‘O que vai vir me parece muito pesado e perverso’
A jornalista e ativista Bianca Santana lança novo livro, “Arruda e Guiné”, obra que retorna ao Brasil de 2017 para relembrar como chegamos a 2022, refletindo sobre temas como ancestralidade, racismo, política e esperança
Plantas poderosas, ancestralidade, política, racismo, quilombismo, memória, luta e, sobretudo, esperança são alguns dos temas reunidos em “Arruda e Guiné – Resistência Negra no Brasil Contemporâneo” (Fósforo, 2022), de Bianca Santana, 38, jornalista, mestra em educação, doutora em ciência da informação, ativista do movimento negro e uma das articuladoras da Coalizão Negra por Direitos.
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Terceiro livro da autora de “Quando Me Descobri Negra” (Sesi-SP Editora, 2015) e “Continuo Preta – A Vida de Sueli Carneiro” (Companhia das Letras, 2021), a nova obra retorna ao Brasil de 2017 para relembrar como chegamos aonde chegamos agora, em 2022, resgatando, a partir de textos publicados em diversos veículos, fatos relevantes que tomaram os noticiários – ou deveriam ter tido mais espaço – nos últimos seis anos.
Os textos de Santana vêm das revistas Gama e Cult, do site Ecoa-UOL e do jornal Folha de S.Paulo e apresentam não apenas retratos urgentes de momentos que marcaram o país, mas resgatam o poder da história na conexão com as atuais lutas sociais e políticas. “É preciso justiça e memória para fortalecer as raízes do Brasil que queremos”, escreve na abertura da coletânea.
Para Bianca Santana, a escrita de Arruda e Guiné é uma ousadia necessária para que mais vozes sejam ouvidas.
Tentar explicar o momento é bastante praticado por homens brancos. Há vários analistas que fazem isso, mas as mulheres fazem pouco esse exercício, principalmente as negras. Achei que essa era uma ousadia que cabia
Abaixo, ela fala à Gama sobre os tópicos abordados na publicação e reflete sobre como devem ser os próximos anos.
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G |Em que momento você decidiu organizar essa coletânea e quais foram os critérios usados para a organização do livro da forma como ele foi feito?
Bianca Santana |Vivemos um momento bastante duro e tentar refletir sobre o momento na hora em que ele acontece, conectando os fatos, é um exercício que drena muita energia. Sempre que eu parava para dar uma olhada e enxergar um arco, ver uma sequência, achava que aquilo fazia sentido para entender o que parecia uma novidade, mas que não era, tinha começado lá atrás. Durante a quarentena, tive um período de reflexão e fez muito sentido organizar uma sequência do que eu tinha escrito para tentar entender se havia um fio naquilo. Antes mesmo de pensar em publicar um livro, abri um arquivo em que fui colocando os textos, e eu fiz mais de uma versão, montei uma opção por temas (o que escrevi sobre genocídio negro, o que escrevi sobre o caso Marielle, o que escrevi sobre ações de resistência). Depois, quando eu já estava em interlocução com a Fósforo, pensamos em colocar tudo cronologicamente e, no fim, fez mais sentido a cronologia do que a publicação temática, como eu havia proposto no início.
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G |O que mais a motivou a fazer esse trabalho?
BS |O exercício de tentar explicar o momento é bastante praticado por homens brancos. Há vários analistas que fazem isso e que todo mundo gosta de ler, eu também gosto, mas acho que as mulheres fazem pouco esse exercício, principalmente as mulheres negras, porque tem uma certa pretensão explicar o momento que estamos vivendo. Também achei que essa era uma ousadia que cabia, publicar agora falando sobre o agora, mesmo porque eu falo de uma perspectiva diferente daquela que muitas vezes é apresentada, seja no noticiário, seja nesses analistas que costumamos ler. E se falamos tanto de ousadia, se é tão necessário que mais vozes sejam ouvidas, se é fundamental haver mais possibilidades de interpretação, porque isso pode ajudar todo mundo, então, acho que essa coletânea faz sentido. Quando eu penso, por exemplo, na eleição da Francia Márquez, a vice-presidenta da Colômbia, isso significa uma enorme ousadia para o movimento de mulheres negras da América Latina e do Caribe, e acho que a gente precisa honrar esse compromisso de ousadia e sustentar algo que está além de nós como um pequeno grupo político. Vivemos uma fase em que o movimento de mulheres negras não precisa se reafirmar como um grupo fechado em si, mas como um conjunto que tem condição de oferecer proposição, reflexão e leitura para a sociedade como um todo. Então, sim, eu posso tentar apresentar uma análise do que está acontecendo agora a partir de um olhar para esses últimos anos com textos publicados por mim nesse período.
Se falamos tanto de ousadia, se é tão necessário que mais vozes sejam ouvidas, se é fundamental haver mais possibilidades de interpretação, porque isso pode ajudar todo mundo, então, acho que essa coletânea faz sentido
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G |Como foi voltar para esses textos, retornar para o Brasil e para o mundo de alguns anos atrás?
BS |Antes de escrever a carta de abertura do livro, eu reli tudo com bastante cuidado. E é um fenômeno doido você nem lembrar que tinha escrito ou pensado em determinada coisa, mesmo concordando com aquelas palavras. Tem um exercício de memória e não à toa que hoje a gente vê tanto absurdo e todo mundo está num estado de letargia. É porque estamos há anos convivendo com o absurdo e não temos muita condição de reação. A maior parte das poucas tentativas de reação foi bastante frustrada. Acho que tem uma exaustão de todo mundo, uma descrença, uma falta de esperança. Parece que qualquer absurdo que aconteça, a gente não tem como reagir e, então, depositamos toda a nossa esperança nas próximas eleições, como se as eleições fossem nos redimir e tudo mudará logo em seguida. Isso também me preocupa porque mesmo que o Bolsonaro saia do poder, o crescimento de um fascismo racista e misógino se arraiga profundamente na sociedade e se a gente não prestar atenção para isso nas manifestações do cotidiano, não vamos conseguir enfrentar, mesmo que não tenhamos mais esse governo federal. Reler os tópicos me ajudou a perceber, por exemplo, o quanto a violência policial se agravou de um jeito escancarado. Quando olhei para trás, serviu como um alerta de perceber como foi que o agravamento aconteceu. Tenho um pouco do registro desses passos, e me parece que olhar os passos é importante para a gente conseguir enfrentar, porque não foi do nada.
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G |Apesar de narrar um Brasil cheio de injustiças e fatos dolorosos, você parece ser uma pessoa esperançosa e combativa. De onde vem essa energia para escrever?
|Em um dos textos, eu falo sobre o largo do Paissandu [especificamente, sobre o incêndio que, em maio de 2018, levou ao desabamento de um prédio ocupado], e aquele foi um dia difícil para mim, de muita desesperança. Havia um monte de família acampada, em condição precária, na frente de uma igreja porque um prédio pegou fogo e desabou. Era uma cena de guerra. Eu me sentei numa esquina e fiquei registrando a dor, a perversidade, e pensei em como sairíamos daquela situação. Fiquei pensando naquela imagem com a igreja ao fundo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em como era simbólico uma igreja de resistência negra naquela paisagem. Quando cheguei em casa, pesquisei sobre a igreja, e quando você vai vendo que o nome da praça significa uma coisa, o da igreja, outra coisa, e que parece que ficamos repetindo padrões de uma mesma história, isso convoca uma força de reação. É maior do que o tempo de vida de uma pessoa o que repetimos na história do Brasil, por isso, é essencial colocar o tempo de vida que temos aqui para tentar interromper esse ciclo perverso, para que não seja assim para as futuras gerações. Não tenho esperanças de que seja diferente no nosso tempo de vida, não haverá tempo para ser. Só que se a gente não enfrentar com seriedade, esse ciclo vai se repetir por muito mais tempo. Quanto mais a gente conseguir agir agora, antes conseguiremos interrompê-lo. Tem um quê romântico nisso, é óbvio, mas tem também uma indignação. Não pode ser assim, estamos aqui agora, e se estamos aqui, temos que reagir. Precisamos contar as histórias de reação que nos foram negadas, é nosso dever ir atrás dessas histórias. Temos que entender quem somos, não podemos conviver com uma ideia de história oficial que apaga a nossa resistência. Porque só se a gente se apropriar dessa resistência, teremos força para seguir. Talvez eu tire essa esperança da certeza de que existiram pessoas indignadas em todos os períodos da nossa história e que seguir com indignação e resistência é também honrar quem trabalhou para que, hoje, a gente possa, pelo menos, falar sobre isso, porque antes talvez essas pessoas nem pudessem. Também tenho a esperança de que seja diferente no futuro. Um futuro que não reverbera necessariamente na minha experiência, mas na experiência de quem eu não vou conhecer.
É maior do que o tempo de vida de uma pessoa o que repetimos na história do Brasil, por isso, é essencial colocar o tempo de vida que temos aqui para tentar interromper esse ciclo perverso, para que não seja assim para as futuras gerações
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G |Não há apenas dores narradas no livro. Há retratos importantes de vitórias, certo?
BS |Sim! Há um pedaço do livro sobre Alcântara, no Maranhão, em que eu falo da agenda política da Coalizão Negra por Direitos, há uma carta para Angela Davis falando da importância dessa articulação com o movimento negro dos EUA. Também é bom ter esses fios de coisas que, normalmente, vão se perdendo, até para não parecer que nesse período só nadamos num mar de tragédias. Não é verdade, tivemos várias vitórias. A Patrícia Campos Mello, por exemplo, teve uma vitória recente no Judiciário, e isso não é pouco.
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G |A arruda e a guiné, que intitulam o seu novo livro, também foram tema de uma coluna da Gama, publicada em agosto de 2020, sobre o poder da sabedoria ancestral da mulher negra. Qual é o significado dessas plantas para você?
BS |Eu sou muito conectada com a dimensão espiritual da vida. Arruda e guiné são nomes fortes de ervas poderosas que mostram a conexão espiritual de parcela importante da comunidade negra para sobreviver e resistir, para criar condições de vida, harmonia e felicidade em circunstâncias adversas. Arruda e guiné são instrumentos, é um conhecimento ancestral importante, que, muitas vezes, não é reconhecido como uma ferramenta valiosa. Esse conhecimento foi, por muito tempo, visto como crença, crendice, superstição, mas é importante essa apropriação como instrumento político que nos permite conexão de temporalidades. Pode ser que não existam muitos registros escritos de como mulheres negras resistiram à escravidão no Brasil, mas quando recebo a informação de que um dos nomes populares da erva guiné é amansa-senhor, e depois, quando chego na Colômbia, e descubro que lá existe um nome muito parecido, tem uma coisa afro-diaspórica aí que não é só brasileira. O nome amansa-senhor me informa de como essa resistência negra aconteceu e de como esse conhecimento profundo das ervas tem algo não só de científico, como de apropriação, para modificar as condições de vida daquele momento. Eu aprendi com a minha avó o uso dessas ervas e isso me conecta às ancestrais da minha avó de um jeito que não necessariamente me chegou como história contada ou com um livro que eu pude ler, mas com um uso muito prático de uma erva que está espalhada no país todo. A gente anda na rua e vê guiné crescendo em todo canto. As pessoas usam arruda independentemente da sua religiosidade. Você vai para os interiores do Brasil e todo mundo tem um pezinho de arruda plantado na porta de casa. A arruda e a guiné nos permitem acessar o Brasil e a diáspora de um jeito mais profundo do que, muitas vezes, as palavras dão conta de explicar.
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G |No momento, você não está escrevendo nenhuma coluna, para nenhum dos veículos que estão no livro. Pretende voltar a fazer isso para que, de repente, daqui a dez anos você possa revisitar esse novo material?
BS |Desde 2008, escrevo com frequência, talvez eu tenha tido um ou outro intervalo, mas foram pequenos. O meu primeiro livro, “Quando Me Descobri Negra”, também é uma coletânea de publicações minhas, mas agora estou com vontade de outras coisas, queria sair um pouco de ficar olhando para o que está acontecendo agora. Foi importante fazer esse livro para mim, e penso que ele pode ser importante para as pessoas, porque vejo que existe um ciclo coletivo se fechando, que eu também não sei qual é, mas tem algo se encerrando. Acho que o que a gente compreende de um Brasil que existia, de racistas negando que fossem racistas, por exemplo, não existe mais, e o livro mostra um pouco de como essa mudança foi acontecendo. Tem a ver com uma resistência negra que consegue denunciar o mito da democracia racial e dizer que o Brasil é, sim, racista, e com vários antirracistas começando a se afirmar como antirracistas, ao mesmo tempo em que há racistas se afirmando racistas sem pudor, pessoas fazendo gestos supremacistas o tempo todo. Acho que o livro mostra uma transição, e o que vai vir me parece muito pesado e perverso porque vai ser menos escondido, vai ser muito escancarado. Há uma lógica de rede que não se subordina à institucionalidade. Mesmo com a possível derrota do Bolsonaro, os bolsonaristas vão continuar existindo e eles não vão entregar com facilidade, assim como os trumpistas não entregaram. Voltei há pouco dos EUA e vi que mesmo num país com instituições muito mais sólidas do que as nossas, eles ainda estão sofrendo com o episódio de 6 de janeiro [quando apoiadores de Donald Trump, incitados pelo ex-presidente, invadiram o Congresso americano]. O resultado da eleição é muito fundamental, mas ela não vai resolver. Por isso, a minha vontade é de olhar menos para o que vai ser esse período de violência extrema e conseguir fazer mais pesquisas históricas para entender com profundidade como foi antes, principalmente no século 19.
O livro mostra uma transição, e o que vai vir me parece muito pesado e perverso porque vai ser menos escondido, vai ser escancarado. Há uma lógica de rede que não se subordina à institucionalidade. Mesmo com a possível derrota do Bolsonaro, os bolsonaristas vão continuar existindo
- Arruda e Guiné – Resistência Negra no Brasil Contemporâneo
- Bianca Santana
- Fósforo
- 200 páginas
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