Um toque amargo para equilibrar — Gama Revista
Ilustração Mariana Simonetti

Um toque amargo para equilibrar

Evolução do paladar do brasileiro explica a preferência crescente pelos sabores cada vez mais amargos, tanto na mesa quanto no bar

Flávia G. Pinho 12 de Novembro de 2021

País da cana de açúcar, dos doces em compota e do leite condensado, o Brasil parece ter descoberto, finalmente, o valor do sabor amargo. Ele está cada vez mais presente nas cervejas, na coquetelaria, na gastronomia e até, quem diria, nos momentos de indulgência, no formato de barras de chocolate com altíssimo teor de cacau e quase nenhum açúcar. Mas para entender esse movimento – que os especialistas consideram uma evolução do paladar – é preciso compreender todo o intrincado mecanismo fisiológico e cultural envolvido no processo de percepção do amargor.

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Rejeitar, ou ao menos desconfiar do sabor amargo, não é frescura. Segundo a nutricionista Carina Carlucci Pallazzo, do Laboratório de Práticas e Comportamento Alimentares da Universidade de São Paulo, tem a ver com funções básicas de manutenção da espécie. “Alimentos muito amargos podem conter componentes tóxicos ou estar estragados, por isso nascemos programados para rejeitar o amargor. O bebê gosta naturalmente do doce, mas certamente cospe qualquer comida amarga. Gostar do amargo é um aprendizado.” Identificar o amargo é tão importante para a autopreservação que a língua humana tem muito mais receptores dedicados a ele, em comparação com a capacidade de perceber outros sabores. Mas a predisposição genética também entra nessa conta – de acordo com Palazzo, quanto mais sensível ao amargor, mais chance a pessoa tem de torcer o nariz para alimentos muito amargos.

Gostar do amargo é um aprendizado

A fisiologia humana ajuda a explicar por que o amargo, historicamente, também foi tratado como algo negativo. Comecemos pelo dicionário: amargo é aquilo que tem sabor desagradável, mas também é sinônimo de doloroso, penoso, cheio de tristeza ou sofrimento. E foi com esse sentido que as mais diversas manifestações culturais se apropriaram da palavra. Na música “Cálice” (1978), Chico Buarque rechaça a bebida amarga. Em “Tempo Perdido” (1986), a banda Legião Urbana contrapõe o suor sagrado ao sangue amargo. A dupla Chitãozinho e Xororó chora um amor não correspondido na canção “Gosto Amargo” (1985).

Na literatura, o escritor Bartolomeu Campos revisita as memórias de uma infância dolorosa em “Vermelho Amargo” (Global Editora, 2017). João Gabriel Paulsen venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2019 com “O Doce e o Amargo” (Record, 2019), contos nos quais ele trata de amor e prazer, mas também de ódio e dor – não é difícil adivinhar que sentimentos o autor considera amargos. Até a Bíblia reforça o sentido negativo do amargor, não por acaso no livro do Apocalipse: “Pega e come. Será amargo no estômago, mas na tua boca, será doce como mel”, diz o profeta João, referindo-se à própria palavra de Deus.

Uma questão de equilíbrio

O que explica, então, que o amargo esteja sendo tão valorizado no mundo contemporâneo, contrariando o que a natureza e a cultura nos impuseram ao longo de milênios? Muito provavelmente, porque os mestres da cozinha e do bar descobriram formas de equilibrar o amargor, fazendo com que ele carregue junto de si uma complexidade de notas deliciosas e envolventes, que jamais seriam perceptíveis em uma colherada de geleia ou em um licor adocicado.

Um dos bartenders mais prestigiados de São Paulo, Jean Ponce, do Guarita Bar, conta que o amaríssimo Fernet é cada vez mais popular nos drinques autorais, dentro de coquetéis que calibram seu sabor com elementos doces e ácidos. “É uma questão de evolução do paladar. Eu já achei o Negroni amargo, mas hoje o considero até doce”, diz Ponce.

Mestres da cozinha e do bar descobriram formas de equilibrar o amargor, fazendo com que carregue junto de si notas deliciosas e envolventes

No universo cervejeiro, também é nítida a queda do brasileiro pelo amargor. Sócio e professor da escola Instituto da Cerveja, Alfredo Ferreira ajuda a traçar essa linha do tempo – no passado recente, o mercado era dominado pela Pilsen, com teor de amargor lá embaixo, na faixa de 7 a 9 IBUs (sigla para international bitterness unit, ou unidade internacional de amargor, em tradução livre). A Pilsen serviu de porta de entrada, mas o consumidor começou sua escalada rumo às cervejas mais amargas assim que elas chegaram ao mercado. Passou pelas Weizenbiers e Witbiers, cervejas de trigo das escolas alemã e belga, cujo IBU costuma atingir 17, até chegar às Lagers e IPAs, com IBU de 20 para cima.

A razão de tanto apreço pelas amargas? O lúpulo de qualidade superior, que não agrega apenas amargor – as flores são cultivadas com o propósito de incorporar uma enorme gama de aromas, notas essas que aportam complexidade à bebida. Tem gente que se entusiasma tanto que vai além, buscando estilos que só fazem sucesso entre os aficionados, como o Imperial ou Double India Pale Ale, que pode chegar a 120 IBUs. “São cervejas que despertam a curiosidade do consumidor mais pela experiência inusitada, mas podem até assustar no primeiro gole”, diz o especialista.

O único amargor que tem perdido espaço no universo das bebidas é o do café. Fácil entender por quê – nesse caso, o sabor amargo é sinal de defeito. Cafés cultivados e beneficiados sem cuidado têm problemas sensoriais graves, que a torra excessiva ajuda a disfarçar. A solução é combater o amargor com colheradas fartas de açúcar, hábito arraigado nas padarias, botequins e residências Brasil afora. No interior de tradições caipiras, resiste inclusive o hábito de coar o café no dulcíssimo caldo de cana fervente. Já as cafeterias da nova geração, dedicadas aos cafés de alta gama, estimulam o consumo da bebida sem traço de açúcar, por ser totalmente livre de amargor.

A expertise brasileira

O equilíbrio entre amargor e outros sabores também está na raiz de receitas culinárias tradicionais mundo afora, segundo Renata Braune, head chef da escola Le Cordon Bleu São Paulo. É o caso da endívia gratinada com presunto cru, famoso prato francês, e do radicchio italiano, que comumente ganha a companhia de queijo gorgonzola. “O amargo é um sabor poderoso. Se eu entro com notas de gordura, acidez e até picância, equilibro a receita e atenuo o amargor”, ensina.

Não nos damos conta de que usamos tantos elementos amargos. Basta ver a couve com feijoada: a verdura amarga equilibra a gordura do prato

Na cozinha brasileira, o amargo é presença cativa faz tempo – e, instintivamente, soubemos dosá-lo da maneira que, hoje, os professores de gastronomia ensinam nas faculdades. “A gente não se dá conta de que usa tantos elementos amargos. Basta ver a combinação de agrião com rabada, ou de couve com feijoada: a verdura amarga equilibra a gordura do prato”, diz Mara Salles, chef do restaurante Tordesilhas, em São Paulo, e dedicada pesquisadora da culinária tradicional brasileira. Em suas andanças pelo Brasil profundo, Mara teve oportunidade de conferir de perto a relação que cada região tem com o sabor amargo. Embora jiló, almeirão, catalonha e chicória, os nossos campeões de amargor, apareçam em feiras de norte a sul, é no Nordeste, ela diz, especialmente no sertão, que eles são mais apreciados. “Acredito que pessoas com vínculo forte com a terra são mais abertos aos alimentos que o bioma oferece”, afirma a chef.

Quem duvida que o sabor amargo faça sucesso na mesa do brasileiro, basta analisar a força que a cozinha da brasa alcançou nos últimos anos – aquele queimadinho típico que deixa os alimentos agradavelmente defumados também é amargo. E não é só na churrasqueira que essa mágica acontece. No restaurante paulistano Quincho, cuja cozinha não trabalha com carnes, a chef Mari Sciotti deixa sua lasanha de cebolas-roxas assadas tostar no forno, até que as bordas da massa fiquem pretinhas.

Não teríamos espaço para lançar esse chocolate anos atrás

Poucos alimentos exemplificam o novo status do sabor amargo para o brasileiro, porém, quanto o chocolate. Conforme o teor de cacau foi subindo nas barras, a quantidade de açúcar foi sendo reduzida, a ponto de chegar a zero. No mais recente lançamento da marca Barry Callebaut, o Whole Fruit tem 100% de sua matéria-prima oriunda do cacau – inclusive o açúcar natural, que vem da polpa da fruta.

Head chef da Chocolate Academy, escola mantida pela Callebaut em São Paulo, o francês Bertrand Busquet chegou há 11 anos ao país e, como todo estrangeiro, se impressionou com o gosto do brasileiro pelos sabores bem doces. Em pouco mais de uma década, viu o chocolate ao leite perder gradativamente o lugar de mais vendido – atualmente, ele conta, o chocolate mais adocicado iguala em vendas com o 70% cacau. Mas o Whole Fruit, na sua opinião, representa uma evolução e tanto. “Não teríamos espaço para lançar esse chocolate anos atrás.”

Tudo indica que, em pouco tempo, o adjetivo amargo terá outro significado no dicionário, na literatura, na música e até nos ditados populares – será que um dia chegaremos a considerar que uma vida amarga é cheia de sabor?

logo cerveja becks

Este conteúdo é parte de uma série sobre o sabor amargo, produzida com o apoio da cerveja Becks.

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