A Repetição
Lançado em meio a crise dos Yanomami, livro do escritor e antropólogo Pedro Cesarino evoca um passado e presente de exploração dos povos indígenas no Brasil
A profunda crise sanitária que vem se abatendo sobre os indígenas Yanomami, após seguidas demonstrações de descaso do governo Bolsonaro, é mais um evento que joga luz sobre as péssimas condições de vida de boa parte dos indígenas brasileiros. Expostos à violência, à desnutrição e à invasão sistemática de suas terras por garimpeiros, eles ainda não foram beneficiados por políticas prioritárias de proteção nos últimos governos federais. Embora não fale especificamente sobre o caso, o novo livro do escritor e antropólogo Pedro Cesarino, “A Repetição” (Todavia, 2023), lança um olhar sobre a violência e exploração econômica histórica contra os povos indígenas.
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A obra do autor de “Rio Acima” (Companhia das Letras, 2016) reúne duas novelas distintas, mas que abordam temas semelhantes. Os protagonistas de ambas as histórias enfrentam dilemas sobre a verdade, perpassando nossa herança de escravidão e violência racial. Na primeira delas, um jovem da floresta tenta compreender o comportamento considerado estranho de seu tio, Totanauá, o primeiro indígena de seu povo a aprender a ler. Já a história seguinte se desenrola numa metrópole dominada pelo contágio de uma doença mortal, em que os sonhos revelam um passado cruel que serviu de alicerce para a construção da cidade.
Baseando seus relatos de ficção em fatos, estudos e documentos históricos, Cesarino cria narrativas que soam ao mesmo tempo reais e fantásticas, abordando pontos centrais dos pensamentos indígena e afrocentrado. Seja através do jovem que, diferente de todos ao redor, não considera louco seu tio por ser afeito às tradições indígenas ou do narrador rodeado por visões sobre traumas que deram origem a um presente assombrado, o autor navega por rotas que colocam frente a frente passado e futuro num terreno em que memória e esquecimento se contrapõem o tempo todo.
O Mentiroso
Américo era como o chamavam. Estranhava o jeito de brasileiro, essa mania de chamar alguém direto pelo nome, sem vergonha nenhuma, como se assim eles conseguissem conhecer alguém, como se a pessoa fosse só carcaça, nome que não fala por dentro. Mas Totanauá, seu tio, era diferente. Américo o observava curioso desde pequeno, quando o velho ficava sentado sozinho num canto da maloca. Via o tio revirar a cabeça, entortar os olhos. Ele apertava os lábios para dizer meia palavra, virava de novo a cabeça como se estivesse pensando em alguma coisa arrependida. Batia com as mãos nas pernas, agoniado. Américo insistia em saber o que ele pensava virando a cabeça de um lado para outro, piscando os olhos com aquele jeito de doido. Perguntava para sua mãe, mas ela desconversava e mandava o menino ajudar o pai no roçado.
Américo não ia. Pegava uma enxada, fingia que saía pelo caminho, então voltava e entrava em casa de novo. Ficava ali olhando Totanauá, que conversava com as moscas, que dizia palavras torcidas. Naquela época, ele não ligava para o sobrinho. Estava mesmo ocupado com as vozes que murmurava através daqueles lábios machucados, mordidos de aflição. Deitado na sua rede pequena, ele nem sequer o notava. Ficava a tarde inteira sem fazer nada, sentado na ponta do banco, revolvendo o ar com as mãos. Depois, quando o pessoal chegava, quando vinha o pai de Américo, seus irmãos mais velhos e os outros parentes, quando todos entravam para comer, ele continuava sentado. Mexiam com o velho, perguntavam o que ele tinha caçado, se tinha conseguido pegar muitas moscas, riam da cara dele. Totanauá ficava calado, engolia a raiva e escutava as provocações, como se fosse mesmo bobo.
Então começavam a comer. Carne de anta, de capivara, o que tinha eles comiam. Seu tio ganhava apenas o pescoço de frango, ou então um pedaço duro da carne de queixada, que era o que os caçadores deixavam para o coitado. Sempre sobrava alguma coisa, mas pouca, pois Totanauá era velho-criança, não caçava nem trabalhava no roçado. Depois, quando todos estavam satisfeitos, ia ficando nervoso e se punha a bater com as mãos nas pernas. Começava a tremer e levantava de repente. Ahhhhh, hmhmhmh, tentava falar. Todos já esperavam por isso. Ele levantava e fazia movimentos no ar, ia dizendo coisas que ninguém conseguia entender. Ficava ali com os olhos entortados, como se visse o dia dividido em dois. O pessoal olhava estranho, mas o deixava falar, pois não era costume interromper a fala de alguém, ainda mais quando a pessoa estava no direito de sua própria agonia. Escutavam um pouco e riam de fininho, enquanto ele ficava lá, soltando palavras nervosas. Depois saíam e deixavam Totanauá, até ele começar a minguar a voz e voltar para seu lugar na ponta do banco.
Por pouco não desapareceram, servindo de combustível para as fogueiras dos patrões, de carne para saciar o desejo-morte de homem branco
Todo dia depois do almoço o velho saía para se banhar no igarapé. Américo ia atrás para flechar calangos e ver o que Totanauá fazia. Chegava ali arrastando a perna fraca, tirava a roupa encardida do corpo magro e pequeno, cobria o sexo com as mãos. Mergulhava rápido e tentava pegar os mosquitões que andam por cima da água. Sempre que chegava o momento de sair, ele ameaçava um choro, feito criança com frio. Fazia que ia chorar, mas logo se vestia e vinha voltando pelo caminho mais longo que margeia o lago. O menino olhava sem entender, mas gostava. Via Totanauá parado na beira da água. O corpo murcho e manco. Via surgir de repente uma nuvem de borboletas que rodeavam o velho, saindo pelo meio das pernas até se espalharem pelo caminho. Não sabia de onde vinha aquela nuvem. Do bolso furado da calça? Era o que ele pensava enquanto o velho ria, rodeado pelas borboletas, e depois fechava as pernas e continuava a caminhar. O garoto ia atrás escondido, com medo de ser surpreendido pelo tio.
Naquela época, ainda não havia muita coisa. De vez em quando aparecia comida enlatada, óleo de cozinha, panela, fósforo, faca, prato de alumínio que alguém trazia da cidade, quando conseguia trocar por carne de caça. Não tinha nada, nem motor de barco, navegavam apenas com remo. Nem lanterna de pilha. Às vezes se ouvia o chiado de algum rádio vindo das casas de tábua de paxiúba, as casas que rodeavam as grandes malocas, os abrigos que o pessoal construía para guardar os poucos pertences comprados na cidade. O pai de Américo dividia a única espingarda com os filhos mais velhos. A munição costumava dar apenas para três ou quatro tiros. Depois disso, restava caçar do jeito antigo, com olho bom para acertar pontaria de flecha. O pessoal vivia todo espalhado pela cabeceira do rio, uma família em cada canto, praticamente em cada volta. Já tinham quase se recomposto do terror que, décadas antes, os donos da borracha tinham deitado na floresta. Por pouco não desapareceram, servindo de combustível para as fogueiras dos patrões, de carne para saciar o desejo-morte de homem branco. Agora o tempo era outro. Faziam festa andando pelos caminhos que ligavam as malocas dispersas ao longo do rio. Às vezes levavam mais de seis horas andando pelos caminhos, até passarem de uma morada para outra. Faziam festa quando tinha muita macaxeira no roçado, quando tinha muita caça gorda. Quando os parentes chegavam para alguma festa, sempre provocavam Totanauá.
— Ei, doido! Tá falando com o vazio? — diziam.
Ele ficava bravo, olhava para baixo e começava a resmungar, enquanto o pessoal andava de um lado a outro do pátio conversando com as moças, esperando a comida ficar pronta. Depois todo mundo comia junto no meio da maloca, naqueles bancos grandes de madeira que o pai de Américo e seus irmãos tinham feito. Era muita gente nas refeições. Totanauá sentava com o pessoal, mas sempre por último, sempre na ponta do banco, e ficava dizendo aquelas coisas que ninguém entendia, ali de lado, com sua voz sozinha. Américo temia que fizessem maldade com ele. Queria estar próximo para poder ajudar.
Os dias iam girando feito mosca no terreiro, enquanto todo mundo caçava e trabalhava nos roçados. Quando as irmãs de Américo iam para as roças de macaxeira e batata-doce, ele se escondia atrás das panelas, esperava todo mundo sair para então espiar o tio. Pensava que talvez ele não fosse doido, que poderia ser bem mais outra coisa, outro tipo de gente. Quem sabe não seria o filhote de gato-maracajá que encontraram tempos antes, do outro lado do rio. Gato-do-mato que cresceu assim como gente e que foi adotado depois pelos parentes. Isso lhe ocorria quando lembrava das histórias que a mãe contava sobre seu irmão mais velho, o finado pajé Omoreno. Mas Totanauá, o coitado, nada dizia de si. Insistia em ficar em seu canto até que Américo terminasse por se cansar. Então o garoto saía para flechar calangos com os primos, tentando encontrar assunto para encher aqueles dias repetitivos.
Talvez nunca chegasse o tempo melhor do qual os antigos falavam em suas palavras. Desde sempre eles contavam sobre os corpos mais leves e brilhantes, as danças com o povo do céu
Américo cresceu esperando que, um dia, conseguiria entender o que o velho dizia no meio daquela aflição. Cresceu e aprendeu a trabalhar com o pai no roçado. Foi ganhando corpo, engrossando os ossos. Já não ficava caçando calangos, arrumando anzol para pescar lambari. Agora os parentes viviam mais perto, todos juntos no campo aberto pelo velho Neco Preto, um dos últimos que ainda se lembravam dos antigos. Aquela não era uma época boa. Talvez nunca chegasse o tempo melhor do qual os antigos falavam em suas palavras. Desde sempre eles contavam sobre os corpos mais leves e brilhantes, as danças com o povo do céu, a festa que jamais terminaria. Neco Preto tentava explicar essas histórias com o que sobrava de seu saber, mas poucos se interessavam. Ele repetia as palavras do finado Omoreno, mas cortava as frases no meio, esquecia, não lembrava aquela linha de pensamento sobre as coisas que viriam do céu quando o tempo mudasse de vez. Américo achava triste ver Neco daquele jeito, as palavras carcomidas, o sentido que não se completava. Como, então, ele saberia? Com quem poderia aprender? No roçado, era sempre a mesma coisa. “Não sei disso, nem conheço mais essa palavra”, ele escutava do pai.
As pessoas agora viviam juntas para facilitar o acesso às mercadorias, que chegavam com mais rapidez pela trilha que tinham feito entre a cabeceira do rio e a beira do grande Itaporá. Uns cinco dias de caminhada separavam os dois pontos. Pouca coisa podia ser transportada nas costas pelos homens que cruzavam o varadouro, aberto numa das partes mais fechadas da mata. Mas assim mesmo tinham conseguido trazer alguns motores de barco que, ao menos, facilitavam a viagem até a chegada nas aldeias. Américo conheceu a cidade naqueles tempos. Porvir era seu nome. Quando chegou na beira do rio repleta de barcos e canoas, perguntou ao pai se Porvir era a maior cidade de todas, mas não teve resposta. O pai estava empenhado em descer da canoa os pacotes de carne de caça salgada que trouxera para vender.
Percorreu as tábuas de madeira que separavam seus pés da água fétida da praia, até chegar na ladeira de terra que levava às casas dos parentes, construídas sobre valas abertas de esgoto. Lá dormiu as primeiras noites, junto com outros jovens que vinham para conhecer a cidade ou para viver ali. No fim da tarde, passeavam na praça sob os olhares de reprovação das famílias dos brasileiros. Comeu churrasquinho, largou-se no colo da cachaça. Acordou no dia seguinte jogado num canto da rua, sem documentos, as calças sujas e arriadas. Seu pai o colocou de pé, bronqueou, disse que não era para aquilo que o tinha levado para a cidade. Explicou sobre o espírito da galinha e da cachaça, que entra pelas costas daquele que perambula sem cuidado.
Era esse o tempo de agora. Tempo de gado que vinha ganhar o espaço deixado pela borracha. Tempo de gente de outras partes que chegava na floresta para fazer a vida
Américo passou mais de dois anos trabalhando em fazenda de boi, dormindo no chão batido do alojamento que os patrões reservavam para a bugrada, que era como eles chamavam o pessoal da floresta. Embrulhava-se nas folhas de jornal que o Gordo jogava para os peões se aquecerem nas noites de friagem. Dali, ele olhava para a casa do Gordo, construída no topo de uma colina, toda de vidro e madeira. A casa brilhava como o sol, não parecia pertencer a um tipo qualquer de gente. Américo gostaria de conhecê-la, mas os cachorros o afastavam com suas bocas arreganhadas. Na fazenda do Gordo ele era chamado de Bicheiro. Não tinha medo de enfiar a mão na ferida dos bois, mexer nos vermes e passar remédio naquele lombo em carne viva, pontilhado com os furos das larvas. Américo, o Bicheiro. Foi aí mesmo que encorpou, comendo uma vez só no fim do dia. Às vezes era levado para trabalhar nas outras fazendas. Chegava e o pessoal já ia mangando dele, chamando de Bicheiro, aquela coisa toda. Bando de covardes, ele pensava, enquanto via o pasto verde se esticar bem longe da sua vista, na linha da floresta perdida no horizonte. Aquele monte de boi espalhado pela terra, aquele gado-angústia vagando sem sentido pelo pasto. Era esse o tempo de agora. Tempo de gado que vinha ganhar o espaço deixado pela borracha. Tempo de gente de outras partes que chegava na floresta para fazer a vida.
- A Repetição
- Pedro Cesarino
- Todavia
- 144 páginas
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