Como praticar a democracia? — Gama Revista
Como construir a democracia?
Icone para abrir

Depoimento

Você pratica a democracia?

Com as escolhas e ações do dia a dia podemos construir uma realidade mais democrática. Nomes ouvidos por Gama dão o caminho para isso

Manuela Stelzer 02 de Outubro de 2022

Você pratica a democracia?

Com as escolhas e ações do dia a dia podemos construir uma realidade mais democrática. Nomes ouvidos por Gama dão o caminho para isso

Manuela Stelzer 02 de Outubro de 2022

Será o voto a única maneira de exercer nossa democracia? De fato, o sufrágio universal foi o marco para a consolidação do sistema político que conhecemos hoje. E o voto é, acima de tudo, um imperativo essencial para uma representação política de qualidade. Mas há diversas maneiras de ser democrata e praticar a cidadania no dia a dia, que vão além de apertar os dígitos na urna durante as eleições.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
E você, faz política?
“Marte Um”, o direito de sonhar
As mulheres que lutaram pela Independência

Legitimar opiniões diferentes da sua, estar aberto ao diálogo, obedecer normas e leis do convívio social estão entre as atitudes que compõem o perfil de uma pessoa democrata. E muitas das fragilidades da democracia brasileira hoje podem inclusive morar na ideia de que o papel do cidadão para o bem-estar comunitário é apenas participar das eleições. No entanto, furar uma fila aparentemente sem relevância, não prezar por igualdade de acessos e direitos de todos e deixar de denunciar atitudes preconceituosas são apenas alguns exemplos de riscos à saúde de uma democracia.

A seguir, pessoas de diferentes perfis respondem de que maneira são democratas: seja por meio do ofício, da militância ou mesmo nas pequenas atitudes do dia a dia.

  • Imagem

    ‘Democracia é o exercício contínuo de abrir mão do privilégio’

    Antonio Prata, escritor, roteirista e cronista. Acaba de lançar “Por Quem as Panelas Batem: Crônicas políticas”, pela Companhia das Letras

    “Somos antidemocráticos em todos os gestos do dia a dia. A questão antidemocrática do país não está só nas ameaças do Bolsonaro. A incapacidade do brasileiro de parar na faixa é um exemplo claríssimo. Dirigir pelo acostamento, parar em fila dupla. A ideia de que se você tem um amigo lá na frente na fila de um show te faz ter o direito a estar lá na frente também é quase que um resumo do “Raízes do Brasil” (Sérgio Buarque de Holanda, 1936): a noção de que sua relação pessoal está acima da sua figura cívica, que significa que quem chegou primeiro tem lugar na fila. Democracia é o exercício contínuo de abrir mão do privilégio, de abrir mão da sua potência e da sua liberdade em nome da potência e da liberdade coletiva.

    O Brasil é um país que tem um pacto social capenga. Não fizemos um contrato social, ainda vivemos numa época hobbesiana, de guerra de todos contra todos. Isso se dá por mil razões, mas precisamos garantir que o império da lei se estenda. Se todo mundo sente que está a deus-dará e que tem que lutar pelo seu, vira essa balbúrdia. Um país que ficou três séculos vendendo e comprando seres humanos têm uma certa dificuldade de ver o outro como um igual.”

  • Imagem

    ‘Que democracia é essa que seu sonho já é inalcançável na infância?’

    Dagmar Rivieri, presidente da Casa do Zezinho, que acolhe crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social

    “Democracia é manifestar suas escolhas. Que democracia é essa que seu sonho já é inalcançável na infância? Na Casa do Zezinho, nossa missão é proporcionar um ambiente em que crianças e jovens excluídos da sociedade, em situação extremamente vulnerável, tenham direito de sonhar. Aqui, desde os 6 anos, as crianças podem escolher e montar a grade de atividades dela. Temos a filosofia como um dos pilares pedagógicos e fazemos assembleias , em que eles podem levar ao time de educadores suas reivindicações. Com isso, são verdadeiramente ouvidos, na contramão da sociedade que exclui e reprime.

    Democrata é aquele que fala e escuta. Que reivindica, se indigna, tira o olho do umbigo e a bunda do sofá e é parte do mundo. Que arregaça as mangas e vai atrás dos direitos, de construir um bairro, uma cidade, um país e um mundo melhor. Sou a favor do contágio pelo ‘vírus do bem’, em que as pessoas vão se juntando em movimentos para corrigir ou atenuar algo ou mesmo reivindicar melhores condições perante ao poder público.

    Democracia só existe se todos tiverem acesso à sociedade. Como pode ter democracia se não tem teatro na periferia, se não tem lazer, cultura e transporte para quem é pobre? A organização da sociedade civil é fundamental para que de fato alcancemos o objetivo de ser uma sociedade melhor e mais justa.”

  • Imagem

    ‘Enquanto cria da favela, nunca experimentei democracia em plenitude’

    Raull Santiago, ativista e empreendedor

    “É importante ressaltar que, enquanto morador do Complexo do Alemão e cria da favela, nunca experimentei democracia em plenitude, diante das desigualdades tão presentes. Porém, é inegável que os experimentos democráticos da nossa jovem democracia foram e são transformadores para o país.

    Enquanto ativista e comunicador social, a democracia está presente nos diversos processos, como quando construímos projetos e ações que multiplicam saberes e despertam consciência crítica. Que permitem maior reflexão e participação da população das periferias nas tomadas de decisões. E ainda incentivam a participação política dessas pessoas, que é um dos grandes alicerces da democracia.

    Enquanto indivíduo, a liberdade que a democracia possibilita, além do horizonte de direitos e espaço para questionar quando os mesmos não são garantidos, é algo importantíssimo. Ao mesmo tempo, ainda é preciso melhorar muito os investimentos em educação, inclusive em relação à consciência sobre democracia.

    É verdade que avançamos em liberdade de opinião, de escolha, acesso a direitos e tantas outras coisas. O que o Brasil viveu nos últimos quatro anos, em um ambiente antidemocrático e de enorme retrocesso, precisa ser freado imediatamente, pois isso segue colocando em grande risco uma democracia que é ainda tão jovem.”

  • Imagem

    ‘Não há democracia se não houver água encanada numa escola’

    Jamil Chade, jornalista correspondente na Europa há 20 anos

    “Como jornalista, tento colocar a democracia em prática oferecendo ao leitor informação que possa ajudá-lo a tomar decisões que melhor atendam as suas e às necessidades de sua comunidade. Se a democracia e a eleição são a capacidade de o cidadão tomar para si o destino da vida de sua sociedade, ele tem o direito de saber o que é feito com o mandato que ele concedeu a um político ou a um orçamento.

    Viver numa democracia é garantir que todos tenham as mesmas chances, independentemente de suas origens, ideologias, fé ou etnia. A mesma oportunidade de ser curado, de estudar, de ter segurança ou de ter acesso à Justiça. Mas a maturidade da democracia em um país não é avaliada com base no número de eleições realizadas e sim na garantia de que minorias e grupos vulneráveis tenham seus direitos assegurados. Uma democracia sólida é aquela que garante que os derrotados nas urnas tenham todos seus direitos garantidos.

    A democracia no Brasil é ainda um sonho distante para milhões de pessoas. Não podemos falar em recuperar a democracia – mas em sua construção. Não há democracia se não houver água encanada numa escola. Não existe democracia se uma parcela da população não tem o direito a ter direitos.”

  • Imagem

    ‘Garantir a presença da diversidade nos espaços de poder e decisão: isso sim é falar de democracia’

    Livia Sant’Anna, promotora de justiça e autora do livro “Cotas Raciais” (Jandaíra, 2022)

    “Coloco a democracia em prática adotando posturas para além do discurso antirracista, LGBTfóbico, anticapacitista e de promoção da igualdade em todos os espaços. Ser democrata, em termos práticos, é realmente conseguir transcender o mero discurso e partir para ação efetivamente. É buscar construir uma democracia na qual a diversidade é elemento-chave. Não dá pra chamar desse nome um sistema em que não há mulheres, negros, LGBTQs representadas nos espaços de poder.

    Democracia não pode continuar sendo um sistema que garanta direitos de poucas pessoas. Os diversos sistemas de opressão, principalmente o racismo no Brasil, acabam tornando as pessoas negras objetos de pesquisa, objetos de políticas públicas – não são elas que pensam e constroem leis que digam respeito a seu próprio destino.

    Políticas públicas para as mulheres são construídas por homens brancos, em geral. É preciso garantir a presença dessa diversidade nos espaços de poder e decisão: isso sim é falar de democracia. É muito fácil se falar antirracista e nunca votar em pessoas negras. É muito fácil ser contra a desigualdade de gênero, e na hora de depositar seu voto na urna, sempre votar em homens.”

  • Imagem

    ‘A cultura democrática não é restrita à política institucional’

    Beatriz Della Costa, cientista social e cofundora e codiretora do Instituto Update

    “A democracia, no final das contas, é um valor, uma cultura. A cultura democrática não é restrita à política institucional. Ela é um valor exercido por nós na prática cotidiana com os nossos. Aprendi isso ao conhecer a cultura democrática uruguaia, que tem muito arraigado na essência deles e dentro da família, dentro das estruturas mais íntimas, a noção de construção de consenso.

    Aplico e trabalho nesse sentido, de buscar exercer o consenso: escutar os diferentes lados, não ter comportamentos autoritários, estar mais aberto ao divergente. Essa é uma prática que deveríamos exercer, desde uma discussão com seu companheiro, seu filho, seu colega de trabalho buscando consensos e negociando. A polarização política é importante, o problema é que queremos aniquilar o que pensa diferente da gente. Aí entramos no autoritarismo e caímos num lugar perigoso.

    Ficamos numa ideia de que o voto é suficiente para o exercício da cidadania e não é. Depois das eleições, a discussão tem que ser no sentido de como vamos construir consenso, como vamos construir uma repactuação política no país, entendendo que teremos um novo governo que vai precisar dialogar de uma maneira mais ampla para reconstruir confianças que foram quebradas e não acirrar ainda mais a polarização cega e raivosa. Que a gente possa reconstruir o campo democrático.”

  • Imagem

    ‘Nos afastamos do ideal de igualdade, que está tanto na Constituição quanto na bíblia’

    Luciana Petersen, jornalista e criadora do projeto Redomas

    “Sou uma mulher evangélica, e foi na igreja que aprendi sobre democracia, igualdade, como todo mundo deve ter o poder de falar e ser ouvido, como o diálogo deve ser uma constante na nossa vida. Jesus fala que, no reino de Deus, quem quiser ser o maior, deve ser o menor. Quem quiser ser o importante, deve se considerar o menos importante. Todos somos iguais diante de Deus.

    Busco praticar esse senso de igualdade no meu dia a dia, saber escutar, não querer impor uma opinião, sempre tentar a via do diálogo, da conversa, além de denunciar o que está de errado no mundo. Na igreja chamamos de pecado, que na minha visão é tudo aquilo que desumaniza: racismo, homofobia, machismo. São pecados estruturais que reproduzimos o tempo todo mesmo sem perceber. Uma vida democrática e que busque, na minha perspectiva, se parecer com Jesus, tem também a ver com denunciar essas injustiças e opressões e não compactuar com elas.

    Hoje, vejo um afastamento do ideal de igualdade, que está tanto na Constituição quanto na bíblia. Nos afastamos muito do amor ao próximo, dessa comunhão. É importante que a gente resgate esses valores. Tem essa galera da extrema direita que se diz cristã, mas não coloca o amor em prática. E o amor é com respeitar as diferenças, a diversidade, e ver isso como bonito.”