Por que o sabor Nutella e leite ninho venceu?
A dupla que ganhou os cardápios de sobremesas e ovos de páscoa pelo país é pretexto para discussões sobre uso em excesso de ingredientes prontos e desvalorização da doçaria brasileira
Na Páscoa que está por vir, mais uma vez um sabor reina nos cardápios de doceiras pelo Brasil, de Salvador a Manaus, de São Paulo a Porto Alegre: leite Ninho com Nutella, muitas vezes em ovos para comer de colher com recheios voluptuosos e camadas de brigadeiros.
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No Google, as primeiras pesquisas sobre a dupla aparecem por volta de 2015. De lá para cá, o creme de avelã e o leite em pó “infantil” da Nestlé passaram a compor tortas, mousses, sorvetes, bolos, sacolés, panetones (!), sorvetes. Uma confeiteira do Paraná inventou até um pastelzinho de leite ninho com Nutella; outra, do Espírito Santo, ensina no Youtube a fazer uma pipoca doce com essa cobertura.
Os sabores, às vezes feitos a partir de imitações de marcas genéricas desses produtos, não parecem ter restrição de público: estão na lojinha de bairro de periferias e em mesas de casamento de elite. “A Nutella nem é mais um modismo, ela já é ingrediente-chave entre a maioria das doceiras”, diz a confeiteira Carol Melo, que há 16 anos provê doces para bufês de luxo de São Paulo (SP). “E em eventos a maioria das pessoas prefere sabores que já conhece, que vão agradar mais gente.”
A dupla não parece ter restrição de público: está na lojinha de bairro de periferias e em mesas de casamento de elite
Não é só aqui que a Nutella é febre, claro. Na França, ela foi sucesso instantâneo quando introduzida nos anos 1960, pouco depois de ser inventada na Itália: hoje, logo lá, o país da alta gastronomia, se tornou o maior consumidor da pasta do mundo – em 2018, ficaram famosas imagens de pessoas se estapeando em supermercados do país por causa de uma promoção de Nutella.
Ela chegou nas Américas mais tarde: nos EUA, nos anos 1980, mas só pegou mesmo quando a Ferrero, que a produz, começou a investir pesado em propaganda no fim dos anos 2000. No Brasil, chegou em 2005 com aquele ar de sofisticação comumente atribuído a produtos importados. E dá-lhe anúncios e “#publis” para divulgá-la, criando aos poucos uma base de consumidores e uma demanda para os doceiros.
Já a onda atual de colocar leite em pó em doces parece ter relação com lanchonetes de açaí do Sudeste, que começaram a oferecer o Ninho no menu de complementos possíveis para o creme gelado. Em 2017, a revista Veja São Paulo publicou uma nota falando da moda na doçaria, citando inclusive um restaurante que inventou uma fondue de leite Ninho com Nutella.
O uso exacerbado desses produtos, claro, é criticável. Há um tempo viralizaram pelo mundo imagens pouco apetitosas que mostrariam o que tem dentro de um pote de Nutella, de acordo com os ingredientes indicados no rótulo: 58% açúcar, 32% de gordura (óleo de palma, em sua maioria), e só 13% de avelãs e 7,4% de cacau em pó (o resto é composto por leite e soro de leite em pó, emulsificantes e aromatizantes). Não dá para dizer que é um produto saudável para passar no pão no café da manhã das crianças, como ele é vendido.
Para a confeiteira Joyce Galvão, autora do livro “Ingredientes para uma confeitaria brasileira” (Companhia de Mesa, 2021), o excesso de produtos prontos como esses na confeitaria faz com que haja uma pasteurização de sabores que não é benéfica para o setor.
“Quando todo mundo usa em massa só um ou dois produtos, a gente perde diferenciação entre os profissionais, vira tudo a mesma coisa. É uma perda da riqueza de sabores possíveis e uma desvalorização da própria cultura da doçaria brasileira”, diz.
Quando todo mundo usa só um ou dois produtos, a gente perde diferenciação entre os profissionais, vira tudo a mesma coisa
Peripécias da indústria
Marilia Zylbersztajn, reconhecida confeiteira paulistana em cuja cozinha “não entra nada que tenha saído de uma lata”, fala das manipulações da indústria alimentícia. “A gente acredita nessa indústria que brinca com o nosso paladar e com a nossa cultura, como fez com o leite condensado na década de 1960. Ela faz a gente acreditar que precisa desses produtos e que eles são parte da nossa história.”
Zylbersztajn se refere à introdução do leite condensado no Brasil feita pela Nestlé. Como explica a reportagem do portal O Joio e o Trigo, a empresa abriu a primeira fábrica de leite condensado no país nos anos 1920, colocando o produto no mercado como alimento para bebês (!). Mais tarde, com a chegada das fórmulas infantis, ela o reposicionou para a confeitaria, divulgando cadernos de receitas com beijinho, pudim e outros doces incorporando o leite condensado. Assim, a doçaria do país foi sendo reescrita.
AtlasStudio/Getty Images
Hoje, o Brasil é o maior consumidor mundial de leite condensado, e essa história é pouquíssimo sabida: ele é visto quase como uma coisa nossa desde sempre. Ai de quem falar mal do brigadeiro. E, diante das quantidades hediondas de açúcar do produto, começamos a acreditar mais e mais que nosso negócio é doce muito doce, mesmo.
“É uma bobagem dizer que comer açúcar desmedidamente é da tradição e do gosto brasileiro. Se você olhar um livro do século 19, as receitas tinham menos açúcar do que as de hoje. Há uma introdução crescente de açúcar pela indústria”, disse o sociólogo Carlos Dória em entrevista a Gama publicada em outubro do ano passado.
É uma bobagem dizer que comer açúcar desmedidamente é da tradição e do gosto brasileiro. Há uma introdução crescente de açúcar pela indústria
O chef sorveteiro Francisco Sant’Anna, conhecido por peitar a indústria de produtos prontos, defende que uso de ingredientes naturais, além de oferecer doces mais saudáveis para a população, incentiva produções nacionais como a de frutas. “Poderíamos fazer uma ‘cajutella’, de caju, rapadura e chocolate, por exemplo”, sugere.
Ele fala da necessidade de taxação maior sobre esses produtos (coisa que já foi levantada na França), e do imenso poder de lobby e de marketing dessas grandes empresas, assuntos que discutimos recentemente na live “Comida para pensar o Brasil: (in)segurança alimentar, desigualdades e políticas públicas” promovida por Gama e a ONG ACT Promoção da Saúde.
Doce é comida?
Talvez aí entre outra questão: a de a gente culturalmente não encarar doce como um alimento. A sobremesa tem outro estômago reservado para ela, como se diz. É o que pensa a historiadora Débora Oliveira, autora do livro “Dos cadernos de receitas as receitas de latinha: Indústria e tradição culinária no Brasil” (Senac, 2013) e dona de uma empresa de marketing culinário.
“O doce aqui está na categoria de recompensa, indulgência, prazer. A base láctea, do leite Ninho, por exemplo, vem muito associada à infância, ao acolhimento, ao afeto. Não entra na categoria de comida. Pouca gente quer doce “saudável”, ninguém pede fruta da estação”, diz.
Ela comenta outros aspectos do sucesso da “ninhonutellização”, que também valeram para o leite condensado lá atrás: são produtos que trazem sabor e textura prontinhos na lata, o que vem a calhar em um país onde historicamente mulheres fazem doces “para fora” para complementar a renda.
“Técnicas de confeitaria são elaboradas, não é algo a que todo mundo tem acesso. Muitas pessoas trabalham de dia e fazem doce à noite para viver. E elas precisam de praticidade”, explica. “O toque personalizado vai nos detalhes, no acabamento, na decoração, na embalagem.”
Muitas pessoas trabalham de dia e fazem doce à noite para viver. E elas precisam de praticidade
Oliveira lembra que o leite condensado passou a ser usado no pudim, por exemplo, para recriar a textura cremosa antes dadas por gemas, muitas gemas. “Esses produtos trazem o doce cremoso e molhadinho que a gente gosta com facilidade. Porque isso é coisa nossa, mesmo: olha o pão de mel alemão: é duro, seco. A nosso é quase um bolinho, com muito recheio e cobertura de chocolate.”
De fato, é só dar uma espiada nas redes sociais: quanto mais cobertura cremosa, quanto mais recheado o ovo, quanto mais Nutella vazando, mais curtidas. E, em tempos em que a grande parte das vendas é feita online, curtidas podem ser convertidas em reais.
“Não acho que é o caso de demonizar a indústria, mas existem caminhos que precisam ser repensados. A confeitaria tem uma longa jornada a percorrer para buscar alternativas mais naturais e com menos açúcar”, diz a confeiteira Joyce Galvão.