Como criar pequenos democratas — Gama Revista
Como construir a democracia?
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Como criar pequenos democratas

Uma criança é capaz de entender e exercitar valores democráticos? Especialistas explicam como introduzi-los na infância e qual a sua importância

Manuela Stelzer 02 de Outubro de 2022

Como criar pequenos democratas

Manuela Stelzer 02 de Outubro de 2022
Vitoria Bas @basvii

Uma criança é capaz de entender e exercitar valores democráticos? Especialistas explicam como introduzi-los na infância e qual a sua importância

Eis que toca o sinal do recreio na escola. As crianças saem apressadas da sala de aula em direção ao pátio para aproveitarem os poucos minutos livres para brincar. Mas logo de cara o grupo de pequenos se vê em um impasse: qual será a brincadeira escolhida? E o mais importante: de que maneira irão decidir? “Uma criança democrata é aquela que compreende que o diálogo é a chave de solução da organização social. Na dinâmica do parquinho, vai decidir, junto aos outros, como brincar por meio da escuta, da conversa”, define Pedro Markun, autor dos livros “Quem Manda Aqui?” (2015) e “A Eleição dos Bichos” (2018), ambos da Companhia das Letras, sobre infância e política.

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Conflitos como esse, por mais irrelevantes que pareçam para um adulto, são motivo de reflexão e análise das crianças, que podem decidir em conjunto a brincadeira do dia ou impor uma sentença de maneira autoritária. “O jovem democrata vai tomar decisões em prol do coletivo, e não só de um indivíduo. É um equívoco pensar que a democracia é esse lugar onde pode tudo”, explica a psicóloga e psicanalista Fernanda Lopes, que é também palestrante da iniciativa Nova Geração de Pais.

Uma criança democrata é aquela que compreende que o diálogo é a chave de solução da organização social

O exercício da democracia na infância, entretanto, é complexo e traz desafios intrínsecos à própria lógica, como aponta Markun. “Uma criança não tem autonomia, ela deve obedecer aos comandos daqueles responsáveis por ela.” Mas dentro dessa limitação, é possível fazer acordos e propor uma “democracia participativa”. “Escola, pais e cuidadores exercem seu papel de responsabilidade quando escutam e levam em consideração os interesses, as opiniões, as vontades dos pequenos”, afirma o especialista. Na hora de vestir a roupa de manhã, o que vai colocar no prato, todas são decisões que perpassam pelo arbítrio da criança também.

É desafiador

Se a democracia é como um recreio em que todos podem brincar de tudo, isso não significa que não existam regras. A comparação, feita pelo livro “A Democracia Pode Ser Assim” (Boitempo, 2015), é um alerta do cuidado e cautela que essa conversa requer. Na teoria pode até parecer incrível: crianças que dialogam, respeitam as diferenças, têm empatia. Na prática, não é sempre assim. “Conforme eles crescem, questionam mais: por que é assim? Por que não posso ir na festa ou comer chocolate? Por que tenho que dormir a essa hora?”, diz a psicanalista Fernanda Lopes. “Essas perguntas desconcertam o adulto, que deve refletir sobre sua posição de autoridade e comando. Num ambiente democrático, o questionamento está incluso.”

Conforme eles crescem, questionam mais. Num ambiente democrático, o questionamento está incluso

De acordo com ela, quando o medo impera, ou seja, um fala e o outro obedece sem questionar, não se cultiva uma democracia. “Quando explico o que pode e o que não pode fazer, a expectativa é que a criança aceite e concorde, mas esse é um ideal distante. Tensionamentos e conflitos são bem-vindos em ambientes democráticos. É como na música: ‘Paz sem voz não é paz, é medo’.”

A frustração, é importante frisar, faz parte do processo de compreensão do conceito. “É claro que a criança vai se frustrar, ainda mais quando bem nova, porque tem menos condição de conseguir se colocar no lugar do outro, cognitivamente”, afirma a pedagoga e doutora em antropologia Adriana Friedmann. “Mas faz parte da democracia às vezes ter nossas propostas aceitas, e outras, não. A frustração também vai ensinar.”

Escola, pais e cuidadores

Há papeis complementares nessa construção. Friedmann acredita que a escola deveria ser, por excelência, o espaço onde o pequeno aprende a ser quem é dentro de um coletivo, a respeitar o outro, a saber a hora de falar e ser ouvido, e que nem tudo que quer e deseja será levado adiante ou contemplado. “Considero a escola o berço do ensino democrático. Tudo começa na infância e se aprende pelo exemplo e pelo exercício.”

Fernanda Lopes traz o exemplo de assembleias feitas em escolas sobre temas que precisam ser discutidos para a convivência harmoniosa. “É muito interessante, porque todos vão colocar suas opiniões, alunos, professores e gestores, e uma conclusão vai ser tirada dali. Não vai agradar plenamente ninguém, mas a probabilidade de adesão de todos é muito maior do que quando decisão parte de cima para baixo.”

Para a jornalista, educadora e mestranda em educação Mariana Rosa, estar em ambientes diversos, em que os pequenos estejam em contato com pessoas de diferentes culturas, classes, gêneros, religião, cor da pele, é chave para seu desenvolvimento. E é a escola o lugar para furar essa bolha e despertar questionamentos. “O papel da instituição é transformar essa curiosidade ingênua pelas coisas do mundo em uma curiosidade epistemológica, como diria Paulo Freire. Transformar a pergunta, o interesse, em ciência, em saber crítico.”

A escola é o berço do ensino democrático. Tudo começa na infância e se aprende pelo exemplo e pelo exercício

Aos pais e cuidadores, cabe erguer um espaço seguro, em que a criança possa voltar depois de errar e se sentir amada, saber que ali há uma tolerância maior para suas experimentações, como explica Lopes. “Assim, o pequeno sabe que terá amparo, a possibilidade de pensar sobre o que fez e mudar se achar necessário.”

É em casa que também se transforma todo tipo de assunto em uma conversa sobre democracia, até uma discussão simples sobre o álbum de figurinhas da Copa do Mundo, por exemplo. “Quem tem acesso ao álbum? Quem vai poder brincar de trocar figurinhas? Falar política também é falar de acesso a questões sociais, bens de consumo, equipamentos de saúde, lazer, tudo”, afirma a psicanalista.

Apesar do desafio, é necessário

Primeiro porque, mesmo que “você não acredite que política seja um tema para os pequenos, não significa que eles não vão escutar, aprender ou apreender ouvindo de canto conversas alheias”, pondera Pedro Markun. “E ouvir essa conversa que não foi pensada e organizada para se falar com uma criança pode imprimir nela a percepção de que política é uma coisa ruim, suja, e não a varinha mágica que existe para resolver nossos problemas.”

É claro que todo esse papo e tentativa de criar um pequeno democrata não é fácil – “democracia dá trabalho”, diz Markun –, mas é “a aposta é que ao coletivizar esse processo de tomada de decisão é melhor para todo mundo”. De acordo com ele, formar politicamente as crianças é torná-las cidadãos: “Temos uma série de adultos hoje que vivem à margem do sistema político. E todos os jovens devem poder se olhar no espelho e pensar: será que não posso ser presidente deste país? Ele pode decidir que não, e em vez disso ser astronauta, veterinário, professor. Mas quero que haja a possibilidade”.

Ele indica começar a provocar a criança: “Pergunte o que é democracia, o que faz um governador, o que são eleições. Ela trará uma série de ideias que, numa relação dialógica, ajudam na compreensão mútua”. E se chegarem em uma dúvida que o pai ou cuidador não saiba solucionar, não se desespere. A vulnerabilidade da ignorância, explica Pedro Markun, é boa, e faz com que adulto e criança busquem juntos a resposta. “Tem internet, livros, sites por aí para ajudar.”