio que sem fôlego, como se o animal que emitia o ruído estivesse pensando de que adianta.

Se não fosse o cachorro uivando, eu teria descido a colina até a minha casa, tomado um copo de leite com meia caixa de Pepperidge Farm Milanos, feliz pra cacete

E aí, bem mais baixo do que o último uivo:

— Socorro.

Se não fosse o cachorro uivando, eu teria descido a colina até a minha casa, tomado um copo de leite com meia caixa de Pepperidge Farm Milanos, feliz pra cacete. O que teria sido bem ruim para o sr. Bowditch.

Estava ficando tarde, as sombras estavam aumentando e se aproximando da noite, e aquele abril foi bem frio. O sr. Bowditch poderia ter ficado lá a noite toda. Eu levei o crédito por salvá-lo — o que teria sido outro ponto alto para o currículo, se eu quisesse jogar a modéstia longe e incluir o artigo de jornal publicado uma semana depois –, mas não fui eu, não de verdade.

Foi Radar que o salvou com aqueles uivos arrasados.

Produto

  • Conto de Fadas
  • Stephen King
  • Suma
  • 624 páginas

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