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Pode misturar cerveja e vinho?
Pode, ué. A revolução cervejeira não tem limites e chegou ao mundo das barricas e dos blends, como provam as oenobeers e a parceria entre a cervejaria Trilha (SP) e a vinícola Vivente (RS)
Sempre ouvimos que não se deve misturar diferentes tipos de bebidas, cerveja e vinho, por exemplo. Mas e quando os dois estão na mesma taça? A ideia parece meio esquisita, mas diante da evolução do mercado de bebidas – que mesmo nos seus setores mais caretas, como o do vinho, anda explorando novidades como vinho azul, vinho sem álcool, vinho concentrado para ser diluído no gelo, vinho com cannabis – pode ser apenas sinal do tempo.
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Nos Estados Unidos, já não é difícil encontrar as oenobeers, híbridos que podem nascer de diferentes maneiras: ou com uvas adicionadas à fermentação da cerveja; ou passando a bebida por uma barrica de vinho; ou, ainda, fazendo um blend com partes dos dois fermentados.
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A primeira experimentação desta natureza de que se tem notícia é da célebre cervejaria belga Cantillon, que ainda nos anos 1970 usou uvas Moscato em sua Vigneronne. Mais recentemente, uma das expoentes da onda artesanal, a norte-americana Dog Fish Head, combinou 51% de grão com 49% de Viognier, maior porcentagem de uvas que a bebida pode ter para ser considerada cerveja nos EUA, em sua Mixed Media.
As onebeers são produzidas com adição de uvas na fermentação da cerveja, com o estágio da bebida em barricas de vinho ou com o blend dos dois fermentados
Nas prateleiras brasileiras é possível encontrar as diferentes vertentes dessa oenobeers, recomendadas para quem ama vinho, como a Sofie, da cervejaria de Chicago Goose Island (hoje pertencente à Ambev), que tem passagem por barricas de carvalho; ou a Dádiva Sept 40%, uma Belgian Strong Golden Ale que envelheceu em barricas de carvalho americano, e depois recebeu 40% de claret Cabernet Sauvignon, lançada no ano passado. Mas é da paulistana Trilha a experiência mais radical: eles lançaram há um mês uma bebida híbrida – não, eles não chamam de cerveja, nem de vinho –, feita com 50% de vinho e 50% de cerveja e que tem cara de… espumante.
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Espumante de cevada?
O nome de batismo é Cuvée Trilha & Vivente, porque é produzida em parceria com a vinícola gaúcha conhecida por seus pét-nats, os espumantes feitos a partir de método ancestral (ou seja, na onda dos vinhos naturais), que vinificou um Sauvignon Blanc especialmente para o projeto. A Trilha, por sua vez, testou um blend do vinho com as cervejas que já faziam parte do catálogo e, a partir desses testes, criou três cervejas: uma gose (estilo levemente ácido e com final salino) com manga; uma sour (estilo fortemente ácido) com romã; e uma saison (armargor moderado e acidez leve) com passagem em barrica.
Desse casamento, saíram três bebidas, que foram envasadas em garrafas de 750 ml e arrolhadas como espumante, com gaiola (aquele arame que segura a rolha) e tudo.
A ideia parece esquisitíssima? Bem, ela funciona. E muito. Gama experimentou o blend Sauvignon Blanc/gose com manga e a avaliação é de que fica realmente no meio do caminho entre o vinho ou cerveja e isso a torna meio misteriosa e superagradável: tem acidez altíssima, boa mousse e carbonatação no ponto, além de ser extremamente gastronômica, boa para acompanhar frutos do mar e pratos com toque herbáceo forte. Arrisco dizer que os amantes de vinho laranja e pét-nat vão gostar. Ponto negativo: uma rolha quase impossível de se abrir.
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A bebida híbrida Cuvée Trilha & Vivente Divulgação
Que raios de ideia foi essa?
Ao conversar com os responsáveis pela Trilha, entende-se que a ideia não veio do nada. Desde que começou a produzir em 2016, a cervejaria tem flertado com a enologia e tomado emprestado alguns processos de sua produção.
A mais importante delas, talvez, o uso de barris para maturação da bebida, que tem como objetivo dar mais complexidade às cervejas. “O barril é como se fosse mais um ingrediente. Sensorialmente vai emprestar muitas características, que podem vir da madeira ou da bebida que estava lá antes. O segundo aspecto importante é o efeito da microoxigenação constante e lenta, uma oxidação que traz outros aromas e sabores diferentes”, conta Beto Tempel, sócio e mestre cervejeiro da Trilha, em entrevista a Gama.
O processo é longo, as cervejas ficam de seis meses a três anos nesses reservatórios. “Quando a gente começa a fazer uma receita nova, só descobrimos se deu certo muito tempo depois. É uma lenta construção”, diz Tempel, que hoje tem 80 barris cheios em diferentes madeiras.
Tem uma galera do vinho que tem preconceito com cerveja, porque não é uma bebida complexa o suficiente
“Tem uma galera do vinho que tem preconceito com cerveja, porque não é uma bebida ‘complexa’ o suficiente. Com a Cuvée e as barrel aged a gente espera conseguir convidar essa turma para entrar na conversa, fazemos uma provocação. É muito louco que os restaurantes valorizam mais o vinho que a cerveja; as cartas de vinho são imensas, mas a oferta de cervejas fica nas comerciais apenas”, diz Daniel Bekeierman, sócio-fundador da Trilha.
Ousada desde criancinha
Na entrevista com Bekeierman e Tempel, eles contam que desde o começo queriam seguir um caminho diferente do que estava sendo feito no mercado cervejeiro. “Por muito tempo, a visão de cerveja no país era supersimplista e muito sexista, eram a loira, a ruiva e a morena, tudo o que mexia com o imaginário erótico masculino. Quando começamos, as melhores cervejas estavam no sul, mas elas se inspiravam nos estilos clássicos influenciadas pela cultura alemã, que não era a nossa vibe”, conta Bekeierman.
Cerveja é uma viagem sensorial. Não faz sentido carregar amarras de uma visão técnica
Depois, ele continua, a coisa então foi caminhando para a febre da IPA, na linha do “quanto mais amargo melhor”. “Era tudo muito lupulado, tinha uma discussão grande sobre o IBU, que é o índice de amargor, e a gente achava aquilo tudo errado, porque cerveja é uma viagem sensorial. Não fazia sentido carregar as amarras de uma visão mais técnica da bebida”, afirma.
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Beto Tempel, mestre cervejeiro da Trilha, examina barrica onde as cervejas barrel aged estagiam Divulgação
Foi aí que ele teve o primeiro estalo: o mestre cervejeiro tinha que ser alguém com perfil totalmente diferente, mais interessado nessa tal “viagem sensorial”. Foi quando lembrou de um amigo de infância, Beto Tempel, que havia largado a publicidade para fazer carreira na gastronomia e já contava com um belo currículo na área, comandando alguns restaurantes. Num primeiro momento, Bekeierman achou que Beto seria seu conselheiro, alguém que indicasse um jovem cervejeiro interessado em ingredientes. A surpresa foi o próprio Tempel mostrar interesse em ocupar esse cargo.
A chegada de Tempel foi determinante para a Trilha virar o que é hoje e consolidar seu flerte enófilo. Isso porque mal conhecia cerveja, mas era fã apaixonado de vinhos, dava até aulas na faculdade. Hoje, ele afirma, esse flerte com o mundo vitivinícola pode ir mais longe. “Quem sabe um dia a gente não produz nosso próprio vinho?” Como degustadora, digo que o questionamento faz sentido.
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