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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

O que está por trás do revisionismo histórico de Trump?

O presidente norte-americano vem acumulando interferências em museus e obras públicas, no que especialistas enxergam uma tentativa de alterar o passado

Leonardo Neiva 05 de Outubro de 2025

O que está por trás do revisionismo histórico de Trump?

Leonardo Neiva 05 de Outubro de 2025
Ilustração de Isabela Durão

O presidente norte-americano vem acumulando interferências em museus e obras públicas, no que especialistas enxergam uma tentativa de alterar o passado

Primeiro, foram os museus. Em agosto, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que daria início a uma análise do acervo de instituições norte-americanas do setor — em especial do Smithsonian —, criticando o foco de algumas exposições em temas como a escravidão e naquilo que chamou de ideologia “woke”. “O Smithsonian está fora de controle, onde tudo o que se discute é o quão horrível é o nosso país, o quão ruim era a escravidão e o quão malsucedidos os oprimidos têm sido. Nada sobre sucesso, nada sobre brilho, nada sobre o futuro”, disse em um post na sua rede Truth Social.

Em seguida, os parques foram o alvo. No mês de setembro, passaram a ser retiradas de parques nacionais norte-americanos placas e mostras ligadas a figuras negras emblemáticas e ao passado escravocrata. A ação aconteceu em consonância com um decreto assinado em março pelo presidente, que falava em eliminar informações que refletissem uma “ideologia corrosiva”, supostamente colocando em xeque “as marcantes conquistas dos Estados Unidos ao colocar seus princípios fundadores e marcos históricos sob uma luz negativa”.

Reprodução de
Reprodução de “Scourged Back” (as costas de um homem açoitado), imagem retirada recentemente de um parque nos EUA; a foto mostra as cicatrizes de Peter Gordon, homem escravizado que fugiu na Louisiana
Reprodução: McPherson & Olive/National Gallery of Art

Especialistas apontam que iniciativas como essa representam uma tentativa do presidente norte-americano de alterar a própria história do país. Um projeto que o historiador e pesquisador Arthur Ávila prefere chamar de mobilização reacionária, uma amostra de “desdemocratização” do passado por parte do presidente.

“O grande interesse do governo Trump — e esse é um interesse comum dos governos que instrumentalizam a história para seu próprio benefício — é criar uma representação do passado que o legitime”, declara Ávila, especialista em historiografia norte-americana e no uso político do passado. Por isso, segundo ele, ações como essas não são propostas do Estado norte-americano, mas sim projetos do movimento MAGA (Make America Great Again).

Trata-se de uma tentativa de apagamento a partir da linguagem, segundo o curador e secretário de gestão cultural do Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira), Jil Soares. “Ele vem tentando aplicar uma nova verdade, se utilizando da prática do negacionismo.”

O grande interesse do governo Trump é criar uma representação do passado que o legitime

De acordo com o curador, essas ações não atingem só a população negra ou a temática da escravidão, mas todo um coro de vozes que os museus vêm abrigando, e que foram invisibilizadas ao longo de séculos, como a população LGBTQIA+. Soares evoca um outro exemplo dessa tentativa de apagamento: a exclusão de quase 200 palavras do léxico do governo, promovida no início do governo Trump — termos como “antirracismo”, “orientação” e “transexual”, todos supostamente identificados com o vocabulário “woke”.

Esse tipo de abordagem, no entanto, não é exclusivo do governo do país, aponta Fernando Romani Sales, pesquisador do LAUT (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) e doutorando em direito constitucional na USP. A tática tem sido figurinha carimbada entre líderes de tendência autoritária pelo mundo, do período Bolsonaro no Brasil ao primeiro-ministro Viktor Orbán na Hungria. “É uma espécie de clube. Parece que esses líderes se utilizam de um manual de estratégias comuns, e uma delas é justamente o revisionismo histórico, seja por meio da cultura, da educação ou da pesquisa”, afirma.

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Retórica do apagamento

O foco no passado escravocrata e no racismo, de acordo com Ávila, faz parte de uma busca não só por excluir determinados grupos e comunidades da história do país, mas também “mobilizar a história para uma agenda profundamente anti-imigratória“. “J.D. Vance [vice-presidente dos EUA] deu uma declaração dizendo que pessoas como ele é que haviam construído o país com seu sangue e trabalho”, acrescenta Ávila. “Não precisa ser muito inteligente para perceber o que ele quer dizer: homens brancos, cujas famílias estão há gerações nos EUA.”

A intenção não é chegar tão longe a ponto de negar a existência da escravidão. Segundo o pesquisador, a proposta real é mostrar que, embora tenha ocorrido, não é assim tão importante lembrar dela — nem de coisas como a segregação racial ou a violência social. Afinal, todas elas impediriam a tão almejada visão heroica da história do país.

O pensamento está no cerne da proposta MAGA de tornar o país grande e celebrado novamente, por meio da recuperação de um passado idealizado. “A ideia é que, nos anos 50 e 60, os EUA entraram num processo de decadência, e cabe ao movimento MAGA redirecionar a nação ao seu destino glorioso”, afirma Ávila.

Sabe aquela retórica de que todo mundo é igual, independentemente de cor, raça, gênero etc.? O argumento é outra das justificativas utilizadas para atacar o que seriam narrativas disruptivas, acusadas pela extrema-direita de criar tensões raciais e sociais desnecessárias, segundo Sales. Mas também ignorando convenientemente um passado de exploração e colonialismo que levou às muitas desigualdades atuais.

“Essa justificativa é muito contundente no decreto que ele assinou pedindo intervenção no Instituto Smithsonian”, explica o pesquisador do LAUT. “Ele diz que os museus têm sido dominados por ideologias que vão na contramão de exaltar a história do povo americano… Como se o povo americano fosse uma coisa só. Só que a própria Declaração de Independência dos EUA e as cartas de direitos que vieram depois foram escritas por homens brancos, donos de escravos, que faziam parte de uma elite intelectual econômica.”

Outro destaque aí é o uso do termo “ideologias” que, diz Sales, coloca o governo Trump numa falsa posição de neutralidade. “É como se ele não tomasse nenhum partido e estivesse simplesmente tirando toda a ideologia dos museus e da história.”

Brasil e EUA

No caso do Brasil, também existiu, durante o governo Bolsonaro, uma estratégia de alteração do passado, segundo especialistas consultados por Gama. Mas o foco era outro: a ditadura e o golpe de 1964, rebatizado por membros da extrema-direita como revolução. Além do discurso oficial do ex-presidente em defesa das ações dos militares, houve declarações como a do então ministro da educação Ricardo Vélez, a favor de alterar os livros didáticos para “resgatar uma versão da história mais ampla” sobre o período da ditadura.

O historiador e pesquisador Pedro Zarotti realizou em 2022 seu trabalho de mestrado com foco no revisionismo com base ideológica dentro das salas de aula brasileiras. Segundo o estudo, questões como a ditadura, a escravidão e até as origens do nazismo são frequentemente contestadas nas escolas por estudantes e também pais ou responsáveis.

“Esse discurso coloca em xeque não só a autoridade do professor dentro da sala de aula, mas o próprio conhecimento”, afirma o historiador. “Não é um fenômeno específico do Brasil, está acontecendo em várias partes do mundo e prejudicando a educação dos alunos.”

O trumpismo é ambíguo na sua relação com o passado americano: fala da figura do Martin Luther King e reivindica Lincoln

O movimento conversa com a defesa que a extrema-direita faz de projetos como o Escola Sem Partido, criado sob o pretexto de proteger os jovens brasileiros de uma suposta doutrinação de esquerda. No caso norte-americano, Ávila evoca regras recentes como a medida no Texas que obriga escolas públicas a exibir os dez mandamentos nas salas de aula.

Já na Flórida, políticos aprovaram nos últimos anos uma lei para censurar nas escolas livros com temas que consideram controversos, como a presença de personagens LGBTQIA+ e críticas ao racismo. “É muito similar ao que poderia acontecer no Brasil se o Escola Sem Partido tivesse passado”, afirma o historiador.

Mas, segundo Ávila, também há diferenças fundamentais entre as abordagens dos dois países. “O bolsonarismo, sobretudo em relação à ditadura, era afirmativo. Ele reivindicada esse passado ditatorial. Já o trumpismo é mais ambíguo na sua relação com o passado americano. Tanto que ele fala da figura do Martin Luther King e reivindica Lincoln.”

Pós-verdade

Relativamente recente, o termo define um estado de coisas em que os fatos têm menos relevância do que emoções e opiniões pessoais. Para Sales, o pós-verdade tem tudo a ver com a atual estratégia do governo Trump. “A pessoa pode simplesmente dizer: eu acho que a escravidão não aconteceu. Fica difícil estabelecer um pressuposto comum do debate público quando existe uma equiparação entre coisas que não são equiparáveis.”

Embora o termo seja novo, a prática é antiga. Ávila lembra que algo semelhante já acontecia no sul dos EUA com as leis de segregação racial Jim Crow, vigentes no período entre 1877 e 1960. Na época, grupos da sociedade civil controlavam de forma rígida instituições de educação e de construção de memória, de acordo com o historiador.

“Pressionavam para que, na história ensinada nas escolas do sul, não houvesse nenhuma difamação de seus antepassados, enfatizando um suposto caráter positivo da escravidão”, destaca. Mesmo assim, segundo Ávila, é raro ao longo da história dos EUA um governo que faça intervenções tão diretas em representações do seu passado.

“É problemático ter o seu trabalho, a sua produção intelectual diante de um poder que tenta apagar ou distorcer a sua linguagem, a sua expressão, a sua comunicação”, afirma Jil Soares, curador do Muncab. Ele enfatiza nesse contexto a importância de espaços como o próprio museu, que fica em Salvador e compartilha uma diversidade de vozes em suas mostras e exposições.

A pessoa pode simplesmente dizer: eu acho que a escravidão não aconteceu

As ações recentes de Trump em parte podem acabar até saindo pela culatra, afirma, acabando por dar ainda mais visibilidade ao tema, especialmente nos ambiente online. Por outro lado, admite que elas interferem diretamente na circulação das informações e da memória, e podem ter um impacto importante mais para a frente.

Se muitos desses acontecimentos hoje soam restritos à realidade norte-americana, segundo Ávila, há uma preocupação real de que seus efeitos se reflitam em terras brasileiras muito em breve. “A gente tem que prestar atenção no que está acontecendo nos EUA, sobretudo professores de história e pessoas interessadas no passado. Porque isso vai ter, de uma maneira ou de outra, ecos globais”, declara o historiador.

“Os riscos são muitos e de naturezas diferentes”, complementa Fernando Sales. “Se você passa a enxergar certos acontecimentos históricos de forma completamente deturpada, isso acaba refletindo em decisões de política pública e legislativa. Também tem o perigo de as gerações atuais, e principalmente as futuras, formarem sua identidade a partir de uma visão que não corresponde à realidade.”

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