Como funcionam as censuras contemporâneas — Gama Revista
O que é censura hoje?
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Reportagem

Como funcionam as censuras contemporâneas

Gama convida especialistas para comentarem como as diferentes formas de censura se manifestam nos dias de hoje

Manuela Stelzer 07 de Agosto de 2022

Como funcionam as censuras contemporâneas

Gama convida especialistas para comentarem como as diferentes formas de censura se manifestam nos dias de hoje

Manuela Stelzer 07 de Agosto de 2022

Pode parecer distante da realidade falar sobre censura, já que, desde 1988, um texto da Constituição votado na Assembleia Constituinte marcou o fim oficial do cerceamento da liberdade de expressão de qualquer natureza. Mas o tema está mais próximo do que se imagina. O fantasma da censura voltou a assombrar o Brasil, por exemplo, com as crescentes agressões aos jornalistas nos últimos anos. Um levantamento da Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) confirmou que o número de casos de violência contra esses profissionais cresceu cerca de 105% de 2019 a 2020. E há muitos outros episódios que entram na lista de ocorrências de censuras contemporâneas.

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A verdade é que censura é um conceito muito mais amplo do que uma “ação de desaprovação e cerceamento de determinada mensagem”, como define o Politize!. Por mais que seu fim oficial tenha sido decretado décadas atrás, ela ainda pode ser observada em diferentes situações. Segundo algumas perspectivas, o cancelamento pode ser entendido como uma espécie de censura (por mais que tente silenciar discursos e atitudes de transgressão social), como explica o psicanalista Christian Dunker: “Porque é feito sem um justo processo, acontece em estado de massa, ou seja, as pessoas vão aderindo sem muita lucidez, e também flerta com a crueldade e a vingança”.

Em uma investigação sobre censuras contemporâneas, Gama convida alguns especialistas para comentarem sobre como elas se apresentam na vida moderna e em quais vertentes, além de indicarem leituras para os interessados em se aprofundarem no assunto.

Temas complexos na infância

Uma pesquisa do DataFolha do último mês mostrou que, para 73% dos brasileiros, a educação sexual deve estar presente no currículo escolar, e a maioria concorda que aulas sobre o tema podem ajudar a prevenir o abuso de crianças e adolescentes. Por mais que dizer a verdade para os pequenos seja uma tarefa complexa (Gama já pediu recomendações para especialistas de como fazê-la), quando o assunto é sexo, gênero, morte ou violência, a educadora Lua Barros indica trocar o termo “censura” por “cuidado”.

“Crianças não devem ser expostas a cenas de sexo ou violência, porque ainda não têm estrutura psíquica para entender”, explica. “É preciso ter cuidado sim, e isso não é caretice. Ao mesmo tempo, os adultos precisam abrir espaço e acolher a curiosidade.” Segundo Barros, “não é sobre esconder o mundo da criança, mas ter sensibilidade para conversar, adequando o repertório e as imagens que chegam até ela”.

Por outro lado, a educadora acredita que deixar de abordar questões de gênero, sexualidade e outros tópicos complexos em casa e na escola é desfavorável para os pequenos. “O que rege esse tipo de escolha é o medo e a desinformação.” Ela diz que pais e responsáveis podem pensar que falar sobre os temas irá incentivar os filhos a fazer determinadas escolhas ou ter comportamentos sexuais – “quando na verdade, é oposto disso”. “Educação sexual, consciência corporal e gênero são pontos que compõem a identidade dessa criança, vão atravessá-la. Que família e escola consigam segurar sua mão para que a travessia seja suave e não motivo de vergonha ou medo.”

Na hora de conversar com os pequenos, os livros podem ser uma boa alternativa para um papo sensível e certeiro. Lua Barros indica alguns títulos, como “Pipo e Fifi” (Caqui, 2018), que traz conceitos básicos sobre o corpo, sentimentos e emoções; e “Gogô – De onde vem os bebês” (Caqui, 2018), que além de explicar a origem da gravidez, ressalta valores fundamentais, como consentimento, responsabilidade, respeito.

Tolerar os intolerantes?

Em seu livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, de 1945, o filósofo austríaco Karl Popper questionou: será que a sociedade deve tolerar os intolerantes? E coibir discursos calcados no preconceito, é uma forma de censura? O doutor em direito e professor da USP Conrado Mendes diz que “se estamos numa sociedade desigual, violenta e discriminatória, com longa herança colonial e de opressão, a liberdade de expressão certamente não só será distribuída de forma desigual, como servirá de instrumento de manutenção da violência e da discriminação”.

Segundo ele, uma comunidade que deseja implementar uma noção de justiça deve pensar em limites à liberdade de expressão – ainda que soe contraditório. “Não são limites com a intenção de calar ideias na esfera pública, mas para que esse argumento não sirva como arma de opressão ou mesmo de ruptura democrática.” Mendes afirma que não há liberdade de expressão onde, apesar da garantia no texto da Constituição, alguns têm mais poder do que outros. “Num sentido genuinamente liberal, não de um liberalismo retórico, precisamos nos preocupar com igualdade de condições para que todos se expressem.”

O argumento do exercício da liberdade de expressão não pode ser usado acima de qualquer outro direito, como honra, dignidade, intimidade, privacidade, entre outros. “É o que chamamos de colisão de direitos. Quando isso acontece, temos a tarefa jurídica e argumentativa de encontrar uma solução no caso concreto”, explica o professor. “Quem presume que liberdade de expressão sempre ganha está errado, tanto moralmente quanto juridicamente.” Para se aprofundar na discussão, Conrado Mendes sugere a leitura do título “A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública” (FGV Editora, 2020), em que o autor se posiciona sobre a pergunta fundamental: a que serve a liberdade de expressão em uma democracia?

O corpo da mulher

“O padrão estético, mais do que uma censura, é uma espécie de controle”, afirma a filósofa, pesquisadora e ativista Malu Jimenez, também criadora do projeto Lute Como uma Gorda. De acordo com esse padrão, certos corpos serão exaltados e amados, enquanto outros serão odiados e desqualificados. Nessa lógica, as mulheres caem em desvantagem, como explica Jimenez. “A forma como somos educadas desde pequenas já exige um certo tipo de cabelo, de corpo, uma forma de falar, de sentar, quais roupas usar, ser frágil, meiga.” As que não se encaixam nesse padrão imposto, são censuradas e “eliminadas do jogo social”.

“Por isso escutamos desde cedo que ‘assim ninguém vai te querer’, como se não seguir esse padrão significasse não ser escolhida pela sociedade”, diz a filósofa. E as próprias mulheres agem no sentido de controlar corpos femininos alheios e assim construir uma competição entre elas. Toda essa censura, segundo Malu Jimenez, limita os lugares que cada mulher ocupa, o casamento que ela persegue, o emprego que vai conseguir.

Ela relembra um post do perfil Não Tenho Roupa, de aluguel de roupas, que questiona os looks que achamos bonitos, sexys e estilosos – que geralmente aparecem em corpos magros – e os que consideramos vulgares, indecentes e desleixados — simplesmente por estarem vestindo corpos fora do padrão. “Mulheres que são gordas, quanto mais gordas, mais serão odiadas, fetichizadas, perseguidas, excluídas e humilhadas.”

Reprodução Instagram /@naotenhoroupa

Cancelar ou censurar?

“Existem diversas formas de exercer poder, e a vigilância é uma delas”, explica a psicanalista e psicóloga clínica Fabiana Villas Boas. “Com ela, não é mais necessário confinar as pessoas em instituições concretas, pode-se limitá-las em quaisquer lugares, desde que haja mecanismos, como a internet.” A psicóloga acredita que o cancelamento, nessa ótica, pode ser considerado um tipo de censura, em que a própria comunidade se vigia e se pune, tendo como base não leis gerais, mas o moralismo.

“Quando entramos no campo da exclusão, nos reconhecendo como os únicos portadores da verdade, nos empobrecemos enquanto sujeitos, porque é o diferente que nos enriquece”, afirma. Para ela, o cancelamento funciona em uma lógica totalitária de exclusão do outro, e entrar nesse mecanismo de hiper-vigilância “também nos cerceia, já que não podemos superar nossas próprias contradições”.

Christian Dunker segue o mesmo raciocínio, e relembra que, do ponto de vista psicanalítico, acredita-se mais em um processo de transformação pelo autoesclarecimento, capacidade de autocrítica e a busca por emancipação, do que por caminhos disciplinares. “Muitas vezes, a punição tem essa vertente disciplinar, onde não me interessa os motivos, o contexto, quem, mas vamos proceder à execução”, diz o psicanalista. “E os processos disciplinares podem ter um efeito rebote.” Segundo ele, podemos até controlar o comportamento, mas o preço pode ser uma “reação alérgica da própria subjetividade, que vai cumprir a regra, mas não vai assumí-la e incorporá-la”.

Para refletir sobre a questão, os especialistas indicam alguns títulos, como “Vidas e palavras: A violência e sua descida ao ordinário” (Unifesp, 2020), da antropóloga indiana Veena Das, que estudou processos de intolerância e traz um novo entendimento de como a violência opera em sociedades e culturas ao redor do mundo. “Olhando uma cultura mais distante, podemos perceber traços de paridade com a nossa”, afirma Dunker sobre o livro. E o clássico “1984” (Cia das Letras, 2009), de George Orwell, que leva o debate para uma vertente mais política.

Síndrome da impostora

Por mais que não seja considerada uma doença mental pela OMS, a síndrome da impostora é considerada uma desordem psicológica que afeta principalmente as mulheres, que desacreditam da própria potência. “Não sei se chega a ser uma forma de autocensura, acho que é mais um boicote estrutural”, explica a jornalista e fundadora da Contente.vc, Daniela Arrais. “Historicamente, ocupamos espaços contidos, domésticos. Não é para subirmos no palco e virarmos CEO de uma empresa.”

O que parece uma questão individual, de cada mulher, suas inseguranças e falta de confiança em si mesma, deveria na verdade ser colocado na conta do coletivo, e considerada quase um sintoma do patriarcado. “É uma estrutura inteira te dizendo que você não pertence, que não deve fazer tal coisa, que está destinada a um determinado lugar.” Mas Arrais pondera que, ainda assim, a autocensura também faz parte da síndrome, seja na forma de procrastinação, autossabotagem ou sensação de incapacidade. Combatê-la não é tarefa simples, mas a jornalista diz que “para mim, hoje, é assim: primeiro diga sim, mesmo tremendo de medo, depois você resolve como vai dar conta”.

Os best-seller “A Coragem de ser Imperfeita” (Sextante, 2016), de Brené Brown, e “A Grande Magia – vida criativa sem medo” (Cia das Letras, 2015), de Elizabeth Gilbert, são dois títulos relevantes sobre o tema, ainda que bastante mainstream. “São muito bons, e trazem essa ideia de que precisamos viver uma vida criativa mais autêntica, sem nos preocuparmos com o que vai fazer sucesso ou dar certo”, finaliza Arrais.