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Conversas

David A. Graham: “Há claramente uma tentativa de limitar a liberdade de expressão nos EUA”

Jornalista da Atlantic e autor do best-seller “O Projeto” afirma que Trump foi tratado de forma “muito crédula”, durante muito tempo, mas que suspensão do programa de Jimmy Kimmel “rompeu o debate político”

Paula Miraglia 05 de Outubro de 2025

David A. Graham: “Há claramente uma tentativa de limitar a liberdade de expressão nos EUA”

Paula Miraglia 05 de Outubro de 2025
Foto de Lis Tyroler

Jornalista da Atlantic e autor do best-seller “O Projeto” afirma que Trump foi tratado de forma “muito crédula”, durante muito tempo, mas que suspensão do programa de Jimmy Kimmel “rompeu o debate político”

David A. Graham é jornalista americano, repórter da revista Atlantic, onde cobre política e direito na sociedade americana. Como jornalista e escritor, seu trabalho se dedica a entender o funcionamento do poder nos Estados Unidos. Em abril, Graham publicou o “O Projeto – Como a extrema direita está transformando os Estados Unidos” (Zahar, 2025), livro que traz um olhar minucioso sobre o documento que hoje dá as diretrizes do atual governo Trump, o “Projeto 2025” (Project 2025, em inglês).

Organizado pela Heritage Foundation, um think tank conservador, é um plano amplo e detalhado para moldar a administração federal e usar a Presidência e outras instituições governamentais para transformar instituições democráticas, a sociedade civil e a cultura dos Estados Unidos. “O que o Projeto 2025 fez foi começar com uma visão de mundo, uma visão profundamente enraizada e que era um tanto impopular. E eles avançaram a partir daí para como queriam implementar”, disse em entrevista a Gama.

Temas como religião, direitos sexuais e reprodutivos, mudanças climáticas, entre muitos outros, estão todos articulados com estratégias políticas claras, cujo maior objetivo é consolidar de forma definitiva o poder da extrema direita nos Estados Unidos.

A Gama, Graham falou sobre as condições que levaram Trump a ter tanto poder, o status da liberdade de expressão no país, as conexões globais entre governos conservadores e a relação entre Lula e Trump.

Vimos intimidação da mídia para tentar cultivar veículos amigáveis e intimidar outros

  • G |Você afirma no livro que o Projeto 2025 é chave para entender a segunda presidência de Trump e também o futuro do Partido Republicano e da direita americana. É também chave para entender o futuro dos Democratas? Eles têm algo próximo do “Projeto 2025″ sendo desenvolvido?

    David A. Graham: |

    Ainda não. A primeira coisa sobre os democratas é que, mesmo que este plano esteja disponível publicamente desde o verão de 2023, eles parecem perpetuamente surpresos com coisas que estão acontecendo e despreparados para elas. Vimos democratas falando sobre querer criar um Projeto 2029. Há alguns erros na forma como estão pensando sobre isso. Um é que eles parecem sempre falar sobre isso como um projeto político, como uma questão de eleições. Como conquistar os eleitores de direita? O que o Projeto 2025 fez foi começar com uma visão de mundo, uma visão profundamente enraizada e que era um tanto impopular. E eles avançaram a partir daí para como queriam implementar. E você vê democratas começando a partir de “como podemos conquistar o poder e então fazer algo?”. Embora haja muitas partes do Projeto 2025 com as quais eu discorde, é uma articulação muito clara de uma ideologia. E isso é algo que os democratas parecem não ter. É uma visão de futuro. Os democratas parecem estar ainda debatendo a eleição de 2024.

  • G |Em se tratando de eleições, você está preocupado com as de midterm, que alteram Câmara e Senado? E está preocupado com a próxima eleição presidencial?

    DAG |

    Estou. Acho que teremos eleições. A questão é como Trump usará o poder do governo federal para tentar inclinar o jogo a seu favor. E já vimos muitas coisas que ele fez. Vimos intimidação da mídia para tentar cultivar veículos amigáveis e intimidar outros. Vimos ele pressionando vozes anti-Trump a deixarrem lugares. Vimos ele usando o poder do governo federal para investigar e prender. Doadores podem não querer contribuir, pessoas podem não querer se candidatar. Você o vê tentando interferir na forma como as eleições são conduzidas, alegando que ordenará o fim das cédulas pelo correio e que vai descredenciar máquinas de votação, tentando afirmar poderes que simplesmente não possui, mas que poderiam afetar o resultado da eleição e também permitir que alegue fraude depois da eleição. Vemos tropas nas ruas das cidades com planos de uma presença ainda maior, o que tem um efeito potencial de intimidação. Então, há muitas maneiras que Trump, mesmo com eleições, possa fazer coisas para torná-las menos livres e justas, e isso é o que mais me preocupa agora.

  • G |Estamos vendo a pressão sobre a mídia e sobre as universidades de diferentes formas, financeira e legal. Como você descreveria o estado da liberdade de imprensa e da liberdade acadêmica nos EUA agora? Essas coisas estão conectadas de alguma forma?

    DAG |

    Sim, elas estão conectadas, tudo se relaciona a certo nível de liberdade de expressão. Há claramente uma tentativa de limitar a liberdade de expressão, seja por pressão governamental ou simplesmente por pressão social. E isso recai sobre acadêmicos e imprensa. Há algumas diferenças estruturais, em relação à imprensa que tem recursos. Trump pode processar o New York Times, e o New York Times tem advogados excelentes e vai reagir, porque isso é o negócio deles. O problema é que, se você olhar para lugares como ABC ou CBS [redes de TV abertas], que fazem parte de grandes conglomerados, a parte jornalística é importante, mas não é o que os proprietários mais se preocupam. É uma pequena parte do negócio. Então, se os donos corporativos tiverem que escolher entre a integridade de suas divisões de notícias e o restante da empresa, vão escolher o restante da empresa, porque há mais dinheiro ali. Trump percebeu isso de forma inteligente e usou órgãos como a FCC (Federal Communications Commission), ameaçando licenças de transmissão e fazer investigações. Com a academia, é um pouco parecido, eles usam outras capacidades governamentais para puni-las, seja o Departamento de Educação, o Departamento de Justiça, Saúde e Recursos Humanos, todos esses departamentos para pressioná-las. E eles percebem, assim como a mídia é enfraquecida pelo crescimento da internet e pela queda de confiança, que instituições acadêmicas já estão em uma posição precária.

Os lugares onde você toca nas liberdades pessoais são os que têm mais risco de reação negativa

  • G |A identidade nacional americana foi construída sob alguns valores muito específicos, e a liberdade de expressão aparentemente era um deles. É possível conciliar essa ideia de identidade nacional com os valores do Projeto 2025?

    DAG |

    Acho muito difícil conciliar, há um conflito real. Não acho que os autores do Projeto 2025 tenham um compromisso sério com a liberdade de expressão. Eles reclamam, mas claramente têm sentimentos muito fortes sobre o que deve ou não ser permitido, como a religião deve ser um guia para políticas públicas — estão se aproximando da ideia de um governo baseado na religião mais do que qualquer presidente americano fez no passado. No livro, cito um momento em que eles falam sobre a ideia de que liberdade não é fazer o que queremos, mas fazer o que devemos. Não acho que essa seja a visão de liberdade que a maioria dos americanos compartilha. Os lugares onde você toca nas liberdades pessoais são os que têm mais risco de reação negativa. Os americanos podem tolerar políticas de imigração rigorosas, mas, se você tocar em liberdades pessoais, há maior risco de reação negativa.

  • G |Acha que a mídia está fazendo um bom trabalho ao cobrir essa administração? E, na sua opinião, há uma armadilha na ideia de “equilíbrio” nesse contexto?

    DAG |

    O equilíbrio tem sido uma armadilha. Você vê tentativas de fazer cobertura “por um lado e por outro lado”, ou de cobrir os democratas da mesma forma, para que sejam igualmente críticos, tipo “você pode ser crítico dos republicanos desde que também seja crítico dos democratas”. Isso levou a muitas reportagens que são enganosas sobre a escala das coisas que Trump tentou fazer. A imprensa aprendeu muito nos últimos dez anos. Se você pensar na cobertura de Trump em 2015 e 2016, ele foi tratado de forma muito crédula, teve muito tempo para dizer coisas que não eram verdadeiras sem ser desafiado. Todas essas coisas melhoraram. E acho que a imprensa está mais disposta a ser direta sobre o que Trump está fazendo. Mas não sei o quanto isso importa agora. Muita da discussão nos EUA se concentra no que o New York Times diz. E as pessoas que leem o New York Times provavelmente já são críticas a Trump. Você não está alcançando as pessoas que não são críticas. Por isso que a história do Jimmy Kimmel foi importante, porque rompeu o debate político. Não era simplesmente um debate em Washington, mas algo que muitos americanos viram.

  • G |Como jornalista, como você acha que a mídia poderia aumentar seu alcance e conversar com públicos maiores?

    DAG |

    Eu me debato muito com essa questão e posso dizer que nos últimos 15 anos sinto que estou alcançando uma fatia menor de pessoas porque as pessoas estão mais isoladas. E acho isso frustrante. Você ouve muito, “a mídia precisa ser mais simpática com conservadores”, ou “precisa considerar mais os pontos de vista da direita”. É importante levar todos a sério, mas a resposta não é ser simpático com Trump. Precisamos cobrir Trump de forma precisa e justa.
    Mas se você for complacente, como algumas pessoas gostariam, isso só alienará os leitores que já estão lendo, não vai alcançar novas pessoas. É um desafio real. Precisamos pensar sobre quais plataformas estamos usando, precisamos alcançar espectadores mais jovens. Mas não sei como romper essa polarização. Parece que estamos à mercê de um país hiperpolarizado.

  • G |A posse teve uma imagem muito forte: Trump com todos os líderes do setor de tecnologia. Como você avalia a centralidade deles na política?

    DAG |

    Foi impressionante ver como rapidamente as empresas de tecnologia se adaptaram à nova situação. Muitos deles não tinham uma visão de política partidária forte, eram flexíveis nesse aspecto. Agora, toda a política parece estar online, é onde as pessoas consomem notícias e toda informação. Vivem online, gastam muito tempo online, menos tempo com pessoas reais, mais tempo sozinhas. Então a influência dessas plataformas de tecnologia é enorme. Se você cria plataformas que buscam manter os usuários nelas o máximo de horas possível, isso terá efeito na sociedade. Todas essas questões políticas parecem derivadas dessas questões sociais muito ligadas às empresas de tecnologia.

Uma coisa que Trump faz consistentemente é tentar algo, ver que pode sair impune e fazer mais

  • G |Falando sobre o aparato de segurança, seria possível antecipar, lendo o Projeto 2025, que eles usariam as forças de segurança dessa maneira, tanto os agentes do ICE, mas também a presença militar nas cidades?

    DAG |

    Não tão longe quanto eles chegaram. Há um desejo no Projeto 2025 de usar os militares mais amplamente, particularmente na fiscalização da imigração. Mas eles acreditam que o militar é um recurso não explorado que pode ser muito útil para a segurança das fronteiras e para manter a segurança. E então eles falam sobre usar isso no contexto, não apenas nas cidades, mas em operações de imigração, na fronteira. Mas uma vez que você abre a possibilidade de usar os militares para essas coisas, e começa a implantá-los domesticamente, você tem muitas mais possibilidades. Então acredito que o princípio está muito presente no Projeto 2025. Uma coisa que Trump faz consistentemente é tentar algo, ver que pode sair impune e fazer mais. Então, assim que eles enviaram tropas para Los Angeles e Washington e viram que o público recuaria e que eles basicamente sairiam impunes, era inevitável que eles usassem isso para outras coisas também.

  • G |Você acredita que os EUA, especialmente no nível estadual e municipal, têm ferramentas constitucionais ou meios para resistir ou lidar com a situação?

    DAG |

    É difícil dizer. Se você olhar para lugares onde o governo estadual resistiu, como na Califórnia ou em até certo ponto em Illinois, você vê Trump recuando um pouco. Agora, eles enviaram o ICE para Chicago, mas ainda não enviaram tropas. Não está claro o que farão em Oregon. Califórnia ganhou uma ação judicial sobre isso. Parte do problema é que leva tempo para vencer essas ações judiciais. Trump está sempre tentando se adiantar.

  • G |Como você acha que os diferentes setores da sociedade civil americana estão reagindo ao que está acontecendo? Por exemplo, os líderes empresariais ou os escritórios de advocacia.

    DAG |

    Os empresários são amigáveis a Trump e estão dispostos a, basicamente, fazer o que ele quer, mas acreditam que suas políticas estão prejudicando a economia e suas empresas. Então há uma tentativa de trabalhar com Trump. E acho que vemos isso em diversos lugares. Vimos isso com escritórios de advocacia, empresas de mídia, algumas universidades. E também há um reconhecimento de que fazer isso não os ajuda. A ABC aprendeu que tentar agradar Trump, na verdade, não funcionou. Ele continuou atacando Jimmy Kimmel. Estou esperando para ver o que acontecerá com Harvard e se farão um acordo ou não. Parece que muitas dessas instituições realmente acreditavam que poderiam fazer acordos com Trump. E agora estão aprendendo que um acordo com Trump não vale muito.
    O resultado é uma sociedade civil enfraquecida.

Trump respeita grandes personalidades e Lula é uma grande personalidade. Isso provavelmente é útil para ele também

  • G |Você escreveu uma nota para a edição brasileira do seu livro falando sobre o cenário global e a sua relação com os autocratas. Sente que existe um “manual” que está sendo usado ou compartilhado, moldando muitos dos governos que têm inclinações políticas e estratégias semelhantes?

    DAG |

    Sim, acho que todos estão aprendendo uns com os outros. A direita americana toma muitas dicas de Viktor Orbán, que pega dicas de Vladimir Putin. Há comunicação dentro da Europa, comunicação entre a direita brasileira e a americana, a aliança próxima entre Trump e Bolsonaro. Não me lembro exatamente quando escrevi aquela nota, mas acho que Trump ainda não havia imposto tarifas relacionadas ao julgamento de Bolsonaro. Podemos ver ambos compartilhando ideias e vendo o que funciona e o que não funciona. Eles aparecem nas mesmas reuniões e conferências e usam o poder do governo para ajudar uns aos outros. As tarifas são um exemplo. Eles se movem através das fronteiras e querem fazer parte de um movimento global de direita cristã que impulsiona esses valores sociais.

  • G |Não sei se você tem acompanhado a relação entre Lula e Trump. Ambos se encontraram brevemente na Assembleia Geral da ONU e depois disseram algo como “ok, vamos conversar mais”. Como você interpretaria essa troca entre os dois?

    DAG |

    Uma coisa que eu notaria é que Trump tende a ouvir a última pessoa com quem falou. Ele vai ao Alasca, encontra Putin e de repente está seguindo o roteiro de Putin, depois encontra Zelensky e líderes europeus e de repente é muito mais pró-Ucrânia. Acho que o que os líderes mundiais claramente estão percebendo, seja Lula, Kyriakos Mitsotakis (primeiro-ministro da Grécia) ou qualquer outra pessoa, é que se você conseguir uma conversa um-a-um com Trump, pode realmente influenciá-lo dessa maneira. O desafio é fazer isso durar.
    De certa forma, Trump respeita grandes personalidades e Lula é uma grande personalidade. Isso provavelmente é útil para ele também. Mas ele é tão volúvel que você nunca sabe quanto tempo algo vai durar ou quando ele mudará de ideia.

Produto

  • O Projeto: Como a extrema direita está transformando os Estados Unidos
  • David A. Graham
  • Zahar
  • 176 páginas

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