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Reportagem

Doce, mas nem tanto: a confeitaria em tempos do açúcar vilão

Do brigadeiro ao matchá, doceiros e doceiras mostram que é possível preservar sabor e tradição em sobremesas menos açucaradas, feitas com mais consciência e equilíbrio

Ana Elisa Faria 19 de Outubro de 2025

Doce, mas nem tanto: a confeitaria em tempos do açúcar vilão

Ana Elisa Faria 19 de Outubro de 2025

Do brigadeiro ao matchá, doceiros e doceiras mostram que é possível preservar sabor e tradição em sobremesas menos açucaradas, feitas com mais consciência e equilíbrio

O povo brasileiro aprendeu a celebrar com o açúcar. O bolo de aniversário chocolatudo com cobertura de brigadeiro, o pudim brilhando na fôrma, o quindim bem amarelinho e o pavê com bastante leite condensado atravessam gerações e suscitam lembranças que nenhum rótulo substitui. No entanto, à medida que cresce a consciência sobre os impactos negativos que o consumo excessivo dessa substância exerce na saúde, o prazer que ela proporciona passa a dividir espaço com a busca por equilíbrio.

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Esse desafio tem levado confeiteiros e confeiteiras a apostar em doces não tão doces sem que percam textura, estrutura, sabor e memória afetiva. Nessa nova era da confeitaria, o açúcar não é encarado como um vilão, mas como um ingrediente importante que deve ser usado com intenção e moderação.

Segundo profissionais, uma possível estranheza à primeira mordida pode ser sanada com o treino do paladar, experimentando outras formas de doçura e de adoçar as sobremesas.

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Trata-se de um ajuste cultural, e não de um decreto. Como afirma a confeiteira Joyce Galvão, criadora de conteúdo no Sobremesah e autora do livro “A Química dos Bolos” (Companhia de Mesa, 2017), o pilar da confeitaria hoje é a busca por doces mais equilibrados. “E a técnica possibilita diminuir a quantidade de açúcar sem afetar o resultado”, diz.

Nesta reportagem, Gama ouviu seis especialistas da área para mapear caminhos da doçaria em tempos de vilanização do açúcar, sem preconceito com a tradição brasileira, mas com apetite para novas referências e diferentes métodos.

Doce ultraprocessado X bolinho caseiro

Antes de ser onipresente, o açúcar foi raro, caro, até medicinal. “Com o tempo, ele deixou de ser especiaria e virou commodity. Barateou demais e, nos ultraprocessados, passou a ser usado de forma mascarada, assim como o sal e a gordura”, analisa Marilia Zylbersztajn, confeiteira reconhecida pelas tortas e pelos bolos artesanais. E é nesse ponto que mora a questão.

O consumo da substância no Brasil — país da cana-de-açúcar — é alto, mas, conforme aponta Zylbersztajn, e confirmam inúmeros nutricionistas, o principal vilão não é a pitada usada para adoçar o café ou preparar um docinho caseiro. O alerta maior recai sobre a quantidade embutida em produtos industrializados com alto grau de processamento, de refrigerantes a biscoitos, de iogurtes a balas. “Esse açúcar é o responsável pelas epidemias de diabetes e obesidade que vivemos atualmente.”

De acordo com a classificação do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da Faculdade de Saúde Pública da USP, o açúcar é um item culinário processado, e o risco não está no seu uso pontual, e sim na maneira e na frequência com que ele aparece na alimentação cotidiana.

O problema é a Coca-Cola, não o bolo de fubá feito em casa

Essa distinção ajuda a reorganizar a conversa pública: não se trata de “cancelar” as sobremesas, mas de tirar do piloto automático a doçura fácil dos ultraprocessados e recuperar o doce como comida — o que faz Zylbersztajn em sua confeitaria. “Não tenho receio de usar o açúcar, só que uso com equilíbrio num doce que é artesanal. Acredito que o problema é a Coca-Cola, não o bolo de fubá feito em casa”, resume a cozinheira.

Saúde, técnica e química

Há décadas, estudos associam o consumo em excesso do açúcar ao aumento do risco de desenvolvimento de doenças como diabetes tipo 2 e obesidade, problemas cardiovasculares, processos inflamatórios no intestino e no estômago, além de alguns tipos de câncer. Com esse cenário à vista, o convite para limar o excesso do ingrediente é urgente.

No laboratório da confeitaria, reduzir não significa apenas “tirar o açúcar”. Joyce Galvão, que também é formada em engenharia de alimentos, lista algumas funções: ele “adoça e realça o sabor; dá umidade e cor e ajuda na conservação”. Ou seja, tem propriedades químicas.

Em um purê de manga, por exemplo, cerca de 10% de açúcar refinado, explica Galvão, auxilia na intensificação do gosto adocicado e deixa a receita mais úmida. Quando a meta é diminuir o dulçor, a saída é entender qual é o papel do ingrediente em cada preparo e substituir no que for possível, sem prejudicar a forma.

“É entender a função específica do açúcar naquele momento e, então, escolher outro ingrediente, ou técnica, para chegar à textura, à cremosidade e à estabilidade desejadas”, desenvolve. Galvão cita o caso do suspiro e do merengue, que podem levar outros tipos de adoçantes, como a inulina, uma fibra vegetal que reduz a sensação de doçura sem derrubar a estrutura desses doces.

Brasil, cana e brigadeiro: cultura não se demoniza

Falar de doce no Brasil é falar de história e afeto: açúcar de cana, doçaria conventual adaptada ao paladar local, leite condensado que virou sinônimo de praticidade. Demonizar tudo isso é improdutivo; é ir contra costumes enraizados que, de certa maneira, trazem afetividade.

“Como negar o brigadeiro, uma receita nacional que está presente em 90% das festas de aniversário brasileiras? E o beijinho? É tão cultural. Não demonizo esse tipo de consumo”, diz Daniel Park, chef-executivo do Komah e do Komah Bakery, casas coreanas instaladas em São Paulo.

Joyce Galvão concorda: há espaço para tudo, do morango do amor ao doce equilibrado oferecido no restaurante — e o importante é momento, técnica, nicho e intenção do confeiteiro.

Como negar o brigadeiro, que está presente em 90% das festas de aniversário? É cultural. Não demonizo esse consumo

Como quase tudo na comida, os gostos também são culturais — e podem mudar com o tempo, com os hábitos, conforme as experimentações. “A gente treina o nosso paladar”, diz Marilia Zylbersztajn. Quando as sobremesas equilibradas, mais suaves, ganham espaço, o excesso deixa de ser sinônimo de prazer e dá lugar a lembranças mais sutis, como o gosto de casa de vó, com o bolo simples que encerrava um lanche de domingo.

Equilíbrio asiático

As confeitarias coreana e yogashi — feita no Japão, mistura técnicas ocidentais adaptadas para o público oriental, resultando em doces mais leves, com frutas, menos enjoativos — trabalham a doçura com comedimento e constroem sabor com outros elementos, como acidez, amargor e umami, presente no missô, utilizado para fazer um caramelo salgado.

Um doce não precisa arranhar a garganta para ser bom

“Pela característica do estilo yogashi, já utilizamos menos açúcar nas receitas”, conta a confeiteira Vivianne Wakuda. No começo, lembra, as sobremesas que fazia causavam certa estranheza, sobretudo para pessoas não asiáticas. “Há mais de dez anos, quando assumi uma confeitaria e consegui colocar a minha assinatura, com menos dulçor, o matchá, que traz notas herbáceas, levemente amargas, ainda não era tão comum, e os clientes estranhavam.”

Hoje, segundo observa Wakuda, o público está mais acostumado ao equilíbrio e aberto para novidades. “Um doce não precisa arranhar a garganta para ser bom”, frisa.

No Komah Bakery, Daniel Park detalha ajustes de base. “Quando a gente faz a pâte à choux [massa básica da confeitaria francesa], reduzimos mais de 50% do açúcar da receita tradicional, adaptando a técnica para manter a consistência e o resultado que desejamos”. O efeito disso aparece nas compras do grupo Komah.

“Vendemos mais ou menos entre mil e duas mil sobremesas por mês usando cerca de dez quilos de açúcar, e olha lá, somando os produtos de confeitaria e de padaria”, aponta Park.

O açúcar como coadjuvante

Instalada em Lisboa, a confeiteira paulistana Juliana Penteado defende o uso do açúcar como tempero, não como protagonista. No lugar, ela explora frutas e óleos essenciais para construir sabores diferentes e suaves.

A comida precisa ser gostosa e oferecer satisfação, independente de ter menos açúcar

Na cozinha de Penteado, esses óleos (tem de bergamota, yuzu, cardamomo, flor de laranjeira, estragão, alecrim, limão, entre outros) entram para trazer nuances aromáticas. No seu trabalho, o açúcar não é proibido, mas o ingrediente tem de fazer sentido para estar ali. “Para mim, primeiro, a comida precisa ser gostosa e oferecer satisfação, prazer, independentemente de ter menos açúcar”, pontua.

A cozinheira é consciente em relação à utilização do açúcar em demasia, mas não é purista. “Um quindim e um pudim de leite exigem essa carga do açúcar. Quem vai comer essas sobremesas sabe que vai sentir o açúcar. Acho que a discussão passa um pouco pelo bom senso porque tem espaço para tudo.”

Técnica clássica, acabamento leve

Andreia Ko, da Kosmos Bakeshop, confeitaria de acento sul-coreano localizada na Vila Buarque, região central de São Paulo, mantém as bases francesas, em que o açúcar tem papéis estruturais claros. Entretanto, o excesso do ingrediente é poupado nos recheios e nas caldas, priorizando frutas, como o morango, e busando equilíbrio.

“No Brasil, tem gente que usa guaraná para caldar um bolo ou caldas muito açucaradas. Eu uso um terço do açúcar da receita que é para ele ficar molhadinho mesmo, bem levinho e aerado”, conta. O resultado? Fatias generosas que “não pesam”. “Os bolos não voltam. O público entende que é leve e come sem culpa.”

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