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Ilustração de Isabela Durão

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Conversas

Ha-Joon Chang: "Insetos são a proteína animal mais ecológica. Por que não estamos comendo?"

Autor de livro que usa a comida para democratizar o ensino da economia, economista sul-coreano defende a diversidade na mesa e nas finanças, e questiona foco na carne bovina

Leonardo Neiva 19 de Outubro de 2025

Ha-Joon Chang: “Insetos são a proteína animal mais ecológica. Por que não estamos comendo?”

Leonardo Neiva 19 de Outubro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Autor de livro que usa a comida para democratizar o ensino da economia, economista sul-coreano defende a diversidade na mesa e nas finanças, e questiona foco na carne bovina

Sabe o que o quiabo tem a ver com a economia de livre mercado? Ou já ouviu falar que a história do camarão na alimentação pode servir de exemplo para a relevância do protecionismo econômico nos países em desenvolvimento? Essas relações podem soar esdrúxulas — afinal, comida e economia parecem universos distantes. Mas elas estão na base de “Economia: Modo de comer” (Portfolio Penguin, 2025), livro em que o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, 62 anos, busca quebrar as barreiras entre esses dois mundos.

A comida é também a mais nova estratégia da qual o autor lança mão em sua cruzada para tornar acessível e traduzir para o público conceitos centrais da economia. “Se você vive em uma sociedade capitalista neoliberal como a nossa, tudo é decidido pela perspectiva econômica. Se você não entende de economia, qual o significado de votar nas eleições?”, questiona Chang em entrevista a Gama.

Autor de best-sellers como “23 Coisas que Não Nos Contaram Sobre o Capitalismo” (Cultrix, 2013) e “Economia: Modo de usar” (Portfolio Penguin, 2015), ele é especialista nas perspectivas econômicas de países em desenvolvimento. Por isso, acabou entrando em contato com a gastronomia de diversas partes do mundo, incluindo a do Brasil, pela qual conta ter se apaixonado.

Chang foi professor na Universidade de Cambridge por mais de três décadas e hoje leciona na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, cidade para onde se mudou em 1986. Sua trajetória pessoal e profissional é um exemplo vivo de como a lógica do dinheiro afeta aquilo que comemos, e vice-versa.

 Divulgação

Nascido e criado numa Coreia do Sul com sérias limitações financeiras, ele viu a política protecionista do governo transformar produtos aparentemente baratos e universais, como a banana, em artigos de luxo. Por outro lado, também presenciou exemplos de que a falta de recursos faz alimentos considerados incomíveis passarem a integrar a dieta básica de uma população. Essas experiências estão na base da sua defesa de ingredientes a exemplo dos insetos, vistos com nojo e desconfiança em boa parte do mundo, como alternativa para uma alimentação mais sustentável e menos dependente de algumas poucas opções.

Para Chang, a economia precisa ser como o cardápio de uma cultura gastronômica rica e diversa — quando há várias alternativas na mesa, somos capazes de escolher a mais adequada para a ocasião, em vez de ficar restritos a uma mesma regra universal. Foi um impasse que o economista enfrentou quando vivia na Coreia do Sul, em que as opções eram poucas, e também mais tarde, ao se mudar para a Londres pré-revolução gastronômica.

Em sua obra, o autor faz relações inusitadas, usando a abundância e versatilidade de uma fruta como o coco para explicar a visão preconceituosa e recorrente em relação aos países tropicais: a ideia de que a abundância de recursos torna as populações preguiçosas e pouco desenvolvidas. Chang também aborda na conversa com Gama os impactos da política tarifária de Trump, fala de como a economia explica os hypes na gastronomia e por que precisamos repensar nossa obsessão por carne bovina.

Se quisermos comer apenas uma coisa o tempo todo, isso vai destruir o meio ambiente

  • G |Por que escrever um livro sobre economia a partir da história da alimentação?

    Ha-Joon Chang |

    A resposta curta é que eu gosto de comida e de economia, então por que não conversar sobre as duas coisas juntas? A mais longa é que, nos últimos 20 anos, tenho me engajado nessa cruzada pessoal para promover a compreensão da economia entre os cidadãos comuns. Se você vive em uma sociedade capitalista neoliberal como a nossa, tudo é decidido pela perspectiva econômica. Do ensino de literatura ao financiamento de artes e museus, tudo precisa justificar sua existência em termos de dinheiro. Se você não entende de economia, qual o significado de votar nas eleições? Então, tenho tentado tornar a economia acessível. Para livros de economia, os meus são até bem fáceis de entender. O problema é que, quando você toca no assunto, as pessoas já dizem: não estou interessado. Então, pensei numa maneira de enganá-las, dando a elas coisas mais interessantes. E acho que funcionou.

  • G |Muitos capítulos contam como você passou a apreciar certos pratos e ingredientes em suas viagens pelo mundo. A sua perspectiva sobre a comida mudou por meio dessas experiências?

    HJC |

    Quando eu morava na Coreia do Sul, era um país muito pobre, com pouco dinheiro para importar coisas do exterior. O governo na minha infância, nos anos 1960, 70 e 80, estava tão empenhado na industrialização que não queria gastar dinheiro importando alimentos estrangeiros, nem mesmo bananas. É uma das coisas mais baratas do mundo, mas, quando éramos crianças, a banana era como caviar. Muitas crianças sonhavam em comer banana. Até o país enriquecer e as pessoas serem autorizadas a viajar para o exterior, no final da década de 1980, as viagens de lazer eram desconhecidas. Era um horizonte alimentar muito limitado. Tínhamos a comida coreana, a chinesa, por causa da pequena comunidade de imigrantes, e a japonesa, porque fomos colonizados pelo Japão. Quando cheguei à Inglaterra, a comida inglesa ainda era muito ruim, mas aos poucos o país foi se abrindo para novas tendências culinárias. Comecei a viajar para o exterior a trabalho e, por ser economista do desenvolvimento, fui muito a países latino-americanos. Me apaixonei pela comida brasileira. Depois que conheci outras coisas, fiquei simplesmente extasiado.

  • G |Mas você sempre teve um interesse especial no assunto?

    HJC |

    Claro, é preciso ter a mente aberta. Nos anos 1980 e 90, muitos britânicos que iam de férias para a Espanha ou Portugal procuravam comer fish and chips ou McDonald’s. Mas, uma vez que você abre sua mente, é uma variedade culinária que torna sua vida muito mais rica. E não necessariamente comidas caras. Feijoada é comida de escravizados. Na Índia ou na Etiópia, eles usam ingredientes vegetais, então não são caros. Estar disposto a experimentar coisas novas torna sua vida mais rica. O mesmo vale para as ideias. Quando for ler sobre economia, não leia apenas um tipo. Eu me considero um pluralista, aprendi tanto com Friedrich von Hayek [representante da Escola Austríaca] quanto com Marx. Discordo das conclusões de ambos, mas são grandes economistas. A maioria das pessoas quer aprender apenas um tipo de economia e acha que é a melhor. Elas têm diferentes pressupostos éticos e políticos, de modo que nenhuma explica tudo. Temos que aprender coisas diferentes e tentar construir nossas próprias ideias. Da mesma forma que saímos e comemos comidas diferentes. Os brasileiros estão comendo comida sul-coreana, os sul-coreanos estão comendo comida mexicana. É muito chato e provavelmente ruim para a saúde comer apenas um tipo de comida.

  • G |O presidente Trump está estabelecendo tarifas para quase todos os países, o que afeta a economia e até o acesso a certos ingredientes no mundo. Neste momento, é essencial entender mais do assunto?

    HJC |

    Isso realmente nos atingiu em cheio. Até o século 19, a economia era chamada de economia política, porque os economistas sabiam que não se pode separar as duas coisas. No final do século 19, surgiu a economia neoclássica, que tentou transformar a economia em ciência, tornando-a apolítica. Mesmo depois de um século expurgando a política da economia, ainda temos premissas políticas fundamentais sobre desigualdade e pobreza. Então, se você acredita que, qualquer que seja o seu impacto no crescimento econômico, a alta desigualdade é ruim, nenhum desses argumentos de livre mercado funciona. Trump trouxe a política para a superfície da economia, impondo tarifas altas ao Brasil porque não gosta da forma como Bolsonaro está sendo tratado. Fica difícil argumentar sobre a economia sem referência à política. Pode ser um bom momento para fazer as pessoas perceberem isso. Não podemos deixar para os tecnocratas, porque eles fingem ser cientistas ou técnicos. Talvez algumas das coisas que essas pessoas estão fazendo sejam boas, mas precisamos chegar a essa conclusão dentro de uma sociedade democrática.

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  • G |Movimentos protecionistas como o de Trump podem ameaçar a disseminação de certos alimentos e culturas pelo mundo?

    HJC |

    Como tudo, o protecionismo pode ser usado para o bem ou para o mal. Países como Japão e Coreia do Sul usaram nas décadas de 1950, 60 e 70 para transformar suas economias de agrárias e pobres nas de países industrializados. O Brasil e vários outros países latino-americanos tiveram um grau de sucesso no desenvolvimento econômico pela industrialização, o que exigiu protecionismo. Se você está iniciando uma nova indústria em um país pobre, não há como sobreviver sem proteção. Da mesma forma que protegemos e nutrimos nossos filhos até que possam competir no mercado de trabalho, precisamos proteger essas indústrias jovens da concorrência de produtores já estabelecidos. As proteções podem ser usadas a longo prazo até para aumentar o poder de compra e a diversidade de coisas que você pode consumir. Mas isso só tem bons resultados em países em desenvolvimento. O que Trump está dizendo é: eu tenho esse filho de 50 anos que administrou mal seus negócios e comprou uma casa que não pode pagar. Agora vou dar algum dinheiro para ele se recompor. Ele está dando proteção só às empresas americanas, o que significa que elas vão aumentar os preços e vender produtos de qualidade inferior ao que as pessoas poderiam importar do Japão, da Coreia ou da China.

  • G |Quando você deixou a Coreia do Sul, o cenário da cultura sul-coreana no mundo era muito diferente. Hoje, conhecemos a comida, a música e o cinema do país. Quanto esse tipo de soft power [influencia cultural de um país]contribui para o crescimento de um país?

    HJC |

    É difícil quantificar, porque ele opera no nível psicológico. Mas sem dúvida contribui para a economia. As pessoas têm uma imagem positiva da Coreia do Sul e estão mais dispostas a comprar produtos sul-coreanos. Para países que não costumavam ter esse domínio cultural que os americanos, britânicos e franceses têm, isso é muito importante. Se você voltar na história, vai ver que, no século 19, a Alemanha era o país de onde vinham os produtos baratos e de baixa qualidade. Na década de 1950, era o Japão. Depois a Coreia fez isso. Basicamente, você desenvolve sua economia, e isso se traduz em soft power. Alguns países são melhores em fazer isso do que outros — e os sul-coreanos são muito bons nisso. Nossos filmes, nossa música, nossa comida são bons, mas às vezes acho que as pessoas estão superestimando nossas qualidades. É um contraste enorme em relação a quando cheguei à Inglaterra, em 1986. Se eu dizia que era sul-coreano, as pessoas perguntavam: “Você fala japonês ou chinês?” Ninguém tinha ideia de onde o país ficava. Hoje em dia é incrível. Mas a Coreia do Sul pode ter tido enorme sucesso econômico, desenvolvido soft power, mas também tem muitos problemas. Temos a menor taxa de natalidade do mundo e a maior taxa de suicídio, de pobreza na terceira idade e de disparidade de gênero. Nós sul-coreanos nunca fazemos as coisas pela metade, sempre nos tornamos número um em tudo. Infelizmente, muito do que fazemos é ruim.

  • G |Hoje existem várias modas gastronômicas, como o matcha e o pistache. Aqui no Brasil, tivemos uma sobremesa com morango que ficou tão famosa que a fruta começou a sumir do mercado. Como a economia explica essas tendências no mercado da alimentação?

    HJC |

    Em termos econômicos, você explica isso como uma forma de consumo conspícuo, uma noção desenvolvida pelo economista do século 19, Veblen, para explicar o consumo dos ricos. Mas pode ser aplicada a qualquer comportamento de consumo, porque a questão é que você está consumindo algo para mostrar às pessoas. Com a disseminação da internet, Instagram e TikTok, você tem que ir a um restaurante para mostrar que esteve lá. E também comer certos alimentos porque é supostamente a coisa mais saudável ou saborosa do mundo. E continuamos tendo essa moda para certos ingredientes: o abacate, o pistache, o morango… O consumo é um comportamento social. Se vivesse sozinho em uma nave espacial e tivesse um chef computadorizado cozinhando tudo, você não seria influenciado por essa moda. Mas os humanos sempre viveram como seres sociais, então têm que consumir e ser vistos consumindo certas coisas.

É absurdo. Para comer uma coisa, estamos causando um dano enorme ao planeta

  • G |Mas essas tendências também têm um lado negativo, não?

    HJC |

    Infelizmente, às vezes alguns ingredientes se tornam tão populares que acabam tendo impacto no meio ambiente. Abacate e pistache são plantas que consomem muita água. Então, quando você cultiva essas coisas, tira água de outras. Em países como o México, aparentemente, o crime organizado controla o cultivo de abacate porque ele é muito precioso. E é preciso ter acesso à água, que eles usam de violência para conseguir. O salmão é um peixe muito popular hoje em dia. No Chile, para cultivar salmão, estão poluindo o sistema hídrico muito gravemente. Então, essas modas passageiras não são uma coisa muito boa.

  • G |Muitos ingredientes até mais interessantes para nossa alimentação acabam sendo deixados de lado?

    HJC |

    No livro, eu tento dizer às pessoas: algumas coisas que vocês acham que não são comida na verdade são. Os insetos são meu exemplo favorito. Na minha juventude, comíamos insetos como petiscos. Os mexicanos ainda comem gafanhotos, os chapulines [tipo de gafanhoto que inspirou o Chapolin Colorado]. E insetos são a proteína animal mais correta ecologicamente, têm uma taxa de conversão em proteína muito alta e usam pouquíssima água. Então, por que não estamos comendo? Muitas pessoas acham nojento, mas comem alegremente camarão, que é essencialmente o mesmo tipo de animal. Ambos são artrópodes, com exoesqueleto, antenas e múltiplas pernas. Qual a diferença? Também acho que deveríamos consumir mais plantas marinhas. A maioria das pessoas fora do Japão e da Coreia do Sul só come nori, a alga preta do sushi. Mas há vários tipos muito saborosos. Cientistas e chefs já estão criando pratos a partir de plantas marinhas, afinal, há mais mar do que terra no planeta. Para salvar o meio ambiente e tornar sua dieta mais interessante, deveríamos consumir mais coisas. Porque, quando todo mundo quer carne bovina, acabamos destruindo o planeta.

  • G |Nessa perspectiva, qual você aponta como o ingrediente mais importante econômica e ambientalmente no século 20?

    HJC |

    No século 20, sem dúvida, a carne bovina. Eu gosto de carne bovina, mas, em nosso desejo de comer cada vez mais, estamos destruindo a Floresta Amazônica. Um professor famoso chamou a Terra de planeta das vacas porque, em termos de biomassa, elas são quem mais ocupa o globo hoje. Eu não sou vegetariano nem contra comer carne bovina, mas precisamos comer menos. Devemos produzi-la de forma mais sustentável. Nosso desejo por carne bovina impulsionou nosso sistema alimentar. Muito da soja exportada do Brasil e da Argentina é usado para alimentar as vacas na China e nos EUA, em vez de fazer tofu, que é outra proteína muito boa e tristemente subestimada. É absurdo. Para comer uma coisa, estamos causando um dano enorme ao planeta.

  • G |E o que é possível prever sobre os ingredientes centrais para o século 21?

    HJC |

    Espero que não seja só uma coisa, mas sim muitas e mais incomuns. Então, tofu, insetos ou plantas marinhas. Os sul-coreanos comem muitas plantas que crescem nas montanhas, que não têm nome da maioria das línguas. Nossos ancestrais aprenderam a comê-las porque eram extremamente pobres. Algumas delas exigem processamento, porque estão cheias de substâncias tóxicas. Você precisa fervê-las, secá-las e fervê-las novamente. Mas elas também podem ser muito saborosas. O mais importante é que sejam ingredientes variados, porque, se quisermos comer apenas uma coisa o tempo todo, isso vai destruir o meio ambiente.

Produto

  • Economia: modo de comer
  • Ha-Joon Chang (trad. Cássio de Arantes Leite)
  • Portfolio Penguin
  • 256 páginas

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