Eliana Alves Cruz fala sobre racismo, memória e ancestralidade — Gama Revista
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Isabela Durão (Foto: Martha Azevedo)

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Conversas

Eliana Alves Cruz: 'Saber que somos fruto de um sistema torturador e assassino não é fácil'

Escritora, que desvendou a história da própria família no romance ‘Água de Barrela’, fala da importância de romper com a vergonha do nosso passado nada honroso

Amauri Arrais 22 de Agosto de 2021
Foto: Martha Azevedo / Ilustração: Isabela Durão

Eliana Alves Cruz: ‘Saber que somos fruto de um sistema torturador e assassino não é fácil’

Escritora, que desvendou a história da própria família no romance ‘Água de Barrela’, fala da importância de romper com a vergonha do nosso passado nada honroso

Amauri Arrais 22 de Agosto de 2021

Uma mistura de apagamento, desconhecimento e fragmentos de história oral é tudo o que a maioria da população brasileira, os 54% negros, tem do seu passado. Essa lacuna, permeada de preconceito, incomodou por anos a jornalista e escritora Eliana Alves Cruz, que fez do seu romance de estreia, “Água de Barrela” (Ed. Malê, 2016), um encontro com seus antepassados.

“Barrela” era o alvejante caseiro usado por séculos pelas lavadeiras, como as avós e bisavós da escritora — uma metáfora também das tentativas perpetuadas até hoje de branqueamento do Brasil. Eliana vasculhou arquivos em cartórios e bibliotecas e juntou a entrevistas e histórias contadas por esses antepassados para montar a linhagem da família de 1849 até os dias de hoje.

Mas não teria conseguido sem a ajuda fundamental de uma tia-avó, Anolina, diagnosticada com esquizofrenia. Foram as lembranças da tia Nunu que deram as pistas das origens da família, no oeste da África. Neste ano, a espantosa memória preservada da tia-avó foi novamente confirmada por um teste de DNA feito por Eliana e outras personalidades negras brasileiras para o documentário “Origens”, produzido pelo UOL.

Descender de escravizados até pouco tempo era uma vergonha. Minhas avós achavam que era um demérito

É claro que revirar esse passado, ocultado até pelos próprios parentes, exigiu coragem. Eliana se deparou em inventários com nomes de familiares com preços ao lado, além de relatos de exploração, torturas e abuso sexual. “A tentativa de apagamento e a negação vêm muito dessa vergonha, que no fundo todo mundo sente. Saber que é fruto de um sistema torturador e assassino não é fácil”, conta. “Descender de escravizados até pouco tempo era uma vergonha. Minhas avós achavam que era um demérito, porque são séculos de um sistema dizendo que você vale menos. Não fosse pela tia Nunu e sua falta de censura, talvez muita coisa eu não soubesse.”

Eliana voltou a esse passado, de diferentes perspectivas, em outros dois romances: “O Crime do Cais do Valongo” (Ed. Malê, 2018) e “Nada digo de ti, que em ti não veja” (Pallas Editora, 2020). E pretende publicar ainda uma continuação de “Água de Barrela”, em que tratará da fase de transição da mão de obra escrava para a assalariada no país — e do incentivo à vinda de imigrantes europeus como parte do processo de branqueamento. Seu próximo romance, “Solitária”, é uma história contemporânea sobre empregadas domésticas e deve sair em breve pela Companhia das Letras.

“Foi um prazer mergulhar na história e encontrar vozes que não estavam falando ali”, diz a escritora que, na entrevista a seguir, fala como foi crescer em uma das poucas famílias negras num bairro de classe média no Rio, do seu encontro com a ancestralidade, de apagamento e preservação de memórias.

São séculos de um sistema dizendo que você vale menos

  • G |Você já contou que só quando se mudou menina de Madureira para a Tijuca, bairro de classe média do Rio, percebeu o racismo, e que tem lapsos de memória dessa época. Já conseguiu se reconciliar com essa infância?

    Eliana Alves Cruz |

    Reconciliar não sei se é a palavra, mas consegui curar algumas feridas. Na verdade, quando a gente olha para trás, é fácil identificar muita coisa que, na época, não estava no radar. Então vejo que lá em Madureira, onde passei minha primeira infância, já aconteceram alguns episódios [de racismo]. Mesmo depois, quando mudei para a Tijuca, esse bairro de classe média, outras coisas que eu não colocava nessa conta, hoje vejo que estão. Essa consciência que eu tive aos poucos é a história de muita gente no Brasil. Aqui a gente não nasce negro, a gente se torna. Aos poucos é que a gente vai despertando para essa realidade da segregação à brasileira. Então, olhando para trás, consegui identificar muitas coisas e me curar a partir do momento que encarei isso: “Olha, essas pessoas que estão no meu passado eram racistas sim” e trouxe isso para a literatura. Consegui me curar encarando de frente e transformando isso em arte, tentando de alguma forma interferir nessa realidade e fazer um futuro diferente a partir daquilo que eu escrevo. Isso traz paz. As cicatrizes estão lá, mas como diz a música do Emicida, as cicatrizes não nos definem. Elas estão ali e, de alguma forma, são nossos troféus de batalha. Só possui cicatriz quem está vivo. Gostaria que meu filho e minha filha não passassem por determinadas coisas que passei. Infelizmente, ainda vejo a repetição de muitas coisas, principalmente com a minha filha, o que dá uma certa angústia de ver que o Brasil não caminha. Isso também fala muito do recorte de gênero, de como essas coisas afetam diferentemente homens e mulheres.

  • G |No seu romance “Água de Barrela”, que você define como um trabalho de vida, você conseguiu reconstruir o passado de seus familiares desde a África. Em que momento percebeu a importância de resgatar essa história?

    EAC |

    Eu tenho uma família muito atípica, em vários aspectos. Minha família tem, por exemplo, acesso à educação superior no Brasil. Isso fez toda a diferença na forma como a gente foi introduzido nesse tema. Toda família negra no Brasil que minimamente enxerga a realidade à sua volta tem um dia a conversa, que é sentar com os mais novos e dizer: “Olha, é assim que a banda toca. Acorda aí porque senão você não volta para casa, você morre”. Geralmente são conversas dolorosas porque falam de uma não cidadania. Eu tenho que dizer ao meu filho que ele não pode a mesma coisa que seus colegas brancos. Essa preparação é feita desde que a gente nasce. E a minha necessidade de contar vem desde sempre, desde que olhei em volta e vi que tinha essa história atípica, algo a contar para que as pessoas se reconhecessem e tivessem ferramentas para sobreviver nesse massacre. Despertar nelas a vontade de conhecer o seu passado e buscar as ferramentas para enfrentar esse presente, às vezes tão doloroso.

Damiana, umas das bisavós da escritora, aos 23 anos

Foto: Arquivo pessoal / Ilustração: Isabela Durão

  • G |Você menciona sempre sua tia-avó Anolina, a tia Nunu, que foi diagnosticada com esquizofrenia, como uma peça-chave para recuperar esse passado. Como foi descobrir que os relatos dela estavam corretos sobre sua origem?

    Eliana Alves Cruz |

    Foi muito bonito. Como eu falei, são curas que essas histórias promovem. A tia Nunu era aquela pessoa que a gente cresceu com medo, pelas questões mentais, porque falava sozinha. Teve uma época da vida em que ela foi muito violenta, cresci com meu pai contando esses relatos de ela atacar as pessoas. Então crescemos com aquele medo de criança em relação à “louca” da família. Me aproximar dela foi algo muito libertador, uma lição das maiores que recebi com esse livro, de perceber que todo mundo tem uma história para contar, guarda um passado, que a questão é como acessar. E também do respeito que a gente precisa ter para tocar o mundo da outra pessoa, seja ela quem for. Foi muito bonito sentar aos pés dela e acessar essa memória de uma maneira respeitosa, um aprendizado muito grande. Fico feliz de ter resgatado essa pessoa para nossa família, que a trata com todo amor, mas havia uma distinção. E todo mundo que lê se emociona.

Toda família negra no Brasil tem um dia a conversa com os mais novos de sentar e dizer: ‘Acorda aí porque senão você morre’

  • G |Seu livro inspirou ainda o documentário “Origens”, produzido pelo UOL, que deu testes de DNA para várias personalidades negras brasileiras descobrirem de onde vieram seus antepassados. O mapeamento genético revelou algo além do que você tinha descoberto na pesquisa?

    EAC |

    Isso foi muito fascinante. A gente tem um imaginário coletivo que coloca as pessoas esquizofrênicas ou que têm alguma questão de saúde mental nesse lugar de incapacidade. Minha tia-avó me trouxe todas as memórias, me deu as pistas todas de localização e origem e, quando eu faço um teste de DNA, esse teste aponta exatamente para aqueles mesmos lugares. É uma contradição muito grande: a mesma ciência que diz que a capacidade que ela possui é limitada é a que diz que ela tem razão, porque trouxe um resultado que bate com o que ela contou. É óbvio que a gente tem as pesquisas, os avanços, mas a gente não pode esquecer da nossa oralidade, de pertencimentos outros que também estão dentro do saber construído pela sociedade.

  • G |Há um certo mal estar em revirar esse passado, principalmente num país como o nosso, que viveu quatro séculos de escravidão. Você também descobriu que seus antepassados tinham ligações com outra família branca para a qual alguns trabalharam até recentemente. Acha que é por isso que persiste essa ocultação do passado da população negra?

    EAC |

    Ninguém lida bem com um passado que é preciso esconder, que não é honroso. Veja o que está acontecendo agora com o escritor Laurentino Gomes em Portugal. Ele foi sugerir que Portugal deveria pedir perdão pelo período da escravidão transatlântica e está sofrendo ataques absurdos de haters. Essa é uma memória dolorosíssima. Não é fácil olhar para trás e ver que o seu avô, sua avó, o dinheiro que te sustentou, vem de algo tão terrível. A tentativa de apagamento e negação também vem muito dessa vergonha, que no fundo todo mundo sente. Saber que é fruto de um sistema torturador e assassino não é fácil. Na Inglaterra, por exemplo, as pessoas sabem quem são as famílias que escravizaram. Aqui, ninguém toca nesse assunto. Quem eram essas pessoas? Quem são seus descendentes? Existe um apagamento da história negra, mas também uma ocultação intencional da história branca. Veja, por exemplo, o imaginário que se criou em torno dos bandeirantes. Quando você fala em uma família quatrocentona, é uma família que descende de bandeirantes. E aí a gente ouve: “Ah, mas não se pode julgar um século com a visão de outro”. Só que naquela época já tinha gente que questionava, como os jesuítas. Então, são fatos muito incômodos, é muito difícil olhar para esse passado. Descender de escravizados até pouco tempo era uma vergonha para todo mundo. Minhas avós achavam que era um demérito, porque são séculos de um sistema dizendo que você vale menos e te torturando. Uma hora você internaliza isso. Não fosse pela tia Nunu e sua falta de censura, talvez muita coisa eu não soubesse. A gente edita a própria história, conta aquilo que precisa contar. E é isso que a gente precisa começar a desmontar.

  • G |Há quem defenda monumentos em homenagem a figuras controversas, como a do bandeirante Borba Gato em São Paulo, como uma forma de não apagar esse passado, que ao mesmo tempo causa lembranças dolorosas em muita gente. Qual a sua opinião?

    EAC |

    Acho que tem que haver no mínimo um deslocamento de locais. Não sei se é a destruição [a solução], a história precisa ser contada. Às vezes, a história de um monumento não é só a do retratado em si, mas a própria história da arte. Você tem um monumento como o das Bandeiras, em São Paulo, que é um Victor Brecheret. Vamos meter a marreta? Mas talvez ele não precise estar em praça pública, como uma homenagem ao triunfo daquelas pessoas. O que ofende é uma ufania dos feitos daquelas pessoas. Se isso estivesse no âmbito da museologia, contextualizado historicamente, é uma coisa. Outra coisa é ter, na esquina da sua casa, um monumento a alguém que foi notoriamente um assassino, um estuprador. Isso é muito agressivo. Precisamos começar a debater essas coisas de uma forma menos apaixonada, por mais que esse tema mova rancores e paixões muito pesadas. Tive um debate com um amigo que descende de judeus e disse que nem por isso defendia que se ateasse fogo à embaixada da Alemanha. Eu contra-ataquei dizendo que na embaixada da Alemanha, não –até porque o país reconhece os erros desse passado, existem movimento sérios de reparação e se você faz um sinal nazista em público na Alemanha você é preso sumariamente. Mas se resolverem erguer na sua esquina uma estátua ao Goebbels [ministro da propaganda nazista], me chama para derrubar que eu vou junto.

Não é fácil ver que o dinheiro que te sustentou vem de algo tão terrível [como a escravidão]. A negação vem dessa vergonha

  • G |A literatura tem esse papel importante de recontar fatos históricos, mas já vi autores negros se queixarem de uma certa cobrança de terem que explicar a história da escravidão. Como autora de três romances históricos, você se sente presa a esse papel?

    EAC |

    Não me sinto presa a nada. Como dizem os memes da internet, não sou obrigada. Escrevo porque eu gosto de história. Foi um prazer escrever esses livros, mergulhar na história e tentar, como uma detetive, encontrar vozes que não estavam falando ali. Isso para mim é muito bacana de buscar. Mas não me sinto forçada à questão histórica, até porque acho que ela está em tudo. Agora, por exemplo, estou terminando um romance que é contemporâneo, se passa no final dos anos 1990 e vem até agora, uma história sobre empregadas domésticas. Isso vai falar de todo o passado que tratei em outros livros porque é um reflexo disso. As relações entre patrões e empregadas de serviços subalternos está alicerçada em tudo isso, não deixa de falar das heranças que temos da escravidão. É muito incômodo esse lugar de estar eternamente explicando para as pessoas. Acho que passou do tempo de as pessoas buscarem essas respostas em outros lugares. Temos uma vastíssima literatura, especialmente sobre o tema escravidão. Temos historiadores e historiadoras conceituadíssimos no mundo todo, livros fascinantes que até parecem literatura e explicam muita coisa.